CICLO
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Moçambique


Em ano de comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, a Cinemateca assinala também a proximidade de aniversários redondos das independências africanas. “Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado” põe em foco as cinematografias de três das ex-colónias portuguesas (Moçambique, Guiné e Angola). Fá-lo articulando a projeção de obras históricas com a de filmes contemporâneos. Além de mostrar obras da produção estatal impulsionada para cimentar e projetar as novas nações, integrando a diversidade cultural e linguística através do português como língua agregadora, o Ciclo evidencia como essa dinâmica esmoreceu globalmente. Num contexto atual marcado pela escassez de apoios à realização, a produção de cinema tornou-se fortemente diaspórica, quase sempre independente, predominando o género documental, os formatos curtos e as coproduções com Portugal. Convidada a coprogramar as três partes deste Ciclo (depois de Moçambique em abril, a cinematografia da Guiné será mostrada logo a seguir em maio e Angola fechará o programa em novembro), a investigadora Maria do Carmo Piçarra (cujo trabalho tem incidido sobretudo sobre o cinema colonial português e as diferentes cinematografias que lhe sucederam após as independências) assina o texto que se segue bem como as notas sobre cada uma das sessões do Ciclo.
“O projeto de cinema em Moçambique foi referencial no contexto africano. Quando, em 1975, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) assumiu o governo, poucas pessoas tinham visto imagens em movimento. Logo em 1976, foi criado o Instituto Nacional de Cinema (INC), após decidir-se que a “geração da utopia” teria formação em cinema, no contexto do projeto revolucionário de combate contra as injustiças e destruição das hierarquias herdadas da anterior situação colonial. O tempo era de internacionalismo cinematográfico, documentado no KUXA KANEMA nº 36. Relações estreitas com países do Leste da Europa, China e Cuba tiveram impacto na formação de profissionais e na produção e exibição de cinema. O manifesto Hacia un Tercer Cine (1969), dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, propusera uma nova categoria, a do cinema dedicado à descolonização, com impacto no cinema de autor. Num desenvolvimento posterior das suas ideias, Solanas e Getino definiram cinema militante como a realização de filmes por coletivos articulados com organizações políticas revolucionárias. As propostas de Getino e Solanas foram acolhidas pelos líderes dos movimentos de independência, e integradas em projetos nacionais de cinema questionadores do imperialismo e das normas históricas, culturais e ideológicas dominantes na sociedade e no cinema. A América Latina, Cuba, o Norte de África, a África de línguas francesa e portuguesa – e especialmente Moçambique – tornaram-se laboratórios para o desenvolvimento teórico e prático do cinema, com a contribuição de técnicos e cineastas internacionais que acorreram para participar e/ou filmar. Em Moçambique, além do envolvimento de Ruy Guerra, convidado para participar na criação do INC e determinante na atração de cineastas brasileiros como Licínio Azevedo, que se radicou no país, são notáveis as passagens e projetos, não isentos de polémica, de Jean-Luc Godard e Jean Rouch, além dos filmes feitos por Santiago Álvarez.
Como afirma Ros Gray em Cinemas of the Mozambican Revolution, o cinema produzido e mostrado nessa fase inicial apresentou-se como materialização das amizades socialistas e agente de mobilização política. Não se tratava apenas de levar imagens em movimento às pessoas, mas de criar ligações entre as revoluções a acontecer. Enfrentando enormes adversidades, durante mais de uma década o INC centralizou a produção cinematográfica e fomentou uma prática e uma cultura cinematográfica revolucionária. Os cinemas ambulantes, mas também as equipas de produção que filmavam pelo país, atravessaram Moçambique projetando a sociedade em construção. As duas séries de KUXA KANEMA (a primeira em 1978 e 1979, e depois, num formato mais curto, de 1981 a 1985) mostraram o povo, a sua história de luta e construção de uma sociedade socialista, ao povo: danças e música, locais históricos de resistência, formação de novas competências profissionais, reorganização económica, visitas de chefes de Estado estrangeiros e, claro, os discursos de Samora Machel. Progressivamente, desvelam também a violência que se abate sobre o país quando o governo se afirmou anti-Apartheid. O apoio da Rodésia governada por uma minoria branca e da África do Sul à Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) fomentará uma das mais destrutivas guerras civis travadas no continente, a qual só terminou em 1992. Entretanto, a morte de Machel num acidente de avião, em 1986, e o incêndio do INC em 1991, são marcos do colapso da revolução marxista e do seu projeto cinematográfico.
A privatização da indústria cinematográfica estava já em curso paralelamente à transição para uma economia de mercado livre e para a democracia multipartidária. O legado do “cinema de Estado” foi a formação de uma geração com grandes competências técnicas e preocupação com questões sociais. Esse legado persiste. Não obstante as dificuldades do ‘nascimento (em imagens) de uma nação’, as preocupações sociais são uma linha de força nos filmes feitos em Moçambique ou por moçambicanos. Porém, a cinematografia moçambicana é hoje também marcada por preocupações ecológicas, que passam pela revalorização dos saberes ancestrais, pelo tratamento de questões identitárias (incluindo de género e raciais), e, muito fortemente, relativas às articulações entre as memórias pessoais e coletivas, tanto numa perspetiva de questionamento do que falhou na construção do país, como das possibilidades de esperança e de superação dos traumas provocados pelo colonialismo e pela guerra civil.” (Maria do Carmo Piçarra)
 
 
29/04/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Moçambique

Ruínas do Rio | Mabata Bata
duração total da projeção: 111 min
 
29/04/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Moçambique
Ruínas do Rio | Mabata Bata
duração total da projeção: 111 min
legendados em português | M/12
RUÍNAS DO RIO
de Yara Costa Pereira
Moçambique, 2021 – 35 min

MABATA BATA
de Sol de Carvalho
com Emilio Bila, Mário Mabjaia, Medianeira Massingue
Moçambique, 2017 – 76 min

O filme AS RUÍNAS DO RIO, de Yara Costa Pereira, evoca a importância do saber tradicional e documenta algumas histórias de superação de habitantes de Dombe, em Manica, uma das áreas mais afetadas pelo ciclone Idai que, em 2019, devastou Moçambique, provocando centenas de mortos e milhares de desalojados. Adaptação pelo realizador Sol de Carvalho do conto O Dia em que Explodiu Mabata Bata de Mia Couto, MABATA BATA tem como fundo a guerra civil que, desde 1977 e durante 16 anos, dilacerou Moçambique. Órfão e pastor de uma manada, o sonho de Azarias é ir à escola. A avó apoia-o, mas, no dia em que, enquanto pasta, o boi Mabata Bata pisa uma das minas espalhadas pelos combatentes, o seu desejo fica comprometido. A morte de Mabata Bata compromete o pagamento, pelo tio Rui, do “lobolo”, o dote que, tradicionalmente, deve pagar para casar-se. Com receio de que o tio o culpabilize pela morte do seu melhor boi, Azarias foge, com a manada, para a floresta, onde a avó e o tio irão em sua busca.

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