CICLO
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo


A acompanhar a retrospetiva da sua obra, 20 escolhas de Jorge Silva Melo em 2020. E um texto.


Carta Branca sem Receita

Jorge Silva Melo

 
Não me perguntem se são os melhores do mundo. Não serão, nem está aqui nenhum Lang (nem o Beyond! nem o Moonfleet? não percebes nada disto, ingrato Melo), nem nenhum Renoir (e se isso fosse, todos os Hitchcock aqui estariam), nem nenhum Ray (qual dos dois?), nem o Europa 51, nem o Playtime nem a Gertrud ou o Sunrise, nem o A Star is Born, nem a Claudia Cardinale entra em nenhum deles...nem o Jean Gabin (!), nem estão cá as Seven Women, meu último Ford (“so long, bastard!” conclui a Bancroft), pois não, não são os “melhores de sempre”, não. Nem os que levaria para a ilha deserta, onde não sei bem o que faria se nem projeccionista lá houvesse.
São filmes de que me lembro hoje assim às três pancadas (as de Molière eram sete...), filmes que me fizeram adulto, filmes que vêm de longe muitos, filmes muitas vezes vistos, pensados, sonhados, filmes tão diferentes, filmes com quem passaria esta noite se ainda houvesse com quem falar durante as demoradas noites que já vivi bem depois de fecharem os cinemas.
Sim, claro, Rio Bravo de Howard Hawks, o classicismo, a evidência, como se disse, a frontalidade, a perfeição, a amizade, a redenção (mas também podíamos falar de Hatari! e dos tempos mortos, das esperas, dos olhares cruzados, da aventura). Sim, à medida que envelheço mais sei que este filme me fez, teria eu doze anos e vi-o com o meu pai um domingo à tarde. A gota de sangue no copo de cerveja, geometria perfeita e alucinada.
Mas também gosto de filmes onde precisamente esse classicismo se estilhaça, a dúvida paira, a incerteza vence, filmes-milagre como o Close-Up de Abas Kiarostami, derradeiro filme daquilo a que chamámos cinema? Derradeiro capítulo, sim. (Ou esse foi o de Man of the West de Anthony Mann, o paisagista lírico, magoado anúncio de velhice e impotência?)
Mas eu gosto de tudo, gosto. E acima de tudo, não gosto de receitas. 
Gosto de filmes de argumento (como o dilacerante Il Sospetto de Francesco Maselli – mas podia ser o Runing on Empty de Sidney Lumet) como gosto de filmes onde precisamente o argumento se esconde, quebrado (ah, como me intriga Détective de Jean-Luc Godard, aqueles planos das costas de Johnny Hallyday!), gosto de filmes frágeis (comigo sempre a Wanda de Barbara Loden, descoberto em Londres, numa tarde em que evitei académica escola), mas também de grandes produções, de filmes intensamente “de autor”, segredos mesmo (como me surpreendeu a música realmente de câmara daqueles primeiros Iosseliani, ou, no mesmo cinema soviético que havia no Boulevard Raspail, aquele pungente dueto mãe-filho da imensa Muratova), como gosto de filmes de produtor (ah, o Odd Man Out que tanto podemos dizer que é “do” competente realizador Carol Reed como do genial director de fotografia Robert Krasker, como é dos sublimes actores-sombras mais do que negras – Mason ou Robert Newton – trabalho de equipa perfeita, tantos homens certos na noite certa, Londres para sempre sombria – mas aqui a fazer de Belfast, a funérea.
Sim, gosto de filmes arrebatados (para sempre Walsh, – e bastava o plano da morte de Tab Hunter no Battle Cry para sabermos que estamos com o maior cineasta, aquele que sabe o que pesa, o que dói um homem caído, ferido, morto) como de filmes elegíacos, tristes, secretos (ah, a Cronaca Familiare de Zurlini. Mas podia ser os Fidanzati do tão esquecido Olmi!), ou de filmes à beira da apoplexia (e quem diria que assim é Minnelli? Mas como resistir àquelas voluptuosas Two Weeks in Another Town?).
E agora ao ver a lista destes que fui escolhendo assim, enquanto os anjos da cinefilia esfregam os olhos, vejo que gosto de filmes em Scope (como são lindas aquelas sequências iniciais sobre Nantes ou Nice e, mais tarde, Cherburgo, de Jacques Demy. (Ou gosto é do VistaVision montanhoso do Mann?) Gosto de filmes com muitas cores (mas não trouxe o vestido vermelho de Cid Charrisse, Party Girl para sempre no Ray), gosto de pequenos filmes (mas nem um Ozu, com os diabos?), gosto de quase tudo, então quando a Harriet Andersson olha para nós, até me enfio pela cadeira abaixo, ela viu-me e como eu a amei (mas também podia ser a Sara Montiel cantando na Violetera e olhando para nós enquanto fuma um cigarro, o cinema é pecaminoso, volúpia da carne...)
Gosto de musicais (e não escolhi nenhum!), gosto de screwball comedies (e nem uma), gosto de melodramas (e nem um), ao ser preso pela Pide em 21d Fevereiro de 1968, tinha no bolso os bilhetes para, nessa noite, poder ir ao Éden ver a estreia de The Patsy e lembro-me da cara espantada dos pides (“este caramelo gosta do Jerry das caretas?”, pensariam os malditos), gosto de tantos filmes tão diferentes uns dos outros, quase diria que, ao iluminar-se o écran, sou realmente feliz com as luzes que se apagam, as cortinas que abrem, aquelas primeiras luzes, a promessa. Sim, desde que, em menino, vi L´Onorevole Angelina de Zampa com a Magnani, gosto de tudo.
E devagarinho vem-me à memória aquele arrasador “A Execução de Ernst S., Traidor à Pátria” de Richard Dindo, demorado inquérito onde o cinema é a não-representação, ruas, caminhos na floresta, o vazio. (Mas, claro, podia ser o Gestos & Fragmentos de Seixas Santos, admirável.)
Pois, e se nasci para os filmes a ser feitos aqui, nesta terra, por obra do Paulo Rocha (“afinal é possível!”) cujos Verdes ainda me incendeiam, mestre, amigo, é o Vanitas que aqui trago, filme esquecido, menosprezado, atirado para o lixo do consumo, filme sublime, fogo fátuo. E sei que dele gostaria esta noite de ficar a conversar com o João Bénard da Costa, meu professor.
Ah, sim, porque os filmes são para depois se conversar. Estes são.
Ou então antes. Durante anos, ouvi a Luiza Neto Jorge falar de um filme que vira em Paris e que nunca cá chegara nem nas viagens eu conseguira descobrir. Sim, eram as Cumbres Borrascosas de Luis Buñuel que só vi anos depois da morte da Luiza, uma tarde na Cinemateca, creio. E sobre o qual nunca consegui falar com ela. Ou consegui?
 
 
13 Fevereiro de 2020
 
 
10/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo

Rio Bravo
Rio Bravo
de Howard Hawks
Estados Unidos, 1959 - 141 min
 
10/03/2020, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo

Adieu Philippine
de Jacques Rozier
França, 1962 - 106 min
10/03/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo

The Patsy
Jerry, Oito e Três Quartos
de Jerry Lewis
Estados Unidos, 1964 - 101 min
11/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo

Two Weeks in Another Town
Duas Semanas noutra Cidade
de Vincente Minnelli
Estados Unidos, 1962 - 107 min
12/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo

Giorgobistve
“Folhas Caídas” / “Outono”
de Otar Iosseliani
URSS, 1967 - 95 min
10/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo
Rio Bravo
Rio Bravo
de Howard Hawks
com John Wayne, Dean Martin, Ricky Nelson, Angie Dickinson, Walter Brennan
Estados Unidos, 1959 - 141 min
legendado em espanhol e eletronicamente em português | M/12
RIO BRAVO é um dos mais famosos westerns de sempre, e a obra-prima de Howard Hawks, que o fez em resposta a HIGH NOON de Fred Zinnemann. Um grupo de homens com uma missão a cumprir é o tema geral dos filmes de aventuras de Hawks, neste caso, a de manter a ordem numa pequena cidade, e levar a julgamento um assassino. Mas é também, como todos os filmes do realizador, uma fabulosa variação sobre a “guerra dos sexos”, com um fabuloso duelo verbal entre John Wayne e Angie Dickinson. Jorge Silva Melo indica-o muitas vezes como o filme entre os preferidos. Escreveu sobre ele para o catálogo Howard Hawks de 1990: “Se há filmes que me fizeram mal? Este. RIO BRAVO. Mal em tudo: na vida, nos amores, na profissão, quando penso em fazer um filme, quando me ponho a escrever uma história, quando vou ao cinema, naquelas horas plenas (e ainda tão raras!) em que posso filmar ou trabalhar.”
 
10/03/2020, 18h30 | Sala Luís de Pina
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo
Adieu Philippine
de Jacques Rozier
com Jean-Claude Aimini, Yveline Cery, Stefania Sabatini
França, 1962 - 106 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O mais amado dos filmes desconhecidos (a sua carreira foi atribulada, em Portugal nunca estreou) do mais raro dos cineastas da Nouvelle Vague, Jacques Rozier, cujo percurso fulgurante nunca mais terá tido sossego, filmando desde então os mais livres dos filmes. Nunca ninguém filmou tão perto a errância da gente nova, a hesitação, os dias inseguros, os adeuses, os acasos, o peso da guerra – aqui, a da Argélia. Tudo é fresco e novo neste documento único em que a Graça visita os corpos 24 vezes por segundo. Sobre ele escreveu Jorge Silva Melo que remata assim: “é que ADIEU PHILIPPINE é um filme de coração nas mãos, tão lindo.” A apresentar em cópia digital.
 
10/03/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo
The Patsy
Jerry, Oito e Três Quartos
de Jerry Lewis
com Jerry Lewis, Ina Balin, Everett Sloane, Keenan Wynn, Peter Lorre, John Carradine
Estados Unidos, 1964 - 101 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Uma das obras-primas do realizador-ator Jerry Lewis, THE PATSY é uma sátira mordaz ao mundo do cinema (o título português indica-o jogando com o felliniano OITO E MEIO, do ano anterior). Jerry retoma uma personagem semelhante à de THE ERRAND BOY (1961) no papel de um mandarete de hotel que uma equipa do mundo do espetáculo escolhe para substituir a sua estrela recentemente falecida. Um dos mais estranhos e “destrutivos” dos seus filmes da década de 1960.
 
11/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo
Two Weeks in Another Town
Duas Semanas noutra Cidade
de Vincente Minnelli
com Kirk Douglas, Edward G. Robinson, Cyd Charisse, George Hamilton, Claire Trevor
Estados Unidos, 1962 - 107 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Um americano em Roma, uma angústia, uma confusão, uma perdição neste melodrama sobre o cinema e vida do pós guerra, gente à deriva. A sequência do automóvel com Kirk Douglas subindo o Muro Torto é um dos momentos mais extraordinários do mais elegante dos cineastas, e aquele em que podemos ver o que mudou na compreensão do ser humano, no conturbado início dos anos 1960.
 
12/03/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Carta Branca 2020 a Jorge Silva Melo
Giorgobistve
“Folhas Caídas” / “Outono”
de Otar Iosseliani
com Ramaz Giorgobiani, Marina Kartsivadze, Goghi Karabadze
URSS, 1967 - 95 min
legendado em francês e eletronicamente em português | M/12
GIORGOBISTVE (ou LISTOPAD, em russo) foi a primeira longa-metragem de Otar Iosseliani e chamou imediatamente a atenção para o seu nome na Europa ocidental (prémio da crítica em Cannes e Prémio Georges Sadoul em França). É a história de dois funcionários de uma cooperativa vinícola, um sério e leal, o outro arrivista e desonesto, e da sua relação ao longo de um conflito laboral. Tema (velado): a vida na Geórgia em tempos da URSS. Na Cinemateca, não passa desde 2008.