Tudo isto será lançado no intervalo em que as nossas salas de projeção serão mantidas no silêncio, aguardando a reabertura a fazer em data ainda incerta. Fechadas as portas no dia 13 de março, foram interrompidos e desmarcados Ciclos cuja suspensão, quando reabrirmos, conduzirá a alterações em cadeia durante os meses subsequentes. Na noite de dia 13 teria acontecido na Cinemateca a projeção de SOFIA AREAL: UM GABINETE ANTI-DOR, seguida de conversa com o realizador e a pintora, no que seria apenas a quarta jornada (excetuando a Carta Branca, começada antes) do Ciclo dedicado a Jorge Silva Melo, que assim bem poderá dizer, como Nicholas Ray “I was interrupted”… Mas interrompida foi ainda a homenagem a Saul Bass em ano de centenário do seu nascimento (que teria um prolongamento em abril), e suspensos ficaram o anunciado Ciclo dedicado a Jose Celestino Campusano ou o programa de colaboração com a MONSTRA, nos 20 anos desta. Mais do que isso – e atendo-nos exclusivamente ao que estava programado para os meses de abril e maio, ou seja, aqueles que sabemos já de mão segura serem ainda de fechamento –, ficaram por concretizar nas datas previstas a integral Fellini (com a Festa do Cinema Italiano), a homenagem a Ousmane Sembene e à história do “Forum” de Berlim (ambos com o IndieLisboa), o muito completo Ciclo Raoul Ruiz (longo ciclo planeado para maio e junho), mais um centenário de nascimento (Montgomery Clift), mais um programa em colaboração (com os Encontros Cinematográficos do Fundão) e três outros ciclos de cinema português – a homenagem a José Mário Branco, os 50 anos do Centro Português de Cinema e a pequena mostra das adaptações cinematográficas da obra de Bernardo Santareno, também esta no centenário de nascimento.
Em relação a todos os programas suspensos, a nossa escolha foi então a de aceitar a sua interrupção ou o seu cancelamento na data prevista, não desistindo de vir a realizar qualquer um deles quando tal se revelar possível, e não transpondo para a comunicação em linha (e, aí, necessariamente de forma parcial, simbólica ou travestida), o que foi pensado para a sala e que temos a intenção de fazer na sala. A escolha foi portanto a de
separar estas frentes, nunca as pensando como intermutáveis. Mais do que uma impossibilidade prática, esta é uma decisão de fundo, que, aqui e agora, queremos sublinhar. A vontade de incrementar o acesso ao arquivo da Cinemateca por todos aqueles que nos possam seguir à distância, ou de organizar acontecimentos específicos para esta comunicação à distância, é uma vontade complementar, que não preenche a lacuna gerada pelo silêncio das salas, que é no fundo a da
plena experiência do cinema. E, quanto a esta última, mais do que apenas referi-la, ou mais do que insistir na saudade dela, talvez se dê o caso que este seja precisamente um bom momento para pensar ainda mais, e com mais consequência, em tudo o que nela está envolvido.
Ao dizê-lo, e sabendo bem quanto o nosso propósito museográfico acrescenta nesta conversa um dado adicional (as salas da Cinemateca como lugares da experiência tanto quanto possível “original”, a primazia da projeção nos suportes originais…), não estou de modo nenhum a reduzir este assunto às nossas salas ou à questão “cinemateca”. Com as nossas salas, estão neste momento apagadas todas as salas de cinema do país, ou, na verdade, de todo o mundo donde nos chegam notícias, tendo a “experiência do cinema” sido transposta para a casa de cada um. Contudo, em Portugal, este apagamento ocorre numa época histórica que se segue ao que foi uma destruição da rede de salas de cinema ainda maior do que em muitos outros países, e de uma forma ainda mais desprotegida do que aconteceu em vários outros países. Para todos aqueles que se têm batido por uma mínima restauração gradual dessa rede, e portanto da única, completa,
experiência do cinema (agora sem aspas), o “cinema em casa”, sendo muito bem-vindo nestas circunstâncias, não deve assim suspender a nossa atenção a esse problema de fundo, que não é menos de que uma questão essencial tanto para o futuro do cinema entre nós como para a variedade e riqueza da nossa vida social.
Que o apagamento da sala nos leve então a pensar ainda mais nas emoções que só nela podemos viver. E quando, mais tarde, em plena segurança, pudermos voltar a usufruir desses espaços, que os saibamos ainda mais valorizar e defender. No que está ao nosso alcance, a Cinemateca contribuirá para esse esforço mais alargado, e é, e será sempre, parte desse pensamento, dessas emoções e dessa defesa.
José Manuel Costa