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Assunto: Coleções
Data: 15/02/2018
Textos & Imagens 7
Textos & Imagens 7
Na introdução à versão norte-americana de “Das Ornament der Masse”, Thomas Levin chama a atenção para uma metodologia programática presente na secção de abertura do ensaio com o mesmo título, datado de 1927, na qual Kracauer enuncia o modo como a insignificância dos artefactos quotidianos os capacita para se tornarem índices ou sintomas de condições históricas específicas:
A posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada com maior rigor a partir de uma análise de expressões inconspícuas ao nível superficial do que a partir dos juízos que essa época produz a propósito de si mesma. Já que esses juízos são expressões de tendências de uma era particular, não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição geral. Pelo contrário, as expressões ao nível superficial, em virtude da sua natureza inconsciente, providenciam acesso não mediado à substância fundamental do estado das coisas. Correlativamente, o conhecimento do estado das coisas depende da interpretação dessas expressões de nível superficial. A substância fundamental de uma época e dos seus impulsos desapercebidos iluminam-se reciprocamente”.
 
Como se entende este programa e quais as suas consequências no esquema interpretativo desenvolvido por Kracauer ao longo dos ensaios que constituem esta coletânea? Noutros termos, como é que o domínio da realidade empírica – e em particular as suas superfícies, previamente rejeitadas como reino do vazio e da ausência – veio a assumir um papel tão central no pensamento de Kracauer? Cremos que tal se deve a uma alteração radical da compreensão da filosofia da história, fruto de um longo diálogo com Walter Benjamin e Theodor Adorno, que redunda na substituição de um modelo histórico estático como queda ou declínio por uma conceção da história como processo de desencanto e de antagonismo entre as forças da natureza e as da razão. Por outro lado, o estudo sobre as novelas detetivescas revela uma combinação dos seus interesses filosóficos iniciais com a investigação da cultura de massas; ostensivamente um estudo sobre a ação detetivesca, esse ensaio conhece uma dívida para com a obra de Kierkegaard, cujo modelo de esferas interrelacionadas (estética, ética e religiosa) foi apropriado por Kracauer. Esta importação de Kierkegaard só aparentemente é arcaica; tal como Hannah Arendt comentou a Anson Rabinbach (“In The Shadow of Catastrophe: German Intelectuals Between Apocalypse And Enlightment”), depois da I Guerra Kierkegaard era o filósofo do dia. Que razão dita a profunda influência de um pensador tão intensamente cristão em intelectuais de confissões religiosas diferentes é uma questão que não pode ser respondida aqui, bastando que fiquemos com a ideia de que o pensamento de Kierkegaard configurou a noção de vocação crítica desenvolvida por Kracauer e que esse pensamento oferece um enquadramento trágico para a agenda político-cultural de Kracauer durante o período de Weimar.
No que ao cinema diz respeito, Kracauer é sobretudo conhecido pela obra “From Caligari To Hitler : A Psychological History Of The German Cinema”, de 1947, na qual apresentava uma história do cinema alemão dos anos entre as guerras mundiais, argumentando que os seus temas refletiam as condições psicológicas e sociais que conduziram ao nazismo, e também pelo livro “Theory of Film : The Redemption of Physical Reality” (1960), no qual assume a noção chave que subjaz à sua conceptualização de estética cinematográfica “material”: o cinema é essencialmente uma extensão da fotografia, partilhando com esse médium uma marcante afinidade com o mundo físico e visível que nos rodeia. O cinema torna-se ele próprio quando regista e revela a realidade física.  Apesar da importância capital destas duas obras, acreditamos que elas estão longe de sintetizar todo o pensamento cinematográfico de Kracauer, sendo justamente nos ensaios dos anos 20 aqui coligidos que podemos encontrar as perspetivas, antevisões e visões prospetivas que hão de configurar as teorizações posteriores, conferindo-lhes um sentido e uma lógica interna que, de certo modo, as tornou um cânone. Assim, a estética do cinema construída por três dos mais importantes pensadores do século XX – Theodor Adorno, Walter Benjamin e Siegfried Kracauer, abre a possibilidade de pensar a experiência da modernidade sob a perspetiva de uma crítica filosófica que opera a partir da arte e dos meios de comunicação de massas. Habitualmente, a maioria dos trabalhos no domínio da teoria crítica sobre a temática da arte, da tecnologia e da cultura de massas reduzem o campo problemático a uma caracterização da indústria cultural de Adorno e Max Horkheimer como pessimista e elitista oposta ao otimismo tecnológico que Benjamin desenvolveu no ensaio “A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Mecânica”. É neste contexto que se revela a importância fulcral da obra de Siegfried Kracauer, autor central para fundar e discutir ao mesmo tempo uma teoria do cinema.
Os escritos contidos neste volume, cujo significativo subtítulo “Weimar Essays” remete imediatamente para uma época histórica e as suas determinações, para além de críticas de cinema, são constituídos por recensões de novelas detetivescas e literatura de divulgação, textos sobre o circo, a cidade, o desporto, o teatro, entre outros) e manifestam exuberantemente a intenção de desenvolver uma estética cinematográfica a partir de uma perspetiva da modernidade. Ao longo da obra torna-se evidente uma outra translação muito significativa do pensamento de Kracauer: a compreensão pessimista da modernidade, que compartilha com Max Weber e Georg Simmel, entre outros, que afirma a privação humana de um horizonte de experiência que permitiria aos homens conferir sentido aos processos relacionados com a técnica, a ciência e a economia capitalista, evolui para uma curiosidade astuta em relação aos fenómenos da vida moderna, em particular, a cultura de massas. O objetivo passa a ser, não o fundamento de uma noção expandida de modernismo estético, mas relacionar a fotografia e o cinema com aquilo que, para o autor, define o século XX: a produção, o consumo e a emergente sociedade de massas. Se quisermos levar mais longe e aprofundar o contraste com o pensamento de Walter Benjamin, diremos que, onde Benjamin via o esvaziamento do tradicional sentido aurático como algo de positivo que poderia libertar as massas de qualquer tendência de queda no totalitarismo (nazi ou fascista), Kracauer acreditava que a modernidade representava “um esvaziamento de sentido, uma bifurcação do ser e da verdade” (Thomas Levin, “Introduction”). Portanto, ao contrário de Benjamin, Kracauer descreve o modo como a ascensão das massas mediatizadas é acompanhada pelo esvaziamento de sentido – um esvaziamento impulsionado pelos valores capitalistas que competem com e minam as formas não-fetichizadas de conferir poder às massas.
 
Arnaldo Mesquita
 
Siegfried Kracauer, The Mass Ornament : Weimar Essays / translated by Thomas Y. Levin. London : Harvard University Press, 1995.
Tipologia documental: Livro
Cota: 62 (081)