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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/12/2023
Textos & Imagens 63
Textos & Imagens 63
É pertinente, de antemão, reflectir um pouco sobre a profissão de actor no século XIX. As suas últimas décadas constituem uma época em que se observa uma transformação da imagem do artista, ganha a pulso, mas reflexo de transformações sociais e não alheias à emergência da burguesia como classe social.
O actor vai cultivar a sua imagem, partindo da sua perpetuação em retrato, pintado e depois fotografado, bastas vezes incorporando uma personagem do seu repertório. Todavia, faz-se também representar na companhia de família ou amigos, reflectindo um desejo de ascensão social.
Não obstante uma maior preocupação com a gestão da carreira – na sequência, também, de uma mudança de paradigma que se faz gradualmente nos alvores do teatro realista – outras formas de cultivar a imagem são exploradas, como a publicação de autobiografias, embora se registem trabalhos pioneiros oriundos de França e da Inglaterra ainda no século XVIII.
António Pinheiro recorda um episódio da viragem do século (XIX-XX) numa digressão pelo país. Em localidade remota, alguém chama a atenção, com a aproximação de uma companhia teatral, “guarda as pratas que vêm aí os cómicos”. É justamente contra esta imagem negativa da classe que os artistas tiveram que lidar.
Em meados do século XIX vários actores e actrizes portugueses fazem publicar as suas memórias e biografias, constituindo uma primeira geração com esta preocupação. Nas primeiras décadas do século XX, bastantes são os exemplos, não obstante a sua consagração ser já uma realidade. Adelina Abranches e Eduardo Brasão servem-se da maior capacidade de escrita dos respectivos filhos, testemunhando memórias da sua vida artística e apontamentos pessoais. Augusto Rosa segue as pegadas do pai, João Anastácio Rosa, exemplo paradigmático do artista cultivador da sua imagem, numa geração anterior. Chaby Pinheiro e Carlos Santos lançam igualmente as suas memórias. António Pinheiro escreve e publica três obras autobiográficas.
O gosto, o hábito, a “moda” das autobiografias teatrais tem assim a sua génese na procura de uma melhoria da imagem da classe e da individualidade, modelo que se estende bem adentro do século XX nalguns casos, cujos objectivos se prendem com esta preocupação de cultivo pessoal e de grupo.
Quando António Pinheiro inicia a escrita de Contos Largos…, é já um conceituadíssimo nome na cena teatral portuguesa, bastas vezes mencionado como Professor António Pinheiro ou Mestre António Pinheiro, em virtude da sua extensa carreira como, não só actor, mas também encenador e professor de estética e arte de representar.
Considerando que se trata de alguém que está bem além da prática teatral, numa carreira muito pautada pela reflexão e defesa consistente de ideias sobre a profissão – na verdade profissões – e a arte teatral; não espantará que se esteja perante uma obra que apresenta abundante informação sobre o universo teatral, acompanhada de documentação que a sustenta. Isto torna-se mais relevante, se atendermos ao facto de, entre os seus pares, os livros de memórias não se atentarem a aspectos abrangentes do mundo teatral e exteriores ao foco individual da carreira de cada bio / autobiografado.
Já se verificara semelhante fenómeno na publicação dos dois anteriores livros autobiográficos de Pinheiro, Ossos do Ofício, 1912, e Coisas da Vida…, 1923. No caso deste Contos Largos…, o período abordado é da mais relevante expressão no percurso profissional do autor, mas também no fenómeno teatral e suas mudanças de paradigma que Pinheiro viveu. Válido será isto, não só para a representação e concepção teatral, mas também no campo do ensino da arte e no universo sindicalista dos seus profissionais.
Assim o livro dá conta do crucial papel da Empresa Rosas & Brasão, companhia residente no então Teatro D. Amélia (São Luiz), no centro da efervescência teatral de Lisboa. Aqui notabiliza-se Pinheiro como actor e encenador, antes de, entre outras experiências, ingressar como societário no Teatro Nacional D. Maria II (rebaptizado Garret com o advento da República), tornando-se seu encenador e director de cena.
A abundante documentação reproduzida sobre as questões que orientaram (ou desorientaram) o D. Maria II nesta época, é da maior importância para compreender o “lindo pé de campanha” que Pinheiro identifica na sala do Rossio.
Se António Pinheiro é figura central na evolução do ensino de teatro em Portugal, não o é menos no que respeita ao sindicalismo e às sucessivas associações que criou e defendeu, culminando no Grémio dos Artistas Teatrais.
No que respeita ao foco específico que o cinema traz a este espaço, é absolutamente indispensável a sua leitura, pois a obra dá conta da passagem do autor pela Invicta Film do Porto, na primeira metade dos anos 20. A este respeito, Pinheiro conta o que foi a sua passagem pelas mais relevantes produções em que participou, desde o desastroso início da sua representação nas primeiras cenas filmadas de Os Fidalgos da Casa Mourisca, Georges Pallu, 1920. Essas primeiras cenas estão na génese de uma muito bem conseguida colaboração, que o leva até à direcção de actores e realização. Conta de que modo a empresa, que afirma garantir o lugar do artista como professor da então Escola da Arte de Representar, “nunca empregou maiores, nem menores esforços” nesse sentido, o que testemunha com a sua forma crítica e bastas vezes corrosiva – e também humilde, apesar de tudo - que caracteriza a sua pena.
Fica também testemunhada a sua primeira experiência cinematográfica – no Rio de Janeiro – no filme Milagres de Nossa Senhora da Penha, 1910, infelizmente desaparecido, e de que fala como sendo “extraordinária de mal feita” face à experiência vivenciada na Invicta. Filme executado por portugueses emigrados, é produzido no contexto de uma enorme devoção religiosa dessas pessoas mas, sobretudo, trata-se de documentação singular sobre uma obra esquecida, executada e interpretada por portugueses.
Leitura essencial para compreender o teatro português das primeiras décadas do século XX, e também para entender aspectos essenciais – do ponto de vista dos actores – da mais importante empresa cinematográfica desses anos. E é neste aspecto, numa palavra, que reside a particularidade e centralidade da obra. Por Largos que sejam os Contos, há nas suas páginas elementos da realidade política, histórica, jornalística e social absolutamente incontornáveis.
 
Luís Gameiro
Julho 2023
 
 
Bibliografia de apoio:
- Aliverti, Maria Ines, Poesia Fuggitiva Sugli Attori nell’età di Voltaire, Bulzoni, Roma, 1992.
- Bastos, António de Sousa, Carteira do Artista, Antiga Casa Bertrand – José Bastos, Lisboa, 1898.
- Brilhante, Maria João, João Anastácio Rosa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2022
 
 
António Pinheiro, Contos Largos… s.l., Tipografia Costa Sanches, 1929
Tipologia documental: livro
Cota: 81 PINHEIRO