O termo “estruturalismo” é utilizado de diferentes modos e diferentes graus de precisão – entendendo-se “precisão” como um processo analítico de densificação – para referir um determinado número de actividades críticas que determinam a cultura contemporânea. Dito de outro modo, e de uma forma mais simples, o estruturalismo investiga as inter-relações de elementos pertencentes a construções dadas: sejam frases, obras de arte ou formas culturais. Nesse sentido, os estruturalistas procuraram determinar os modos através dos quais as manifestações superficiais de fenómenos tais como o discurso, o vestuário e modalidades de parentesco se relacionam com padrões alargados de comportamentos linguísticos, psicológicos ou sociais. Assim, o impulso é simultaneamente horizontal – descrição dos fenómenos tais como eles se manifestam e existem no tempo e no espaço – e vertical – mostrando como esses fenómenos coalescem com outros elementos em sistemas inter-relacionados. Esta referência e caracterização sumaríssimas da “escola” estruturalista impõe-se, ou antepõe-se, à qualificação de Noël Burch como um pensador pertencente a essa tendência, visto que o estudo que efectua das operações cinematográficas e da inter-relação de elementos fílmicos pode ser visto como contraparte de teorias desenvolvidas por pensadores como Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Lacan ou Claude Lévi-Strauss, para só citar alguns dos mais proeminentes. Antes de nos debruçarmos sobre a sua obra mais influente – “Praxis do Cinema”
(1) – convém colocar a seguinte questão: qual a pertinência hoje de uma teoria que tinha como fundamento uma síntese de semiótica, marxismo e psicanálise, surgida nos anos 70 do século passado e que nunca deixou de ser objecto de intensa controvérsia e de polémicas que raiaram, em determinados momentos, o desencadear de uma guerra civil entre os meios pensantes ? Responder a essa questão, se resposta existe, implica em primeiro lugar, definir o que é uma teoria cinematográfica em sentido lato ou, pelo menos, definir o seu objecto, desígnio e fronteiras, mesmo correndo o risco de deixar de fora todas as suas potencialidades. Assim, pomos de lado as variações e derivas contemporâneas da teoria cinematográfica (algumas das quais são tão polémicas e controversas hoje como o estruturalismo em geral e o estruturalismo aplicado ao cinema em particular o foi no seu tempo), e ensaiamos uma tentativa de definição muito limitada, propositadamente limitada para que nela se enquadre facilmente o pensamento de Burch. Nesse sentido, diríamos que uma teoria cinematográfica procura, em primeiro lugar, dar resposta a questões genéricas, constituindo-se como um sistema denso e intrincado de proposições e teses que procuram explicar a natureza geral de todos os filmes – os seus materiais, características determinantes, tipos de inter-acção com as audiências, relacionamento com o mundo real, etc. Idealmente, uma teoria cinematográfica não se refere ao significado concreto de nenhum filme em particular, antes procurando descobrir que mecanismos e processos de todos os níveis permitem que
todos os filmes produzam significado. Destas considerações, e de outras que seria possível tecer em torno de uma definição mais elaborada de teoria cinematográfica, facilmente se depreende que nenhum labor teórico se torna inactual ou fica desapossado da sua validação como paradigma, antes se actualizando permanentemente e gerando novas problematizações. Não cabendo aqui uma exploração de todas as possíveis filiações da obra de Burch em sistemas teórico-conceptuais hodiernos, sob pena de perdermos de vista o objecto concreto de que nos ocupamos, sempre diremos que encontramos traços do pensamento do autor em muita da teorização cinematográfica contemporânea, se não no método, pelo menos no que concerne a princípios básicos de uma série de problemas pertinentes para a questão de saber como se constitui o objecto-filme.
Antes de tudo, convém referir que os textos aqui reunidos foram inicialmente publicados na revista “Cahiers du Cinéma” como artigos singulares e posteriormente compilados e organizados em quatro grandes blocos temáticos – Elementos de base, Dialécticas, Elementos perturbadores e Reflexões sobre o tema, a que se junta uma Conclusão na qual o autor comenta a forma como os seus artigos foram acolhidos (e muitas vezes ferozmente criticados) pelos leitores da revista e as previsões sobre o futuro cinematográfico
(2) –, centrando-se a análise nas primeiras manifestações cinematográficas: é nos modos de representação primitivos que encontra a essência da
praxis cinematográfica. Talvez não seja abusivo afirmar que as suas conclusões sobre as relações entre os tempos e os planos, a sua visão do espaço fílmico e sobretudo o modo como teoriza as linguagens e os estilos são, ainda hoje, absolutamente fundamentais para todos aqueles que, a partir de qualquer ponto de observação em que se coloquem, pretendam abordar e compreender a estrutura da criação cinematográfica. A palavra “estrutura” é particularmente relevante, como veremos adiante. Mas antes ouçamos o que Francesco Casetti nos diz sobre esta obra de Noël Burch:
(1) Praxis do Cinema. Lisboa, Editorial Estampa, 1973.
(2) A esse propósito, é irresistível transcrever a seguinte declaração:
“Reparar-se-á, que a despeito do nosso desejo de objectividade no campo da análise das obras, neste outro plano só podemos ser claramente parciais, já que estamos persuadidos de que o cinema é a única arte a ter um futuro imediato, e a única para a qual um progresso a vir é desde já previsível, ou, pelo menos, preconizável, em termos de evolução interna da “linguagem” e das formas cinematográficas…domínio que cremos de primeira importância na gestão de uma arte.” p. 203.