Ver

Pesquisa

Destaques

Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 06/06/2020
Textos & Imagens 46
Textos & Imagens 46
A obra “Archéologie du cinéma et mémoire du monde” é constituída por um extenso diálogo entre Jean-Luc Godard e Youssef Ishaghpour em torno do filme “Histoire(s) du Cinéma”. Na página 41, a propósito da relação entre “Histoire(s) du Cinéma”-livro e “Histoires du Cinéma”-filme, Godard declara: “Pour reprendre ce que les médias de l’époque nous serinaient, quand j’étais lycéen, à propos de l’existentialisme…, je n’en savais pas grand-chose, mais je me souviens de cette phrase: «Pour l’existentialisme, l’existence précède l’essence, tandis qu’ avant l’essence précédait l’existence», voilà, on comprenait quelque chose, on sentait quelque chose, on avait comme ça une image… Je dirais que le livre c’est l’essence, les films c’est l’existence, voilà, pour se servir de ces images-là, je peux le dire ainsi”. Tal discurso, na sua pristina clareza, exemplifica um tipo de ideia que sempre esteve presente na produção textual do cineasta: a de que o cinema é uma forma de pensamento (uma forma que pensa), ideia essa que se adensa, complexifica e se expande neste diálogo, revelando uma relação do cineasta com a Filosofia que passa muito pela convicção expressa por Maurice Merleau-Ponty nas suas prelecções do Collège de France: a existência de práticas não-filosóficas, incluindo o cinema, que pensam os problemas filosóficos de uma forma mais intensa e profunda do que a Filosofia académica. No ensaio sobre cinema redigido em 1945[1], Merleau-Ponty explica que a aparência das coisas seria disruptiva se pudéssemos ver como “coisas” o intervalo entre elas e que as devemos ver não como um mosaico, mas como um sistema de configurações. Espantosamente (ou talvez não…), esta mesma ideia de constelação aparece explicitamente colocada numa questão de Ishaghpour (página 9), quando este pergunta a Godard se os cortes transversais ou verticais utilizados para constituir o conjunto de “histórias” em “Histoire(s) du Cinéma” tinham sido concebidos em função de uma “Ideia” de cinema, partir de diferentes aspectos do cinema que desenham uma Ideia em forma de constelação. Godard responde que são oito constelações (ou quatro vezes duas…): o visível e invisível, reconfigurando a relação interna do filme com o tempo, com a rememoração. Reencontramos aqui, novamente, um vocabulário que remete para a tradição filosófica platónica: a Ideia=Forma=Forma que pensa.
Regressando a Merleau-Ponty, convém sublinhar que o filósofo francês considera que o que é novo num modo de pensar contemporâneo (seja ele filosófico ou cinematográfico) é o lançamento da consciência no mundo, sujeita ao olhar dos outros e aprendendo com esse olhar aquilo que ela mesma é. Ou, como ele próprio diz: “(…) s’étonner de cette inhérence du moi au monde et du moi à autrui(…) à faire voir le lien du sujet et du monde, du sujet et des autres, au lieu de l’expliquer(…)”. Ou seja, de acordo com Merleau-Ponty, o papel do artista (do cineasta) é o de construir imagens que tornem disruptiva a nossa relação com o mundo de modo a expandir e aprofundar a percepção normal. Ao longo desta entrevista-diálogo, Godard esforça-se por seguir esse caminho que, de resto, notamos quer nas inumeráveis entrevistas que foi dando ao longo da sua carreira, quer nos filmes eles mesmos.
 
[1] MERLEAU-PONTY, Maurice, “Le cinéma et la nouvelle psychologie”. Paris, Gallimard, 2009. Disponível para consulta na Biblioteca (cota: 626).
Para além destes aspectos, consolida-se ao longo da entrevista/diálogo uma teoria da História e da História do Cinema, profusamente ilustrada com a menção de filósofos (Michel Foucault, Walter Benjamin, Henri Bergson e outros), uma teoria que encontra em “Histoire(s) du Cinéma” a sua ilustração prática. Nas palavras do próprio Godard: “Le cinéma est lui-même un moyen d’écrire l’histoire, e il n’y pas de différence entre faire du cinéma et écrire l’histoire du cinéma; le cinéma fait sa propre histoire en se faisant”. Ou seja, o cineasta entende que o filme se constitui ao mesmo tempo como história do cinema e história do século XX, procedendo a partir de uma urgência do presente a um resgate do passado. Ishaghpour nota a proximidade desta concepção daquela que é expressa por Walter Benjamin na obra “Paris, Capitale du XIXème Siècle”, sublinhando a mesma metodologia e concepção original: a vontade de constituir inteiramente uma obra a partir de arquivos e citações e, através da montagem, ou como dizia Benjamin, da edificação de grandes construções a partir de pequenos elementos seleccionados e retrabalhados com precisão e rigor. Sobre este ponto, achamos útil regressar a Merleau-Ponty e assinalar esta afinidade de concepção entre o pensamento do filósofo e a do cineasta/filosofante: a insistência na exploração de diferentes tipos de intervalo entre objectos (neste caso, objectos de memória ou de rememoração), como forma de resgate do real e de renovação da nossa intimidade com o mundo,  o lançamento da consciência no mundo a que aludimos anteriormente. Ou, parafraseando Benjamin, o filme de Godard não se ocupa de lenha e de cinzas, trata da memória presente da chama viva.
A propósito desta obra, gostaríamos ainda de apontar mais uma “afinidade electiva”. O facto de “Histoire’s du Cinéma” se tratar de um objecto dual – um filme e um livro[1], que redefine as relações entre o universo fílmico e o universo textual, em que cada uma das versões interroga profundamente essa relação, que nos leva a considerar essa hibridez genérica e formal como sinal de uma obra total, teleologicamente pensada como algo que vai ainda além dos territórios demarcados do texto e do texto fílmico: Godard invade e explora o domínio das artes plásticas e da música, estabelecendo um fluxo permanente entre diversas formas de expressão artística ou, como diria Martin Heidegger, de falar da “totalidade do ente”. Mas, a afinidade que nos interessa realçar é com uma obra da Antiguidade: “Fedro”, de Platão. Na última parte desta obra, intitulada “Discurso sobre a retórica”, Sócrates exprime-se sobre as muitas facetas da relação entre a oralidade e a escrita, entre a linguagem e a realidade. Em “Archéologie du Cinéma et mémoire du siècle”, Godard e Ishaghpour fazem outro tanto, na mesma senda do filósofo ateniense, justificando a polifonia da obra e um paralelismo entre a retórica (no sentido em que o ateniense a concebe) e o cinema/texto/oralidade e as respectivas capacidades psicagógicas, a técnica de conduzir as almas no caminho da justiça e da contemplação do Belo.
Resta dizer que, no final da obra se inclui o texto “J-L G cinéaste de la vie moderne. La poétique dans l’histoire”, da autoria de Youssef Ishaghpour, que procura analisar a relação entre a poética e a historicidade na obra de Jean-Luc Godard, um tipo de análise que aponta para o facto de na obra do cineasta já não se tratar do “presente como História”, ou de um devir no qual se inscreve, mas de uma “actualidade” que se torna “acção”, “revelação”, de uma História no presente; ou seja constituída por traços do passado e de virtualidades que, simultaneamente são constitutivas do presente. Nesse sentido, e de acordo com a linha argumentativa de Ishaghpour, a arte não procederia da arte e da História, mas primordialmente da experiência limite daquilo que é actual, na sua historicidade, e dos materiais expressivos que reflectem a capacidade poética de os metamorfosear a fim de libertar as suas potencialidades. Como diz o autor: “En cela Godard accomplit résolument l’impératif d’être moderne, en harmonie avec l’existence même du cinéma comme reproduction technique, qui tend vers le présent”.
 
Arnaldo Mesquita
 
Archeologie du cinéma et mémoire du siècle: dialogue / Jean-Luc Godard, Youssef Ishaghpour. Tours, Farrago, cop. 2000, 118 p.
Tipologia documental: livro
Cota: 79 HISTOIRE(S) DU CINÉMA
 
[1] GODARD, Jean-Luc, “Histoire(s) du Cinéma”. Paris, Gallimard-Gaumont, 1999. Disponível para consulta na Biblioteca (cota: 79 HISTOIRE(S) DU CINÉMA).