II
Em “A Imagem-Tempo : Cinema 2”
[1], Gilles Deleuze dedica-se à análise da estética de Ozu. Segundo o filósofo francês, e de acordo com uma forma de pensar que é muito deleuziana, a obra do cineasta japonês “consegue tornar visíveis e sonoros o tempo e o pensamento”. O que Deleuze parece querer dizer é que Ozu conseguiu tornar sensíveis o tempo e o pensamento, tornando-os visíveis e sonoros; na banalidade do quotidiano que é a tessitura dos seus filmes, as situações óticas puras (a que Deleuze chamou “opsignes”) substituem a “imagem-acção”, colocando os sentidos numa relação direta com o tempo e o pensamento. Neste ensaio, Deleuze sublinha três aspetos importantes em Ozu: a câmara, a estética do vazio e a estética da natureza morta, sendo estes dois últimos elementos variantes das situações óticas. Se interpretamos bem a teorização de Deleuze, existem semelhanças entre ambos, distinguindo-os justamente aquilo que distingue o vazio e o cheio. Essa estética do vazio relaciona-se, segundo Deleuze, com a tradição budista Zen (convém lembrar que Zeman omite o budismo da equação, detendo-se apenas no Zen).
Por outro lado, a natureza morta é para Deleuze uma imagem-tempo direta, ou seja, uma imagem pura e direta do tempo: dá a ver uma mudança, mas a forma daquilo que muda, em si mesma, não muda e não passa. O que lhe permite afirmar:” A natureza morta é o tempo, já que tudo o que muda está no tempo, mas o tempo ele mesmo não muda”.
Esta fulgurante análise que lê a obra de Ozu à luz de uma metafísica da temporalidade e da continuidade e harmonia do universo que a vida dos homens parece perturbar, conduz Deleuze a afirmar “É o pensamento de Ozu: a vida é simples, e o homem insiste em complicá-la agitando as águas paradas. Há um tempo para a vida, um tempo para a morte, um tempo para a mãe e um tempo para a filha, mas os homens misturam-nos, fazem-nos surgir em desordem, levantam-lhes conflitos”.
III
E chegamos assim à terceira destas leituras de Ozu: “Formes de L’Impermanence: Le Style de Yasujiro Ozu”, de Youssef Ishaghpour, editado pelas Éditions Yellow Now em 1994 e reeditado em 2002 pelas Éditions Léo Scheer. O círculo – que é também o pictograma que representa o vazio, como se pode ver na imagem acima reproduzida – completa-se; voltamos a uma chave de leitura que fundamenta a estética de Ozu no “Mu Jô”: o vazio constante; a impermanência, a que agora se associam o estilo e as formas próprias da obra do cineasta, já que esse sentimento – o da impermanência – impregna o quotidiano, a prática Zen, a estética do momento evanescente e do intervalo. Logo, caracteriza o estilo do “mais japonês de todos os cineastas japoneses”: Yasujiro Ozu. Desde já, podemos notar o contraste da tese de Ishaghpour com a de Zeman: a obra de Ozu não visa a transcendência ou o desejo de abandonar a vida quotidiana e a sua banalidade. Pelo contrário, aspira à “euforia do êxtase apático” que resulta do conhecimento da impermanência, ou do Nada como fundamento ontológico do mundo. De acordo com o autor, a impermanência, que Ishaghpour faz corresponder a uma categoria estética de direito próprio, transforma todas as coisas na obra de Ozu num relampejo fugaz e induz ao estado da beatitude estética. A tese é, como já percebemos, ousada: aposta tudo na forma e metamorfoseia o cinema (todo o cinema?) nessa imagem fugaz, vazia de substância; aquilo que é visto num momento e que traduz a impermanência do mundo e da vida banal. Se nos detivermos a pensar nesta formulação, forçoso é concluir que a beleza reside na impermanência e que essa beleza não é senão distanciamento e que a redução do mundo à vida banal é a grande conquista do cinema de Ozu: o sentimento e o
pathos da beleza e do efémero, a sensação da “última vez” tão familiar a todos aqueles que conhecem e amam o cinema de Ozu.
Arnaldo Mesquita
Ciclo Yasujiro Ozu. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980
Cota: 81 OZU
Youssef Ishaghpour,
Formes de l'impermanence : le style de Yasujiro Ozu. Paris, Éditions Léo Scheer, 2002
Cota: 81 OZU
Gilles Deleuze,
A Imagem-Tempo : Cinema 2 (tradução e introdução de Rafael Godinho). Lisboa, Assírio & Alvim, 2006
Cota: 631
[1] Gilles Deleuze,
A Imagem-Tempo : Cinema 2 (tradução e introdução de Rafael Godinho). Lisboa, Assírio & Alvim, 2006. Disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.