Publicada pela primeira vez em 1951, esta é obviamente uma obra datada. Datada num sentido muito preciso: depois da sua edição a teoria cinematográfica como domínio epistemológico evoluiu, transformou-se, incorporou novas vias de análise e novas áreas de conhecimento, sobretudo devido ao influxo de pesquisas académicas oriundas do universo anglo-saxónico. A razão pela qual a destacamos, para além do seu valor intrínseco, é o seu absoluto pioneirismo e singularidade. De facto, é a primeiríssima síntese das teorias cinematográficas elaboradas até então, caracterizando-se pelo seu caráter exaustivo e rigoroso. De resto, o pioneirismo de Guido Aristarco não se esgota na conceção desta obra: foi o primeiro professor universitário de cinema em Itália (em Turim e depois em Roma). Destacou-se também pela fundação e direção da revista
Cinema Nuovo e pela introdução da teoria marxista na crítica cinematográfica, influenciado pelo pensamento de Antonio Gramsci e Gyorgy Lukács. Quando faleceu, aos 80 anos, deixou um legado que, seja qual for a perspetiva, é notável, encerrando uma era de intensos debates ideológicos sobre o “especificamente cinematográfico” e a sua inserção na alta cultura, numa chave marxista e gramsciana consagrada em 1965 no prefácio que Lukács escreveu para a sua obra “Il Dissolvimento Della Ragione : Discurso Sul Cinema”
[1]. O primeiro capítulo desse livro, intitulado “Marx, O Cinema e a Crítica do Filme”, enuncia, catorze anos depois, o modo como Aristarco utiliza os utensílios e a metodologia do materialismo dialético, não só na análise de filmes mas também no modo como analisa a estrutura das grandes teorias cinematográficas na obra que hoje nos ocupa, pelo que a leitura deste texto se torna útil para a total compreensão de textos que, de outro modo, poderiam parecer excessivamente determinados por tendências ideológicas e subjugados a um programa político que lhes diminuiria o alcance e a importância.
Como sabemos, uma teoria é um conjunto de proposições coerentes e hierarquizadas representando um domínio determinado de fenómenos ou objetos, visando compreender, explicar, interpretar esses mesmos fenómenos ou objetos. Assim, as noções, ideias e conceitos abstratos aplicados a um domínio particular, como é o caso do cinema, são filtradas por Aristarco à luz de uma pragmática que nunca perde de vista a concretude desse mesmo domínio; a construção intelectual, hipotética e sintética, organizada em sistema é sempre verificada por um protocolo experimental; um conjunto de leis formando um sistema coerente que dá conta da natureza, variações e continuidades dos objetos. Se bem que o nosso sentido contemporâneo de teoria não derive precisamente do trabalho de Aristarco, damos por adquirido que o seu uso particular foi certamente representativo de uma vasta metamorfose ocorrida no imediato pós-guerra, envolvendo um novo conjunto de critérios indispensáveis para a identificação da teoria aliado a um distintivo conjunto de práticas institucionais. De outro modo, o empreendimento de Aristarco seria confrontado com uma dificuldade aparentemente inultrapassável: o de uma teoria sem prática e de uma prática sem teoria, nó górdio e dilema que o autor resolve ao criar o quadro mais completo dos debates originais ao fim dos anos 40, revelando uma enorme capacidade de compor uma galeria unificadora em que faz entrar todos aqueles autores que confrontaram o cinema a partir de uma perspetiva mais vasta do que a da simples recensão desta ou daquela obra particular.
[1] Disponível na Biblioteca da Cinemateca em tradução castelhana.