O segundo ensaio da coletânea (“Soixante Ans D’Art Cinématographique (1895-1955)”, bastante mais longo do que o primeiro, assinala as grandes etapas da evolução histórica do cinema nos seus primeiros sessenta nos de existência, introduzindo as temáticas da coleta, conservação e preservação, contendo ainda um esboço do chamado “movimento das cinematecas”, enunciando em pinceladas largas as problemáticas correlativas. É o Langlois recoletor/“glaneur” que sucede, complementa e justifica o Langlois historiador/político, antecendendo os ensaios que se dedicam exclusivamente à história, coleções e atividades da Cinémathèque Française e a textos de diferentes naturezas e distintos propósitos, que se debruçam sobre o “cinéma des nations” e sobre a obra de grandes figuras da história do cinema mundial, constituindo não um panteão, mas uma constelação de estrelas de intenso brilho (Cocteau, Epstein, Chaplin, Méliès, Stroheim, Bergman e tantos outros cuja memória e ilustração resultam da sua relação direta com Langlois).
Como caracterizar então o pensamento de Henri Langlois? Dificilmente classificável, é quase impossível enquadrá-lo num modelo estável e fixo, de tal modo se afasta dos empreendimentos crítico-teóricos canónicos, partilhando com eles apenas um aspeto muito específico: a tendência para uma visão totalizante, contrariada aqui pela dispersão dos centros. Assim, poderiamos ensaiar uma (provisória) caracterização: uma série de sistematicidades descontínuas cujo sentido é dado pela perspetiva, pelo ângulo de abordagem e pela delimitação do objeto. No fundo, o que distingue as duas categorias (empreendimento crítico – empreendimento arqueológico/genealógico), não é tanto o objeto como a perspetiva. E a de Langlois é única e irrepetível.
Afinal, de tanto querermos evitar falar do historicismo de Langlois, optando pela historicidade e positividade, nele desenbocamos inevitavelmente, sem com isso lhe atribuírmos uma natureza negativa: as visões originais, espontâneas, apaixonadas, são sempre mais interessantes e fecundas do que as estritamente rigorosas, frias e mecânicas. Se, como assinala Jean Narboni, para Langlois tudo o que aconteceu no mundo (desde a origem dos tempos) conduziu necessariamente “1) ao cinema 2) à Cinémathèque Française”, resta-nos concluir que Langlois assumiu um mecanismo de interação entre tradição histórica e enriquecimento fictício precisamente no momento em que, no sítio onde ficara uma lacuna no existente autêntico, a fantasia toma as rédeas para cumprir o que o historiador tardio reputava de essencial. Por outras palavras, se o mundo e a sua história têm como corolário os mitos e os fantasmas que povoam o “museu imaginário”
[1] do Doutor Langlois, tal não diminui, antes pelo contrário acrescenta a imensidão e o valor absoluto do seu legado.
Arnaldo Mesquita
Trois cents ans de cinéma : écrits / Henri Langlois; Jean Narboni, compil. Paris, Cahiers du Cinéma; Cinémathèque Française, cop. 1986.
Tipologia documental: livro
Cota: 70
[1] A felicíssima expressão foi cunhada por André Malraux.