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Assunto: colecções
Data: 19/07/2018
Textos & Imagens 29
Textos & Imagens 29
Contexto:
Salvo raríssimas exceções, as provas fotográficas do acervo da Cinemateca, num total aproximado de 400.000 itens, são arquivadas nas estantes não por fundos ou coleções mas por um esquema de classificação temático que contém 3 classes: fotografias de filmes (subclasses organizadas por realizador, por sua vez subdivididas por filme específico e, dentro deste, por tipo de obra: fotografias de rodagem ou de produção, fotografias de cena, fotografias promocionais), fotografias de personalidades e fotografias de outros assuntos relacionados com a história do cinema (por exemplo, eventos, salas de cinema, estúdios e laboratórios, etc.). Este esquema de organização dos documentos nas estantes[i] implica, assim, que o enfoque do processamento documental seja colocado na análise e descrição de conteúdo, operação indispensável para a sua “justa” arrumação.
De salientar, ainda, que as fotografias de filmes são frequentemente documentos “mudos” ou “silenciosos”, isto é, que não contêm em si os dados formais desejados para a sua identificação plena (título, autor, data e local de produção, objeto representado, etc.), sendo por isso necessário consultar fontes diversas para completar a sua descrição – e, consequentemente, a sua arrumação, acesso e comunicação.
 
Em análise:
A situação que aqui se apresenta diz respeito ao tratamento documental de provas fotográficas de filmes produzidos em diversas versões linguísticas, realizados na Europa e nos Estados Unidos nos primeiros anos da década de 30 como resposta aos obstáculos linguísticos na difusão internacional de filmes decorrentes da introdução do cinema sonoro[ii]: um mesmo filme é rodado em simultâneo por equipas diferentes oriundas de diversos países e diferentes línguas[iii]. A ideia é aplicada por diversas companhias produtoras, mas será nos estúdios da UFA (Universum Film AG) em Neubabelsberg, nos arredores de Berlim, que o fenómeno de coprodução intra-europeia em multi-versões linguísticas conhece maior dimensão. As produções eram trilingues e, por vezes, quadrilingues (alemão, francês, inglês, húngaro[iv]), de modo a abarcar inúmeros mercados no mundo inteiro. O alcance comercial não foi uniforme, tendo a coprodução para as versões em língua inglesa terminado em 1933 por não conseguir penetrar no tão desejado mercado norte-americano, mantendo-se a produção de versões em língua francesa, de maior sucesso e capacidade de exportação. No caso português, a maioria dos filmes produzidos em múltiplas versões linguísticas exibidos foram-no na sua versão francesa, «por a língua nos ser mais familiar»[v], o que não implica, de todo, que as provas fotográficas existentes no acervo da Cinemateca correspondam a essas versões[vi].
Mas se as filmagens são poliglotas, as fotografias mantêm-se silenciosas, colocando-se assim a pergunta: qual o filme (ou a versão) retratado na imagem?
 
#1. A primeira imagem com que nos deparámos quando começámos a trabalhar as fotografias de cena e de rodagem de filmes com diversas versões produzidos pela UFA foi uma fotografia identificada no verso, a lápis, com o título Stupéfiants, filme de Kurt Gerron e Roger Le Bon rodado, em parte, em Portugal em 1932. Sabendo que o filme teve duas versões, alemã e francesa, importava por isso saber a qual delas corresponderia aquela precisa imagem: à versão principal (alemã) ou à sua equivalente em língua francesa? Na imagem vê-se um barco, o General Osório, mas todos os seus ocupantes estão de costas. Sabendo, pela leitura de literatura especializada, que embora a assunção de que as cenas de rua e de multidões eram geralmente filmadas em planos gerais e usadas em todas as versões seja comummente aceite, a análise de filmes específicos pode demonstrar o contrário dado que os mercados a que estes filmes se destinavam eram bastante abrangentes mas não homogéneos e por isso as diferentes versões procuravam ir ao encontro dessa hegemonia, não podíamos assumir que o plano representado na imagem corresponderia às duas versões. A imagem tem uma marca de impressão: «72 - - F.53». Não existem mais imagens do(s) mesmo(s) filme(s).
 
#2. Várias fotografias do filme FP1, distribuído em Portugal pela Agência H. da Costa. A sua identificação foi bastante mais simples do que o “caso” anterior, uma vez que as três versões do filme (nas línguas alemã, francesa e inglesa, todas elas realizadas por Karl Hartl) tiveram como protagonistas actores sobejamente conhecidos (respectivamente, Hans Albers, Charles Boyer e Conrad Veidt) e nas provas em arquivo os protagonistas estão presentes em todas as imagens. As fotografias da versão alemã apresentam uma marca de impressão numérica.
 
#3. Um outro conjunto de imagens em tratamento era constituído por fotografias do filme Ich und die Kaiserin (Moi et l’Impératrice na versão em língua francesa, The Only Girl na versão em língua inglesa). Problema: se é verdade que os atores representados na imagem são tantas vezes eloquentes para a sua descrição, como vimos no exemplo anterior, neste caso até esse elemento se revelou ser insuficiente, uma vez que Lilian Harvey (estrela alemã nascida no Reino Unido e igualmente fluente em francês) interpretou as três versões linguísticas… e não foi a única, também Mady Christians interpreta a Imperatriz tanto na versão em língua alemã como na versão em língua inglesa! Das imagens existentes no arquivo, duas representam a mesma cena em que Juliette (nome da personagem interpretada por Harvey) acende o “narguilé” à Imperatriz – numa delas, a atriz francesa Danièle Brégis, na outra Mady Christians. Ou seja: uma questão resolvida (identificação sem dúvidas da fotografia correspondente à versão francesa), outra por resolver (pela simples análise da imagem não foi possível atribuir a segunda imagem a uma versão linguística específica). A imagem de Lilian Harvey e Mady Christians apresenta uma marca de impressão no canto inferior direito: «56».
 
 
[i] À exceção, por exemplo, dos álbuns fotográficos, cujas fotografias podem abranger imagens das diferentes tipologias, de acordo com o gosto do colecionador ou a intenção da entidade produtora.
[ii] Esta introdução não foi apenas uma alteração tecnológica mas uma transição que afetou todos os elementos do ecossistema (produção, distribuição, exibição, receção), envolvendo processos sociais e manifestando-se numa alteração das práticas culturais.
[iii] Portugal não ficou alheio ao fenómeno ou estratégia: em 1930, a companhia norte-americana Paramount instala-se em Joinville (França) para produzir versões em diversas línguas e a sua subsidiária portuguesa faz um recenseamento artístico em Portugal para a produção de versões em língua portuguesa. Desse “recenseamento” são selecionados os atores (Corina Freire, Raul de Carvalho, Ester Leão) que interpretariam A Canção Do Berço, de Alberto Cavalcanti (versão em língua portuguesa do filme norte-americano Sarah and Son, de Dorothy Arzner filmada e sonorizada nos estúdios Paramount em Joinville) e A Dama Que Ri, do realizador chileno Jorge Infante (versão do filme The Laughing Lady de Victor Schertzinger, igualmente filmada e sonorizada nos estúdios Paramount em Joinville).
[iv] Veja-se a fotografia de rodagem do filme Melodie des Herzens (realização: Hanns Schwarz, 1929) em que, segundo a legenda aposta no verso da prova, «Willy Fritsch aprende a pronunciar a lingua magyar».
[v] FRAGOSO, Fernando (1932), «A UFA trabalhou em Lisboa», Cinéfilo, nº 202, 2 de julho de 1932, p. 3-10.
[vi] Para dar um exemplo: em 1929, António Lopes Ribeiro inicia um périplo pela Europa (Paris, Berlim, Moscovo) com vista a aperfeiçoar os seus conhecimentos cinematográficos. Dessa viagem, trouxe inúmera documentação fotográfica que utilizou para ilustração de artigos em revistas especializadas portuguesas cujos acervos fotográficos foram entregues, pelo menos parcialmente, à guarda do fundador da Cinemateca.
#4. L’Étoile de Valência, o caso seguinte, demonstrou ser um pouco mais conversador nestes diálogos da identificação: no conjunto de provas deste filme em acervo inclui-se uma fotografia de rodagem que tem aposta no verso uma legenda indicando tratar-se dos “realizadores e protagonistas do filme nas versões em língua alemã e em língua francesa” (da esquerda para a direita na imagem, Alfred Zeisler, Jean Gabin, Serge De Poligny, Paul Westermeier). Ou seja, em termos de pontos de acesso: L’Étoile de Valência (realização: Serge De Poligny) mas também Der Stern von Valencia (realização: Alfred Zeisler). A prova apresenta uma marca de impressão no canto inferior esquerdo: «33 - - F.34».
Muitas outras provas do conjunto são fotografias de rodagem do filme (planos gerais) e todas apresentam uma marca de impressão semelhante à anterior: dois códigos, o primeiro apenas numérico, o segundo alfanumérico. Exceto uma, que apenas tem o código alfanumérico e onde estão retratados Serge De Poligny e Jean Gabin (realizador e ator da versão francesa). Foi esta diferença que nos fez interrogar: seria possível que estas marcas de impressão nos dessem pistas para a identificação das imagens? Ou, concretamente: seria possível que a letra «F» significasse “versão francesa” e, por sua vez, o código simplesmente numérico indicasse a versão alemã (país da companhia produtora)? A ser verdadeira a hipótese assim colocada, seria também possível determinar a versão a que correspondiam as fotografias anteriormente descritas!

#5. Na ânsia de encontrar novos “casos” que pudessem dar-nos mais pistas, deparámo-nos com uma fotografia de rodagem de uma cena num casino previamente identificada como sendo do filme Bomben auf Monte Carlo. Nesta prova, os códigos são três: «142 - - F.65 - - E.66». E três foram as versões produzidas: a alemã (Bomben auf Monte Carlo, realização de Hanns Schwarz), a inglesa (Monte Carlo Madness, igualmente com realização de Hanns Schwarz), a francesa (Le capitaine Craddock, realização de Hanns Schwarz e Max de Vaucorbeil). Com estes dois exemplos, entrámos em contacto com os nossos congéneres alemães do arquivo UFA, colocando-lhes a hipótese por nós levantada. A resposta veio passados uns dias: «Encontrámos fotografias de cena do filme Bomben auf Monte Carlo em 3 versões: a versão alemã contém a letra ‘D’ antes do número, a versão francesa contém a letra ‘F’ antes do número, a versão inglesa contém a letra ‘E’ antes do número. A letra poderá querer indicar a versão linguística específica. Nenhum dos meus colegas conhece o significado ou código das diferentes fotografias de cena.» Hurray!, pensámos. Estamos no caminho certo!
 
#6. Hurray? Nem por isso. No conjunto seguinte deparámo-nos com uma fotografia com a marca de impressão «P.339». «P»?! Como se isso não bastasse, um dos atores retratados é, nada mais, nada menos, do que o português Arthur Duarte, à época estabelecido em Berlim e ator em diversos filmes alemães. Mas se se trata de uma fotografia de um filme mudo (Asphalt, de Joe May) e se, mesmo considerando a hipótese de se encontrar indevidamente identificada e pertencer antes a um filme sonoro, na UFA não terem sido produzidos filmes em língua portuguesa, ou polaca… o que significava este «P»? Nova démarche em busca de outras fotografias que nos pudessem dar pistas levou-nos ao encontro de fotografias já não de filmes mas de atores e atrizes no seu quotidiano[i]. Esta nova pesquisa teve como resultado a constatação de que a maioria destas fotografias apresenta uma marca de impressão alfanumérica, tendo o código «P» antes do número da tomada de vista. Poderíamos então concluir, embora sem certezas, que a fotografia de Arthur Duarte e Betty Amann era uma fotografia promocional, não correspondendo a nenhuma cena do filme. Sim, essa hipótese existe. Tal como as outras hipóteses colocadas por esta análise das coleções. Mas terão ainda de ser comprovadas mediante o visionamento do filme – ou dos filmes nas suas diversas versões – e, espera-se, com a continuação dos estudos e investigações em torno deste património.
 
À laia de conclusão, algumas reflexões:
A indexação de fotografias de filmes em múltiplas versões linguísticas implica um maior dispêndio de tempo – se bem que igualmente aprazível – quando comparada com a indexação de fotografias de outros filmes, dado o imperativo de enorme atenção ao detalhe. Mas, ao fazê-lo, recolhendo e organizando adequadamente os dados, compreendendo a sua natureza e significados histórico, económico e social, o documentalista produz uma mais-valia informativa dos documentos conservados, enriquecendo e valorizando o catálogo de acesso público. E poderá igualmente, como resultado desse trabalho, produzir uma mais-valia cultural dos bens conservados, pela organização e planeamento sistemático de exposições do acervo, assim disseminando o conhecimento destas coleções e com isso franqueando mais uma etapa da valorização patrimonial.
 
Teresa Barreto Borges
 
Texto originalmente publicado em Atas do Workshop Fotografia Investigação Arquivo (Museu Nacional do Teatro, 7-8 Maio 2014). Disponível em: http://www.museudoteatroedanca.pt/Data/Documents/WKS%20MNT%20Book%20artigos1.pdf
 
 
[i] O sistema de produção e distribuição dominante à época incluía, para todos os grandes filmes, uma campanha fotográfica intensa, que consistia numa série de sessões em estúdio com as vedetas.
Eram produzidos retratos simples (apenas caracterização), retratos de composição (caracterização e guarda-roupa completos, incluindo ideias dramáticas da personagem interpretada), fotografias promocionais e publicitárias – do filme e também da própria vedeta. Apresentavam uma visão idealizada da vida convidando os leitores dos jornais e revistas onde eram publicadas a emulá-la.
 

 

Notas

Notas: Imagem de entrada: Arthur Duarte e Betty Amann numa cena de Asphalt (Joe May, 1929) Em cima: à esquerda, Lilian Harvey e Danièle Brégis, MOI ET L’IMPÉATRICE (Friedrich Holländer, 1933) ; à direita, Lilian Harvey e Mady Christians, ICH UND DIE KAISERIN (Friedrich Holländer, 1933).