encontra uma das pedras-de-toque fundamentais na sua interpretação do cinema expressionista, ou seja no gosto pelos contrastes violentos em fórmulas talhadas a “golpes de machado”, na nostalgia do claro-escuro
[1]. Gilles Deleuze, que se debruçou sobre o cinema expressionista alemão na obra “A Imagem-Movimento – Cinema 1”
[2], acrescenta uma outra dimensão a esta formulação : “O pensamento é antes de tudo arrombamento e violência, o inimigo, e nada pressupõe a filosofia; tudo começa com misosofia”. Com ou sem estes pressupostos, a interpretação de Eisner remete para uma filosofia do horror que, inevitavelmente atinge os seus limites transcendentais; é o próprio pensamento que se desloca para as profundidades sombrias de um sublime horrífico ou para um trauma pré-filosófico. Termos chegado a esta conclusão permite-nos introduzir a relação do pensamento de Eisner com o meio ambiente filosófico alemão e sobretudo com Kant; para o filósofo, o sublime é uma forma de juízo estético que ascende quando a imaginação é forçada e estendida para além dos seus limites; a violência que sobre ela é exercida em face de uma inapreensível imensidão de poder cria um prazer negativo. Não caberia aqui descrever em toda a sua profundidade e consequências o pensamento de Kant sobre o sublime; para os propósitos deste texto bastará referir que o sublime nos confronta com uma relação direta e subjetiva entre imaginação e razão, tornando-se essa relação importante na medida em que, ao contrário do jogo livre entre imaginação e entendimento que tem lugar no juízo do belo, o sublime reúne as faculdades em torno de uma
harmonia discordante, ou um encontro traumático com um exterior que não pode ser assimilado. Ou, nas palavras da autora: “As visões fomentadas por um estado de alma vago e perturbado não podiam encontrar um modo de evocação simultaneamente mais adequado, mais concreto e mais irreal” e, ainda, “O artista expressionista, não receptivo, mas verdadeiramente criador, procura, em vez de um efeito momentâneo, a ‘significação eterna’ dos factos e objectos.” Ou seja, não vêem, têm visões.
Finalmente, importa especificar resumidamente aquilo que Eisner entende ser a fulcral influência das conceções teatrais de Max Reinhardt na génese e desenvolvimento do cinema expressionista: no seu Deutsches Theater de Berlim, este encenador tinha vindo a colocar em cena personagens desprovidas de conotações psicológicas individuais, movendo-se em espaços completamente vazios e varridos por efeitos de luz que deveriam estigmatizar, por meio de intensos claros-escuros, o caráter das personagens. Compreende-se assim a importância de Reinhardt não só no desenvolvimento de um novo tipo de teatro, mas também na definição do novo tipo de cinema expressionista. Nas palavras da própria Lotte Eisner: “Temos considerado sempre o famoso claro-escuro dos filmes alemães como um atributo essencial do expressionismo, derivado de um drama expressionista,
O Mendigo, encenado em 1917 por Max Reinhardt”. Esta afirmação e as suas consequências culminarão no reconhecimento da dupla herança do cinema expressionista alemão: a alma faústica e o mundo forjado por Reinhardt que, com a ajuda da luz, cria uma escuridão que é o seu fundo envolvente.
Marginalia: “Um amigo parisiense telefonou-me no fim de Novembro de 1974. Disse-me que Lotte Eisner estava muito doente e provavelmente quase a morrer. Respondi: não pode ser. Ainda não. O cinema alemão não a pode ainda dispensar, não a podemos deixar morrer. Peguei num casaco, numa bússola, num saco de marinheiro e nuns quantos itens indispensáveis. As minhas botas eram tão sólidas, tão novas, que me inspiravam confiança. Pus-me a caminho de Paris pelo caminho mais curto, com a certeza de que ela ficaria viva se eu fosse ter com ela a pé. E além disso, tinha vontade de estar sozinho." Esta aventura é narrada por Werner Herzog na obra “Caminhar No Gelo” editada em 2011 pela Tinta-da-China. Esta aventura ensina-nos que o carácter faústico ainda perdura: Lotte não morreu porque Werner Herzog não quis; Nietszche e o “Super-Homem” também rondam por aqui. Os pactos, esses, são de geometria variável.
Arnaldo Mesquita
O Écran Demoníaco / Lotte Eisner ; trad. João Ribeiro Belo. Lisboa, Editorial Aster, D.L. 1960
Tipologia documental: livro
Cota: 71 (430)
[1] “
O meu coração costuma sentir-se muito bem nesta penumbra. Quando contemplo a natureza insondável, não sei porque é que esse “ídolo velado”me arranca lágrimas sagradas e felizes […] será esta penumbra o nosso elemento? Será a sombra a pátria da nossa alma?” Hölderlin,
Hyperion
[2] Editada pela Assírio & Alvim. Disponível para consulta na Biblioteca.