António Lopes Ribeiro (1908-1995) estreia-se cedo na crítica cinematográfica. Começando no
Sempre Fixe e passando depois para o
Diário de Lisboa, em 1930 decide fundar a sua própria publicação, o
Kino. Edição em formato de jornal, a partir de 1 de Maio desse ano todas as quintas-feiras passava a haver nas bancas, ao lado das revistas
Cinéfilo e
Imagem, um “grande semanário português de cinematografia”, como então se publicitava. O título era explícito relativamente ao conteúdo e implicava um programa. Conforme se lia no editorial do primeiro número:
«“Kino” é uma abreviatura internacionalmente adoptada para designar o cinema e tudo o que com o cinema se relaciona. Simplificação que a lei do menor esforço infligiu ao grego “Kineo” – movimento – “Kino” designa nos países de língua alemã, polaca, russa e nos países escandinavos a sala onde se exibem espectáculos cinematográficos. (…) A palavra “cinema” anda demasiadamente ligada à ideia de “cinema mudo”, não sendo portanto recomendável a sua adopção para título de um jornal que pretende ser genérico e se destina a acolher na suas páginas com igual carinho a arte do silêncio e a nova arte das imagens sonoras.»
Com oito, por vezes doze, páginas semanais, durante um ano, no
Kino leram-se notícias, entrevistas, artigos e crítica cinematográfica assinada por António Lopes Ribeiro, José Gomes Ferreira, Artur Portela, Norberto Lopes, entre outros jornalistas e escritores da época. Além disso, o
Kino deu espaço a crónicas “fonográficas”, radiofónicas e teatrais assim como a inúmeras ilustrações e caricaturas.
O
Kino tem hoje interesse sobretudo por dois motivos e uma curiosidade. É o jornal que mais fervorosamente acompanha e defende a passagem do cinema mudo para o sonoro e é aquele que introduz em Portugal alguma teoria de cinema, ao traduzir um texto de S. Eisenstein. A isto acrescentem-se os trabalhos inéditos de alguns ilustradores sobre temáticas cinematográficas.
No final da década de 20, António Lopes Ribeiro atravessa a Europa e tem contacto em primeira-mão tanto com as novidades gráficas como cinematográficas: vai visitar vários estúdios com Leitão de Barros. Com um acesso privilegiado à U.R.S.S., é nessa viagem que conhece Dziga Vertov e é convidado por Eisenstein a assistir à montagem de “A Linha Geral”. Na sequência de tudo isto consegue agilizar a distribuição de alguns filmes soviéticos em Portugal e decide publicar um texto teórico e programático deste último, no seu semanário. “A Quarta Dimensão do Cinema” é o título do artigo onde Eisenstein expõe conceitos e técnicas raramente pensadas e muito menos praticadas em Portugal: montagem segundo velocidades, “
graus de lentidão”, de cenas e de planos; o
choque” e a “imperceptível
transfusão duma scena na outra” (n.º 7). Nele, dissertava até acerca das possibilidades do “fonocinema”, «no “contraponto” entre os tons secundários visuais e sonoros». Infelizmente, no cinema português, a repercussão do que o “mestre russo” propõe e discute é quase nenhuma...
Desde o editorial do primeiro número que o
Kino se foca sobre a questão do cinema sonoro. De uma forma geral, entendia-se o cinema sonoro como a “aliança das duas grandes artes modernas” (n.º 1). Mas, por exemplo, José Gomes Ferreira, apesar do entusiasmo após ver o primeiro filme sonoro, escreve com alguma melancolia sobre futuro desaparecimento da “sinfonia inteligente das imagens”, sobre o fim do “espectáculo sonâmbulo, onde os corpos se tornavam em espírito, onde as coisas humanas apareciam transfiguradas”, que o cinema mudo proporcionava (n.º 1). Havia também quem tivesse medo da “saxonização dos povos” e da “desnacionalização” que os filmes sonoros norte-americanos poderiam levar a cabo. Mais realistas eram as orquestras que musicavam os filmes mudos que sabiam que, em breve, iriam ser dispensadas.
Assunto nada pacífico, portanto. Nas páginas do
Kino, ao longo de inúmeros artigos (e até mesmo sob a forma de desenhos) pensou-se, e muito, sobre o que implicava esta transição – em termos culturais, económicos, políticos. Tudo culminaria no “Julgamento do Sonoro” que teve lugar no São Luís e cujas sessões foram transcritas no semanário (n.º 3 - n.º 6). A sentença final foi a esperada: “O Cinema Sonoro foi absolvido por falta de provas”. Mas mais importante do que o veredicto foi o modo como nas páginas do jornal ficou um relato das transformações tanto do cinema em si, como dos cinemas, do seu público e da própria cidade de Lisboa.