EU VI A LUZ
Jorge Silva Melo
“Eu vi a luz em um país perdido” é verso célebre de um dos mais delicados poetas portugueses, Camilo Pessanha (1867-1927). E é dizendo esse verso doente que, neste derradeiro filme, Paulo Rocha atravessa, melancolicamente, o écran em plano – filmado em Macau – do seu A Ilha dos Amores, plano aqui recuperado como tantos de outros filmes seus.
Eu vi a luz em um país perdido.
Pensado, escrito, produzido, filmado e montado quando já a doença avançava, cruel, Se Eu Fosse Ladrão... Roubava (que esteve para se chamar Olhos Vermelhos) tem como seu epicentro a partida, a despedida, a saída da terra natal, a ânsia de recomeçar a vida noutras paragens, a determinação. E chama-se Vitalino (Vitalino!) aquele rapaz sorumbático, firme, que pelos anos da 1ª Guerra Mundial, anos da peste, anos de morte, anos de miséria, vemos despedir-se de irmãs, da terra, romper, teimar, abalar para o mundo que sonha novo, Brasil.
Sim, no centro da narrativa de Se Eu Fosse Ladrão... Roubava a fábula que reconhecemos como familiar: a partida do pai, a vontade inabalável, a despedida, a casa e o seu soalho de madeira, as vozes que ressoam, as sombras de mulheres sentadas, camas, chão, leitos de morte, janelas, portadas, escadas, eiras e bois, juntas de bois.
Não há uma narrativa linear, não, nada disso. No cinema de Paulo Rocha, e muito claramente a partir do seu segundo (e maravilhoso) filme, Mudar de Vida, a narrativa quebra-se, desdobra-se, estilhaça-se, cria núcleos a que poderíamos chamar gânglios, nós apertados que não conseguimos deslindar, corpos compactos. E aqui, parte e volta, fantasmática, abre-se, fecha-se.
As poucas sequências que cobrem a partida de Vitalino (mortes, despedidas, discussões) cruzam-se com planos, retomam histórias de outros tempos, abrem as portadas para sequências de outros filmes seus, quase todos. Mas não digam que este é um digest da obra de Paulo Rocha, um cinéaste de notre temps feito por ele próprio (que, nessa série histórica dedicou filmes a Imamura e a Oliveira) não, não é um resumo do seu trabalho de cinquenta anos de cinema, não é o melhor de, não, são histórias de partidas, desfechos, reencontros, maldições, são estilhaços de histórias montadas como eu nunca antes vira, surpreendente, são abraços e largadas, bailes.