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Assunto: Paulo Rocha
Data: 14/08/2013
Se Eu Fosse Ladrão... Roubava
Se Eu Fosse Ladrão... Roubava

EU VI A LUZ

Jorge Silva Melo

 

“Eu vi a luz em um país perdido” é verso célebre de um dos mais delicados poetas portugueses, Camilo Pessanha (1867-1927). E é dizendo esse verso doente que, neste derradeiro filme, Paulo Rocha atravessa, melancolicamente, o écran em plano – filmado em Macau – do seu A Ilha dos Amores, plano aqui recuperado como tantos de outros filmes seus.
Eu vi a luz em um país perdido.
Pensado, escrito, produzido, filmado e montado quando já a doença avançava, cruel, Se Eu Fosse Ladrão... Roubava (que esteve para se chamar Olhos Vermelhos) tem como seu epicentro a partida, a despedida, a saída da terra natal, a ânsia de recomeçar a vida noutras paragens, a determinação. E chama-se Vitalino (Vitalino!) aquele rapaz sorumbático, firme, que pelos anos da 1ª Guerra Mundial, anos da peste, anos de morte, anos de miséria, vemos despedir-se de irmãs, da terra, romper, teimar, abalar para o mundo que sonha novo, Brasil.
Sim, no centro da narrativa de Se Eu Fosse Ladrão... Roubava a fábula que reconhecemos como familiar: a partida do pai, a vontade inabalável, a despedida, a casa e o seu soalho de madeira, as vozes que ressoam, as sombras de mulheres sentadas, camas, chão, leitos de morte, janelas, portadas, escadas, eiras e bois, juntas de bois.
Não há uma narrativa linear, não, nada disso. No cinema de Paulo Rocha, e muito claramente a partir do seu segundo (e maravilhoso) filme, Mudar de Vida, a narrativa quebra-se, desdobra-se, estilhaça-se, cria núcleos a que poderíamos chamar gânglios, nós apertados que não conseguimos deslindar, corpos compactos. E aqui, parte e volta, fantasmática, abre-se, fecha-se.
As poucas sequências que cobrem a partida de Vitalino (mortes, despedidas, discussões) cruzam-se com planos, retomam histórias de outros tempos, abrem as portadas para sequências de outros filmes seus, quase todos. Mas não digam que este é um digest da obra de Paulo Rocha, um cinéaste de notre temps feito por ele próprio (que, nessa série histórica dedicou filmes a Imamura e a Oliveira) não, não é um resumo do seu trabalho de cinquenta anos de cinema, não é o melhor de, não, são histórias de partidas, desfechos, reencontros, maldições, são estilhaços de histórias montadas como eu nunca antes vira, surpreendente, são abraços e largadas, bailes.
 

Nunca vi bailar tanto num filme, num cinema. Bailam pares, bailam grupos, trocam-se pares, irrompem balões e fogos de artifício, apertam-se os corpos dos amantes, bailam pares eternamente, como naquele plano retomado tantas vezes, obsessivo plano em que Isabel Ruth e Rui Gomes dançam, recomeçam a dançar, sempre, em modesta colectividade de recreio, dançam “os nossos verdes anos”, dança agora, cinquenta anos mais velha, dança Isabel Ruth na praia, fantasma teatral, crepúsculo, dança agora e já sozinha, vinda de uma fantasia kabuki, cemitério.
É entre sombras, memórias, segredos, maldições que avançamos neste filme bailador: enquanto vemos envelhecerem os seus belos actores, maravilhosa Isabel Ruth que vem desde o princípio, admirável Luís Miguel Cintra na cena da morte, tremendo, vindo do martírio da Pousada das Chagas.
Não, Paulo Rocha não faz um retrato piedoso de si e dos seus, não há sombra de perdão: chama-os para uma conversa de fantasmas, convoca-os para um baile, acende a lanterna de papel para a dança de toda a sua vida, vê a velhice tomar conta dos corpos, olha a festa da vida e parece despedir-se.
Chama-se fogo-fátuo à luz que vem das campas, não é, química? E não será então este um filme-fátuo, funérea esta luz incandescente que parece rasar o soalho?
Talvez seja esse o lugar central que parece ocupar aqui a pintura de Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), a quem Paulo Rocha dedicou, em 1989, misterioso filme, falso documentário, livre evocação (afinal obsessiva na sua poética), artista convulso, modernista, provinciano, arrogante, solitário e breve inventor de formas, colador.
Parece (mas deste filme só conseguimos dizer que “parece”, não saberemos nunca o que “é”, é filme para entrever, não se escancara, cala-se), parece que Paulo Rocha encontra na selvajaria popular de Amadeo, no seu gosto pela colagem, na brutalidade fresca das suas cores, parece que encontra a terra onde pousar a mão.
Contra o “pais perdido” de Pessanha, a vitalidade do seu pai, a vitalidade vibrante do modernismo (rural, popular), em que se inscreve, parece. Mas nada é certo, tudo hesita neste filme – de onde qualquer sentimentalismo está ausente.
Como se víssemos a vida pela derradeira vez, a primeira luz – e sem adeus.
Eu vi a luz em um país perdido.
 

Notas

Texto originalmente escrito para a brochura sobre o filme Se Eu Fosse Ladrão... Roubava, de Paulo Rocha.