Exactamente porque a televisão (enquanto sistema de reprodução e meio de comunicação) foi fundamental no alargamento da minha visão sobre o cinema (e lateralmente, sobre o mundo – já se sabe: para os cinéfilos essa é sempre a ordem das coisas), juntei-me à petição, iniciada pelo entretanto grande amigo Luís Mendonça,
Pelo regresso da exibição regular de cinema à RTP2. Aí encontra-se o gérmen de todo o meu percurso. Daí ramificaram (de forma mais ou menos directa) as várias relações de amizade e de trabalho que acabei por ter. Aquilo que nos unia, nos uniu e nos une ainda é o cinema, independentemente do suporte. A televisão e as edições em DVD tiveram um poder agregador, semelhante ao das salas comerciais ou dos festivais. E como outras gerações se encontraram nos
foyers dos grandes cinemas ou nos cafés adjacentes, nós andámos de casa em casa a ver filmes em DVD, Blu-ray, em gravações da
box ou em ficheiro.
Alguns dos momentos mais transformadores da minha vida resultam de ver cinema em sala, é certo (quase sempre sozinho, é certo também). Mas não nutro pela sala escura qualquer devoção ortodoxa. Durante este período de confinamento vi muito cinema, no televisor da sala e no ecrã do computador. Seria excelente tê-lo visto no mais largo e brilhante
silver screen, mas isso não só é impossível agora, como teria sido muito difícil em circunstâncias não pandémicas – são conhecidas as dificuldades da distribuição de cinema em Portugal. Como poderia, doutro modo, ter visto dezenas de filmes como vi, desde o
blockbuster norte-americano ao filme clássico de Hollywood, passando pelo cinema francês do pós-guerra, pelo cinema pós-Gorin de Godard, os efeitos de Méliès e os tomos para a Netflix do Soderbergh, os contos morais de Rohmer, cinema de terror tailandês, filmes de culto japoneses,
thrillers espanhóis, objectos não identificados da Nova Hollywood, a trilogia do
Re-Animator (1985, 1990 e 2003) e outras viscosidades dos 80’s, filmes de animação digital e analógica, mini retrospectiva Faye Dunaway, curtas-metragens experimentais e, claro, cinema português. Aliás, algumas das maiores descobertas cinéfilas desta dieta fílmica de cárcere doméstico foram filmes portugueses.
O que dizer das cores extraordinárias da nova cópia do
As Armas e o Povo (1975) que passou na RTP? Como não ficar comovido com o encantador
Marçano Precisa-se (1962)
, recentemente editado em DVD pela Midas Filmes com a Cinemateca, na caixa
Fernando Lopes, 13 Filmes Curtos? E o espanto de descobrir aquela sequência do chá, ao som de Fausto, a terminar com a criança que quer levar
O Capital para a escola, de
O Meu Nome É… (1978), de Fernando Matos Silva
, disponibilizado
em linha, no âmbito da iniciativa “Gestos & Fragmentos”?
Três filmes que nunca tinha visto (os dois últimos de que nunca tinha sequer ouvido falar) e que o trabalho da Cinemateca de preservação analógica, digitalização, restauro (nos casos em que se aplica) e distribuição digital (pela televisão, pela edição em DVD ou pela disponibilização
em linha) permitiu um aprofundamento da minha relação com essa massa inconstante e complexa que é (a história d)o cinema português. E se isto foi verdade para mim, tê-lo-á sido para centenas doutras pessoas que não puderam assistir, em 2014, às sessões contínuas de celebração do 25 de Abril, no programa
Imagens da Revolução, onde a Cinemateca exibiu
As Armas e o Povo, ou
, no mesmo ano, na retrospectiva
Paulo Rocha e Fernando Lopes, “Uma Espécie de Gémeos Diferentes”, onde se deu a ver a seminal curta que se considerava, até então, perdida, ou, no mesmo ano ainda, no ciclo
25 de Abril, Sempre - A Distância das Coisas, quando pela última vez lá se exibiu
O Meu Nome É…
No fundo, a questão que me vem atormentando neste texto, que fui escrevendo às apalpadelas, prende-se com a própria ontologia da imagem cinematográfica e de que forma se deve valorizar a dimensão performativa da experiência em sala. Enquanto espectador, foi a impossibilidade de ver filmes em sala que me fez valorizar o cinema e foram os filmes que vi na televisão que me fizeram desejar, mais ainda, ir ao cinema. A experiência do cinema em sala não invalida a experiência do cinema na sala, e vice-versa. Elas complementam-se. Ver cinema só me deu (só me dá) mais vontade de ver mais cinema, sempre assim foi. E sempre assim deverá ter sido para as anteriores gerações de cinéfilos. Se o realizador Pedro Costa (cineasta da sala escura) começou a sua cinefilia a ver, pela primeira vez, com nove ou dez anos (também ele não é óptimo com datas),
Journal d'un curé de campagne /
Diário dum Pároco de Aldeia (1951) de Bresson na televisão, onde viu também
Chronik der Anna Magdalena Bach /
A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach (1968) de Huillet e Straub, fico a perguntar-me: o que estarão a ver os novos cinéfilos, filhos da Internet? E o que nos darão eles a ver, amanhã, nas salas de cinema?
Ricardo Vieira Lisboa
Maio de 2020
Post scriptum: ao compor estas linhas apercebi-me que as datas de estreia de alguns dos filmes referidos e as minhas memórias das suas projecções não coincidem totalmente. Tanto
Scooby-Doo 2 como
a Máscara 2 estrearam já depois da minha mudança para o campo, pelo que é impossível tê-los visto nas condições que descrevi. Preferi manter a linha das minhas recolecções ainda que esta seja mais turva do que eu a achava. Aliás, como em
A.I., prefiro manter esta lacuna aberta do que escarafunchar nos possíveis traumas que se escondem por de trás desse lapso.
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Ricardo Vieira Lisboa
Crítico no site À pala de Walsh
e programador do festival IndieLisboa e da Casa do Cinema Manoel de Oliveira.