Ver

Pesquisa

Destaques

Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 18/05/2020
Sala de Projeção: Ricardo Vieira Lisboa, "Filho da televisão"
Sala de Projeção: Ricardo Vieira Lisboa,
Como cinéfilo, sou filho da televisão. Parece um paradoxo, mas não é. Foi a imposição da televisão que me levou de volta ao cinema com um novo olhar.
 
Nasci em Lisboa e lá foi onde vivi até aos 12 ou 13 anos (datas não é comigo). De lá mudaram-me para a região saloia, para uma vila auto-intitulada “de Encantos”, o Turcifal, com uma desproporcionada igreja feita com as sobras do Convento de Mafra (diz-se) e uma moradia que concretizava o eternamente adiado desejo do meu pai de viver no campo e de ter animais à mão de degolar. Lá fiquei, com ele e com a minha mãe, até à maioridade (e um pedaço mais, depois disso).
 
Digo-me cinéfilo filho da televisão porque foi certamente diante dela que vi o meu primeiro filme, ou pedaço de filme. Começado a meio, certamente; não terminado, provavelmente; e entrecortado por publicidade, devidamente. Não sei, não me lembro. Como também não me lembro qual terá sido o primeiro filme que vi no cinema. O fluxo das imagens era, aos meus olhos de então, indistinguível. Nada separava o grande ecrã do ecrã doméstico, como se, num plano-sequência, corressem as mesmas imagens, mesmo que em formatos diferentes, em diferentes sistemas de exibição e em diferentes escalas.
 
Criança ainda, sei que ia ao cinema esporadicamente. Em particular, nos dias do meu aniversário. Ver cinema em sala era, portanto, uma oferta e uma celebração. Em anos consecutivos fui ao multiplex do Colombo (recém-inaugurado e que se abeirara de Carnide, o meu bairro) com os colegas da escola, acompanhados pela minha mãe. Sendo o aniversariante, tinha a honra de decidir o programa da tarde. Duma das vezes espetei-lhes com Scooby-Doo 2: Monsters Unleashed / Scooby-Doo 2: Monstros à Solta (2004), sequela terrível de filme terrível, do qual guardei os primitivos efeitos digitais, os contrastes estapafúrdios e os sustos plásticos. Doutra vez foi Son of the Mask / A Máscara 2 – A Nova Geração (2005), de que não recordo sequer uma imagem – sei que me sentei na fila mais traseira, que me ri, e que comemos bolo depois. O cinema mainstream norte-americano dominava, e ainda domina, as salas dos centros comerciais, e essa ideia de escolha era – como quase sempre, nesta sociedade de consumo – uma ideia falsa. Ainda assim, o prazer de programar já crepitava naqueles olhos infantis, mesmo que a escolha fosse entre o zero e a nulidade (um dia terei que regressar a estes títulos que por algum motivo sobreviveram à volatilidade das minhas parcas memórias de infância).
 
A experiência mais forte desses anos de cinema pré-cinéfilo foi, certamente, diante de Artificial Intelligence: AI / A.I. Inteligência Artificial (2001) de Steven Spielberg, filme que, na minha escola do segundo ciclo, reaparecia nos dias de chuva (em suporte DVD – e a questão doméstica é aqui fundamental, dada a importância da interrupção e a possibilidade do regresso periódico). Pelo menos duas foram as vezes que me sentei no auditório da escola com os meus colegas, talvez na pausa do almoço, e assisti aos primeiros 30 minutos desse filme. E pelo menos duas foram as vezes em que me desfiz num choro convulso que, das duas vezes, me levou a ser expulso (convidado a sair…) pela auxiliar de educação que me acalentou o pranto (longe dos reprovadores olhares pré-adolescentes). Até hoje, nunca vi o filme até ao fim. E gosto que assim seja.
 
De qualquer modo, só encontrei no cinema a proteção libertadora de um culto anos mais tarde, quando, na pasmaceira das vinhas e dos pomares de pêra rocha, deixei de poder ir ao cinema como quem vai à janela ver se chove. Torres Vedras, a cidade mais próxima (e onde estudaria daí em diante), tinha um paralítico cineclube camarário que, com a abertura de um centro comercial, e respectivo multiplex Lusomundo, decidiu que nada tinha a acrescentar à gastronomia audiovisual da população. Fechou, deixando-me apenas com o cinema em casa (o que passava na televisão, o que podia alugar no já então moribundo videoclube e aquele que requisitava nas bibliotecas municipal e escolar – a banda ainda não era larga o suficiente para recolher “conteúdos multimédia digitais”).
 
A televisão foi, por isso, o suporte privilegiado da minha cinefilia. Ia muito ao cinema, é certo. Fui muito ao cinema, de facto. Continuo a ir e guardo todos os bilhetes de sessões comerciais desde 2006, quando comecei a dar importância ao que via (sendo daquela estirpe que gosta das filas da frente, de ser engolido pelo ecrã). Mas foram as edições em DVD e VHS que supriram todo o meu impulso histórico, já que a vaga das reposições comerciais de grandes autores só viria vários anos mais tarde.
 
Limitado, naturalmente, ao que se editava por cá, vi muito pouco cinema português não contemporâneo, uma vez que a edição era irregular ou inexistente e que a programação televisiva era escassa e anquilosada. A Cinemateca Portuguesa, com a sua distância, a sua sobriedade soturna, o seu envolvimento turístico, e as suas matinés hollywoodamente clássicas (ou classicamente hollywoodianas) não me ajudou nessa tarefa (pelo menos a princípio). Mas, ainda assim, o meu catálogo mental de filmes foi-se expandindo. Por exemplo, sei que vi Francisca (1981) numa batida cassete de VHS e achei-a uma turva xaropada, como recordo ver Belle toujours (2006) em sala e suspirar “obra-prima!” (e mal sabia que fora Buñuel). Claro que a faixa magnética do primeiro em nada se compara à de celulóide ou à nova cópia digital em 4K (que me deu, recentemente, a rever o filme – e a reafirmar algumas das minhas originais suspeitas).
Exactamente porque a televisão (enquanto sistema de reprodução e meio de comunicação) foi fundamental no alargamento da minha visão sobre o cinema (e lateralmente, sobre o mundo – já se sabe: para os cinéfilos essa é sempre a ordem das coisas), juntei-me à petição, iniciada pelo entretanto grande amigo Luís Mendonça, Pelo regresso da exibição regular de cinema à RTP2. Aí encontra-se o gérmen de todo o meu percurso. Daí ramificaram (de forma mais ou menos directa) as várias relações de amizade e de trabalho que acabei por ter. Aquilo que nos unia, nos uniu e nos une ainda é o cinema, independentemente do suporte. A televisão e as edições em DVD tiveram um poder agregador, semelhante ao das salas comerciais ou dos festivais. E como outras gerações se encontraram nos foyers dos grandes cinemas ou nos cafés adjacentes, nós andámos de casa em casa a ver filmes em DVD, Blu-ray, em gravações da box ou em ficheiro.
 
Alguns dos momentos mais transformadores da minha vida resultam de ver cinema em sala, é certo (quase sempre sozinho, é certo também). Mas não nutro pela sala escura qualquer devoção ortodoxa. Durante este período de confinamento vi muito cinema, no televisor da sala e no ecrã do computador. Seria excelente tê-lo visto no mais largo e brilhante silver screen, mas isso não só é impossível agora, como teria sido muito difícil em circunstâncias não pandémicas – são conhecidas as dificuldades da distribuição de cinema em Portugal. Como poderia, doutro modo, ter visto dezenas de filmes como vi, desde o blockbuster norte-americano ao filme clássico de Hollywood, passando pelo cinema francês do pós-guerra, pelo cinema pós-Gorin de Godard, os efeitos de Méliès e os tomos para a Netflix do Soderbergh, os contos morais de Rohmer, cinema de terror tailandês, filmes de culto japoneses, thrillers espanhóis, objectos não identificados da Nova Hollywood, a trilogia do Re-Animator (1985, 1990 e 2003) e outras viscosidades dos 80’s, filmes de animação digital e analógica, mini retrospectiva Faye Dunaway, curtas-metragens experimentais e, claro, cinema português. Aliás, algumas das maiores descobertas cinéfilas desta dieta fílmica de cárcere doméstico foram filmes portugueses.
 
O que dizer das cores extraordinárias da nova cópia do As Armas e o Povo (1975) que passou na RTP? Como não ficar comovido com o encantador Marçano Precisa-se (1962), recentemente editado em DVD pela Midas Filmes com a Cinemateca, na caixa Fernando Lopes, 13 Filmes Curtos? E o espanto de descobrir aquela sequência do chá, ao som de Fausto, a terminar com a criança que quer levar O Capital para a escola, de O Meu Nome É… (1978), de Fernando Matos Silva, disponibilizado em linha, no âmbito da iniciativa “Gestos & Fragmentos”?
 
Três filmes que nunca tinha visto (os dois últimos de que nunca tinha sequer ouvido falar) e que o trabalho da Cinemateca de preservação analógica, digitalização, restauro (nos casos em que se aplica) e distribuição digital (pela televisão, pela edição em DVD ou pela disponibilização em linha) permitiu um aprofundamento da minha relação com essa massa inconstante e complexa que é (a história d)o cinema português. E se isto foi verdade para mim, tê-lo-á sido para centenas doutras pessoas que não puderam assistir, em 2014, às sessões contínuas de celebração do 25 de Abril, no programa Imagens da Revolução, onde a Cinemateca exibiu As Armas e o Povo, ou, no mesmo ano, na retrospectiva Paulo Rocha e Fernando Lopes, “Uma Espécie de Gémeos Diferentes”, onde se deu a ver a seminal curta que se considerava, até então, perdida, ou, no mesmo ano ainda, no ciclo 25 de Abril, Sempre - A Distância das Coisas, quando pela última vez lá se exibiu O Meu Nome É…
 
No fundo, a questão que me vem atormentando neste texto, que fui escrevendo às apalpadelas, prende-se com a própria ontologia da imagem cinematográfica e de que forma se deve valorizar a dimensão performativa da experiência em sala. Enquanto espectador, foi a impossibilidade de ver filmes em sala que me fez valorizar o cinema e foram os filmes que vi na televisão que me fizeram desejar, mais ainda, ir ao cinema. A experiência do cinema em sala não invalida a experiência do cinema na sala, e vice-versa. Elas complementam-se. Ver cinema só me deu (só me dá) mais vontade de ver mais cinema, sempre assim foi. E sempre assim deverá ter sido para as anteriores gerações de cinéfilos. Se o realizador Pedro Costa (cineasta da sala escura) começou a sua cinefilia a ver, pela primeira vez, com nove ou dez anos (também ele não é óptimo com datas), Journal d'un curé de campagne / Diário dum Pároco de Aldeia (1951) de Bresson na televisão, onde viu também Chronik der Anna Magdalena Bach / A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach (1968) de Huillet e Straub, fico a perguntar-me: o que estarão a ver os novos cinéfilos, filhos da Internet? E o que nos darão eles a ver, amanhã, nas salas de cinema?
 
 
Ricardo Vieira Lisboa
Maio de 2020
 
 
Post scriptum: ao compor estas linhas apercebi-me que as datas de estreia de alguns dos filmes referidos e as minhas memórias das suas projecções não coincidem totalmente. Tanto Scooby-Doo 2 como a Máscara 2 estrearam já depois da minha mudança para o campo, pelo que é impossível tê-los visto nas condições que descrevi. Preferi manter a linha das minhas recolecções ainda que esta seja mais turva do que eu a achava. Aliás, como em A.I., prefiro manter esta lacuna aberta do que escarafunchar nos possíveis traumas que se escondem por de trás desse lapso.
 
________________
 
Ricardo Vieira Lisboa
Crítico no site À pala de Walsh e programador do festival IndieLisboa e da Casa do Cinema Manoel de Oliveira.

Notas

Imagem: SCOOBY-DOO TWO: MONSTERS UNLEASHED / SCOOBY-DOO 2: MONSTROS À SOLTA (Raja Gosnell, 2004)