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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Luís Miguel Oliveira, "Como os Músicos de uma Orquestra – a propósito de uma sessão com Psico (e de todas as outras)"
Sala de Projeção: Luís Miguel Oliveira,
Para falar de uma sessão de cinema podia ir à mais remota infância, e àquela Branca de Neve (a do Disney, naturalmente) num Tivoli repleto de miúdos a alternarem entre um profundo silêncio e a maior chinfrineira. Podia ir até poucos anos mais tarde, quando pela primeira vez fui eu quem escolheu o filme que ia ver com a minha mãe depois de ela me ir buscar ao jardim-escola; e escolhi A Batalha de Midway (Jack Smight, 1976), e nunca me esqueci (pelo contrário, lembro-me frequentemente) da maneira como todo o Condes trepidava no momento em que um Zero japonês embatia contra a ponte de comando de um navio americano (o velho Sensurround: há lá mais "sala" do que isso?). Podia, também, ir até aos 11 anos e àquela sessão (foi no Berna? foi no Star?) em que o meu pai me levou aos Salteadores da Arca Perdida, no que terá sido o dia em que percebi que o cinema podia ser melhor – e sobretudo, maior – do que a banda desenhada. Ou, avançando ainda mais alguns anos até à entrada da década de 90, àquela sessão de O Sangue no Fórum Picoas com os meus dois irmãos, muito antes de ler uma entrevista do Pedro Costa em que ele dizia que gostava de imaginar O Sangue como um filme para ser visto "entre irmãos".
 
E tantas outras, de memórias mais vívidas ou mais esbatidas, as tardes solitárias no Quarteto a ver os filmes que tinham cinco estrelas dos críticos (e a pensar, a tentar perceber, nem sempre bem sucedidamente, a razão das cinco estrelas), as noites das férias de Verão em Tomar a ver a programação "random" do Cine-Esplanada, filmes indistintos de Hong Kong, pancadaria e tiroteios,  acolhidos por uma audiência que os respeitava como outros respeitariam o Dreyer, em silêncio religioso e risos e comentários nas alturas certas.
 
E claro que ainda mais outras – o Ben-Hur no velho Monumental com o meu avô que gostava era da versão Niblo mas à falta de melhor me quis mostrar a reposição da versão Wyler, ou o E.T. no Berna com o meu outro avô que até chorou mais do que eu e os meus irmãos. E muitas mais outras ainda, antes ou depois disso. Mas não quis passar dos 20 anos, quando ir ao cinema não era nada de muito sério, sem deixar de ser seriíssimo. (Nem deixar de falar de cinemas mortos, como todos os que mencionei acima, hoje todos sítios mortos para o cinema).
 
Na Cinemateca, sim, ir ao cinema passou a ser muito sério. O prazer combinava-se com a viagem de estudo, e muitas vezes o prazer estava na viagem de estudo. Como espectador ou como funcionário, não têm conta as sessões memoráveis a que assisti. Mas muitas delas eram memoráveis – ou especiais, como "acontecimentos" – logo à partida: porque ia estar a Jane Russell a apresentar o Gentlemen Prefer Blondes, ou o Mastroianni a fumar cigarros sobre cigarros em plena sala enquanto apresentava já não sei que filme, ou porque vinha o João César Monteiro insultar meio mundo na ante-estreia do Último Mergulho, ou porque o Jorge Silva Melo vinha revelar a Ragazza con la Valigia, ou simplesmente porque se ia, finalmente, ver aquele filme que há tanto se queria ver (e eram outros tempos, em que era preciso esperar pelos filmes em vez de encomendar o DVD ou esgravatar na internet). Destas e doutras, também podia falar.
Mas e se encontrar numa sessão da Cinemateca, com a sua plateia de espectadores cultos, conhecedores, até blasés, uma manifestação inesperada do efeito que o cinema – o cinema puro, como dizia o Hitchcock –ainda pode ter, muito de vez em quando, sobre uma sala cheia de gente? Vi isso acontecer, e se calhar tinha mesmo que ser com o Hitchcock. Foi uma sessão do Psico, em princípio dos anos 90 – esqueço em que ciclo foi, seria fácil consultar os arquivos e identificar a hora e o dia precisos, mas prefiro assim, e sei que não havia bells & whistles, nem convidados nem événement, era o filme e pronto. Já tinha visto o Psico antes, talvez até mais do que uma vez, mas nunca em sala de cinema. E que sala: a velha sala da Cinemateca, centro daquele casulo em "L" formado pela livraria, pelo corredor e pelo bar, já com os estofos todos surrados. E naquela noite, todos ocupados – porque talvez já não fosse preciso montar uma tenda à porta da bilheteira para conseguir bilhete (como quando passava a Dolce Vita ou se ante-estreava o Naked Lunch) mas ainda não era preciso, para encher uma sala, convencer os espectadores de que eles eram importantes por estarem na sala. Limitavam-se a ir à sala ver o que eles achavam importante, e às vezes até a enchiam.
 
E era assim, nessa noite do Psico, quando a abertura das cortinas do écran ainda dava um frisson prévio (e a maravilha que era adivinhar o formato do filme pelo tempo que elas demoravam a abrir: era assim que, se não tivéssemos visto na folha, sabíamos que o filme era em scope porque as cortinas nunca mais paravam). De repente, está uma sala cheia sozinha com a Janet Leigh, o sol da Califórnia a invadir a noite da Barata Salgueiro. Por alguma arte mágica, os violoncelos do Herrmann entraram em ligação directa, coisa meio cyborg, com os espectadores dos cantos da sala, e assim que eles soavam sentia-se a electricidade a passar de cotovelo em cotovelo, de fila a fila, de uma ponta a outra, de cima até baixo. As cadeiras mexiam e quem tinha sacos mexia neles – sim, gente a mexer em sacos é o barulho mais irritante numa sala de cinema (sobretudo quando o filme é mudo) mas naquela noite parecia quase reconfortante, chamava a atenção para outra realidade que não era a do écran, ligava-nos à terra, pelo menos por fracções de segundo. Nunca tanta gente tomou duche ao mesmo tempo, nunca os travellings rasantes da câmara do John L. Russell pareceram tão rasantes, nem tão inquietante o ar que o enquadramento deixava por preencher. A certa altura – num desses planos em que há só "ar", expectativa em bruto e medo a jorros, houve uma senhora na sala que gritou como se estivesse a ser esfaqueada – e ninguém a repreendeu ou mandou calar, apenas alguns risos nervosos e compreensivos, os nervos a compreenderem-se. Quando a sessão terminou as pessoas  levantaram-se a olhar umas para as outras com o embaraço espantado de quem acabou de descobrir que o avião caiu e afinal não morreu.  Ainda dentro da sala, um espectador resumiu, em voz alta, a noite: "o Hitchcock era um assassino!". Não era um desabafo de admiração, era um desabafo zangado.
 
A inquietação da plateia nessa noite era um espectáculo por si mesma. Uma viagem no tempo até 1960, o filme a puxar os espectadores para o seu tempo, em vez de serem a eles a trazê-lo para os anos 1990. E a manifestação, tardia em trinta e tal anos daquilo que o Hitchcock queria, "to play the audience" como um maestro, e daquilo que o Godard dizia, que ninguém esteve tão próximo de ter o "controlo do universo" como o Hitchcock.
 
Numa sessão de cinema estamos sozinhos, mas afectados pela presença de outros. Na maior parte das circunstâncias da vida, também. Mas uma sessão de cinema faz com que o vejamos com clareza: sozinhos, mas afectados pela presença de outros, como os músicos de uma orquestra. Hitchcock escolhia bem as metáforas.
 
Este texto só fala disso, desde a primeira linha.
 
Luís Miguel Oliveira