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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 14/05/2020
Sala de Projeção: Luís Miguel Oliveira, "Allan Dwan – o mais prolífico cineasta vivo (a propósito de Most Dangerous Man Alive)"
Sala de Projeção: Luís Miguel Oliveira,
Lembremos Allan Dwan, o homem que fez mais de mil filmes. O número estimado ultrapassa os mil e seiscentos, mas ninguém tem a conta certa, e nem o próprio Dwan a tinha. Ele, que começou nos primórdios, que no princípio dos anos 1910 andou pela Essanay (o estúdio onde Chaplin se fez superstar) e pela Triangle de D.W. Griffith (apenas dez anos mais velho do que Dwan), de quem se tornou um dos colaboradores mais engenhosos (foi ele quem inventou as gruas que permitiam às câmaras planar sobre os gigantescos cenários de Intolerance), e que, durante essa década fundadora do sistema industrial do cinema americano, terá filmado bem mais de mil one-reelers, filmes de uma bobina. Depois, nos anos 1920, esteve na primeira linha, era um dos realizadores preferidos de Gloria Swanson e de Douglas Fairbanks, e acabou os anos 1930 como realizador indigitado pela Fox para os filmes de Shirley Temple. Era prático, despachado, os grandes estúdios gostavam dele, e ele retribuía a confiança, como artesão pouco convicto da validade "artística" daquela actividade – como diria, anos mais tarde, a Peter Bogdanovich, nunca então lhe passou pela cabeça que décadas depois pudesse haver gente com interesse em ver e discutir o seu trabalho.
 
Foi depois da II Guerra que Dwan se converteu, definitivamente, em homem da série B, trabalhando consistentemente com produtores independentes como Benedict Bogeaus ou a Republic Pictures. É nessa altura que, saindo de debaixo das asas dos grandes estúdios, encontra uma liberdade que nunca mais deixou de gozar, com muitos condicionamentos e alguns pequenos luxos (como a colaboração com o enorme operador John Alton, que resultou nalguns dos mais belos filmes a cores de sempre). Mas que precisamente por causa dos condicionamentos – orçamentos apertados, rodagens a mata-cavalos, actores nem sempre muito bons, tudo coisas que para um veterano como ele, que estivera lá no princípio de tudo, correspondiam a um regresso às origens, a um "back to basics". Provavelmente, é este período (1945-1961) o mais fascinante da sua obra, como um dia a anunciar oportunamente havemos de ver na Cinemateca. Como Chaplin (que na Condessa de Hong Kong reactivou todos os princípios do burlesco físico que praticara na juventude) ou como Renoir (que do Déjeuner sur l'herbe ao Petit théâtre reencontrou o mudo, a pintura e o teatro popular), como Dreyer (a Gertrud) ou mesmo como Griffith (não é The Struggle o mais elementar dos seus filmes?), Dwan caminhou para o despojamento, para a máxima expressividade obtida com um mínimo de meios.
 
Assim, Most Dangerous Man Alive, que em 1961 ficou como último filme de Dwan. Um antigo e lendário ciclo da Cinemateca perguntava se o "topus" iluminava o "opus". Nalguns casos, sim, noutros, não. E noutros, ainda, mais do que iluminar, o "topus" faz uma radiografia do "opus" – remove-lhe a pele e a carne para deixar os ossos e os órgãos à vista. Most Dangerous Man Alive é desses casos, com o cinema de Dwan reduzido ao esqueleto e à pulsação orgânica. Quase tudo nele é condicionamento e circunstância. O filme, produzido por Bogeaus, foi concebido como episódio-piloto para uma futura série que o produtor tentaria vender a uma network televisiva. Por razões económicas, a rodagem foi no México e previam-se quatro semanas. Razões burocráticas (nomeadamente as exigências dos sindicatos mexicanos dos trabalhadores das actividades cinematográficas) mudaram tudo: Bogeaus teve que contratar 
uma equipa completa (em vez da reduzida com que contava, ao abrigo de se tratar de "televisão"), e para compensar reduziu o calendário de rodagem a uma semana. Ter que trabalhar quatro vezes mais depressa não agradou a Dwan, mas não deu parte de fraco. Detestava ficção científica, de qualquer modo, e como mais tarde relatou numa entrevista à Présence du cinéma, nutria o desejo secreto de Most Dangerous Man Alive vir a ser o "último filme de ficção científica". E de facto, o filme rebenta com o género, se o tomarmos nas suas declinações ao longo dos anos 1950, sempre maniqueístas e com o fundo político da Guerra Fria. Ao maniqueísmo inerente a essas variações do género, Dwan contrapõe o cinzento total: tudo é ameaça, e ameaça "interna" (não há inimigo "externo"), e é no interior (do corpo humano do protagonista) que a ameaça se manifesta, transformando-lhe o organismo em aço. Um "homem de aço" como o super-homem, mas não a euforia do nascimento de um super-herói (como tantos que nasceram de acidentes em laboratórios). Pelo contrário, um super-herói é totalmente inimaginável neste mundo do filme, feito de semi-heróis e semi-gangsters, polícias semi-bárbaros e cientistas semi-incompetentes, mulheres semi-fiéis para homens semi-dignos do amor delas. É um filme do fim, para o fim, último olhar sobre a paisagem antes da devastação.
 
E que paisagem: sem cenários dignos de set design, tudo ou quase tudo é location, paisagens suburbanas despovoadas como num filme italiano dos anos 50 (ou como as ruas de um mundo confinado) e murais interiores, fundos contra os quais Dwan enquadra os actores, como se os fundisse neles para que cada plano se tornasse uma massa. E que efeitos, completamente brutos, explosões sem espectáculo ou adorno, como um documentário sobre material explosivo em acção. Talvez o facto de Dwan "detestar" ficção científica explique este tratamento sequíssimo da matéria típica do género, tratada em "brutalismo" sem quaisquer ornamentações românticas. E talvez esse facto explique, também, que a "ornamentação romântica" interrompa, com a mesma brutalidade, a ficção científica – as "cenas de amor", nomeadamente aquela longuíssima em que o herói despe as meias à namorada reencontrada, num continuum que fortemente contrasta com o carácter sincopado, saltitante e frequentemente elíptico do tratamento dos assuntos de "fc".
 
No fim, aliás rapidíssimo e sem tempo para o habitual dénouement, alguém diz, com alívio seu, que "isto finalmente acabou". Ao fim de 1600 e tal filmes acabou finalmente, também, a carreira de Allan Dwan. Podemos pressupor que com alívio seu. Viveu vinte anos de uma reforma feliz até morrer, aos 96 anos, em 1981. Teve mais que tempo para perceber que havia muita gente com interesse em ver e discutir o seu trabalho.
 
 
Luís Miguel Oliveira