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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Luís Mendonça, "Cinemateca, um espaço de ação"
Sala de Projeção: Luís Mendonça,
“Ides ao cinema? Estai-vos nas tintas?” O topete é da autoria de João César Monteiro. A pergunta parece não passar de uma pequena provocação lançada inopinadamente. Mas a verdade é que conheço muitos cinéfilos – e eu sou como eles – que vivem, de tempos a tempos, assombrados com o receio de que a sua paixão possa significar uma fuga deste mundo, uma irresponsável e cobarde forma de demissão da sociedade, porque – diz-nos uma qualquer voz interior, autoritária e pouco compreensiva – é no exterior da sala escura, “lá fora”, que a vida adulta e responsável deve ter lugar. Nestes dias contaminados pelas ideias de medo, nostalgia e fim do mundo, não posso deixar de pensar neste meu receio antigo, que agora adquiriu uma imagem demasiado real para me deixar indiferente: no último dia da Terra, nas barbas do Apocalipse, lá estou eu, vidrado num filme menor que não precisava de ver, mas que não pude deixar de ver. Enquanto o mundo acaba lá fora, eu, aqui dentro, alheado de tudo o que me rodeia, passo os últimos minutos na Terra “consumindo” mais um filme.
 
Ao mesmo tempo, nunca como nestes dias de clausura heroica sentimos tanto que o cinema realmente importa, que é garante da saúde mental para muita gente. E que, por isso, também faz parte – como boia de salvação para a alma – deste espírito de missão que nos envolve a todos, em tempos de emergência nacional.
 
O cinema é também como um narcótico, um “grande sono” que não nos larga. Vivemos tempos apocalípticos? Quase apetece responder que toda a cinefilia já era da ordem do Apocalipse. A vida pouco pode em relação ao confinamento voluntário na sala escura. Não queremos ser assim, pelo que procuramos resistir ao mais perfeito sequestro levado a cabo pelo mundo imaginário do cinema, composto por divas, heróis e simulacros que intensa e irresistivelmente iluminam o grande ecrã. Por conseguinte, depois de me embriagar com o máximo número de imagens, o meu primeiro impulso é fugir – era Serge Daney quem combinava sadiamente o amor aos filmes com o amor às viagens e era Werner Herzog quem, antes de comer os seus sapatos, equiparava o ato de fazer filmes ao de andar, preferencialmente a pé, de um ponto A para um ponto B.
 
A viagem é uma analogia demasiado fácil para quem não quer sair do “comboio de sombras” (Máximo Gorki) ou adia a compra do bilhete de regresso. Regresso a La Ciotat (Lumière), à Gare do Norte (Rouch), a uma qualquer “estação terminus” (De Sica), não sei. Sei que cada viagem pede mais viagens: um passo, outro passo e depois... Não queremos parar e não paramos. O comboio do nosso cinema é como o do famoso documentário, oriundo da velha escola inglesa encabeçada por John Grierson, Night Mail (1936). Quase nada justifica a paragem. As cartas são recebidas e entregues, mas o comboio, esse, parece que não quer de maneira alguma parar. No entanto, nos intervalos da nossa obsessão, especulamos sobre como seria aproveitar o mundo lá fora. Leia-se: verdadeiramente gozar a vida. Fruir do mundo e da vida como gente grande, responsável e sadia – Daney também afirmava que o cinema pertencia à infância, ao que eu acrescentaria que ver filmes é como essa birra contagiante que tem como objetivo não sairmos do comboio e ficarmos para sempre remetidos à companhia das sombras, entre divas, heróis e simulacros.
 
No site que ajudei a fundar e que coedito, À pala de Walsh, sempre procurámos deixar uma janela aberta para esse “lá fora”. O cinema pode existir e transformar o mundo? Pode fazer algum tipo de diferença nas “questões essenciais” da sociedade? Acreditamos – não digo que acreditemos com grande convicção, mas sim, acreditamos – que devemos resistir aos nossos impulsos – à tal devoção incontrolável por fantasmas – e procurar “saídas”.
 
Devemos agir. A palavra é como um palavrão para uma comunidade composta por vários críticos e teóricos. Ver e escrever sobre cinema pode ser um modo de intervenção na sociedade? Pode ser uma forma de ação? Convencemo-nos disso. Mas precisávamos de tornar tudo isto mais imediatamente reconhecível e, por isso, criámos uma rubrica – que serve para expiar a tal culpa do cinéfilo-criança eternamente refugiado, e consumindo-se, no ecrã – chamada, sem falsas subtilezas, “Ação!” A palavra de ordem pertence aos directors e não aos críticos, pelo que a apropriação soou-nos bem, porque suficientemente ousada. Não queríamos ouvir nenhum velho excêntrico dizer, do alto do seu banco de jardim: “Ides ao cinema? Estai-vos nas tintas?” Não queremos que o cinema pertença a essa gente que se está “nas tintas”. Promovemos, então, as ditas ações. Digamos que a última iniciativa, mais visível, consubstancia perfeitamente a ação de servir a comunidade. De quê? De cinema e pensamento crítico. O À pala de Walsh empenhou-se nestes dias em salvar os seus leitores do tédio iminente, compondo uma espécie de menu com filmes para o confinamento. Convidámos os nossos leitores, os presentes e os potenciais, a verem, lerem, ouvirem, viajarem e até comerem pelo cinema. Mas que o nosso site seja um espaço de ação não era algo tão evidente – inclusive para muitos de nós – há uns tempos. No entanto, duas das iniciativas mais gratificantes para mim na história desta comunidade virtual couberam na tal rubrica “Ação!” Ambas disseram diretamente respeito ao espaço da Cinemateca Portuguesa e do seu Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM).
 
Quando sentimos que estava em risco o acesso e preservação do cinema em formato DCP (Digital Cinema Package), acorremos (eu e a fotógrafa Mariana Castro) às instalações do ANIM para a produção de uma reportagem, que acabou publicada com o título «Cinemateca/ANIM sob perigo» no dia 27 de setembro de 2013, sobre a urgência de dotar a casa do cinema com equipamento que servisse para verificar e projetar um já muito extenso espólio fílmico. O modo como fomos recebidos denotou uma cumplicidade imediata e uma grande vontade de esclarecer o que estava em jogo – o atual subdiretor da Cinemateca Portuguesa, Rui Machado, afirmava que o património digital produzido até àquela data estava em risco. Foi bom receber a notícia pouco tempo depois: a Cinemateca Portuguesa havia conseguido adquirir o equipamento que reivindicara.
Outra iniciativa teve como espaço a sala Luís de Pina, durante uma projeção que tinha tudo para ser histórica: a primeira exibição de Empire (1964) na sua versão integral de 8 horas, no âmbito da terceira parte do ciclo O Cinema e a Cidade. Redigimos um texto, para a dita rubrica, em que exortámos os nossos leitores a um tipo particular de ação; a darem “tempo ao tempo”. A sessão de Empire, marcada para dia 4 de novembro de 2017, num sábado, constituía, para nós, um motivo de resistência contra os tempos acelerados, desatentos, distrativos e ideologicamente contaminados em que vivemos. Uma oportunidade rara e valiosa, ainda mais na sociedade em que vivemos, de não nos estarmos todos nas tintas para ele, o tempo.
 
Associámo-nos a este corajoso ato de programação ao oferecermos bilhetes (cortesia da Cinemateca) aos nossos leitores, pedindo apenas em troca algumas impressões sobre como foi a experiência de ver o filme – quanto tempo aguentaram na sala, quantas vezes regressaram, se regressaram de todo... Um espectador contou-nos que aguentou 20 minutos, que quando saiu da sala Luís de Pina o ecrã estava mais branco do que preto. Depois, “deu um salto” à sessão do lado, na sala Félix Ribeiro, para ver um filme de Chaplin, A Woman of Paris (1923). Quando regressou a Empire, disse-nos que o ecrã estava tomado pela escuridão e que perdeu a consciência das pessoas na sala – a experiência tornara-se mais solitária. Por outro lado, uma espectadora confidenciou-nos que saiu após 32 minutos para tirar algumas fotografias ao edifício da Cinemateca. Regressou para mais 24 minutos de Empire, durante os quais sentiu que o seu olho estava destreinado e que, por isso, foi uma experiência mais dura.
 
Nós, no À pala de Walsh, encarámos tudo isto como uma forma de ação. Este filme colocava um problema e o espectador tinha de lidar com ele, ali, naquele espaço; tinha de enfrentar a sua intrínseca fixidez, escuridão e monotonia (a sua, como dizem os ingleses, “uneventfulness”). Estes nossos espectadores saíram passados alguns minutos e voltaram a entrar. Um assistiu a um filme de Chaplin, o outro fotografou. Em que medida um viu o filme de Chaplin com outros olhos e o outro fotografou de um modo que não planeara? Em que medida Chaplin e o edifício da Cinemateca como tema fotográfico interferiram, no regresso, com o manto de escuridão – a pouquíssima luz, a dado momento – que preenche a maior parte das 8 horas do muito falado mas pouco visto filme de Andy Warhol e Jonas Mekas?
 
A ação política, para nós, radicava na possibilidade de transformarmos um certo modo de agir, ver e pensar o mundo. Penso que podemos – e devemos – criar situações em que estas transformações possam ocorrer. Para tal, são fundamentais espaços – repito: espaços – como a Cinemateca Portuguesa. A viagem não vai parar.
 
 
Luís Mendonça