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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: José Manuel Costa, "A sala apagada: tempo entre tempos (as vozes do silêncio)"
Sala de Projeção: José Manuel Costa,
Foi nos primeiros anos da sala que abriu na Barata Salgueiro no verão de 1980. Decorria a projeção de um filme mudo, que nunca sei ao certo qual foi. Penso sempre que era a fantasmagoria de Weimar, e que por isso pode até ter sido mesmo logo naquele grande ciclo de cinema alemão dos inícios de 1981, que alternava o Mudo com o “Novo” pós-Oberhausen (Murnau? O Letzte Mann, o Tartufo ou o Fausto? Sem recurso à memória, insiste a imaginação que terá sido um deles…). Nesses primeiros anos, o “silent cinema” era realmente, na Cinemateca, o tempo do silêncio, sem acompanhamento musical, hábito então recebido com naturalidade mas, como se sabe, gerador de um peso que, neste caso, se acrescentava ao do próprio filme. Ia a projeção adiantada quando um espectador rompeu esse silêncio e fez em voz alta um qualquer comentário ao que se passava no ecrã. Não, também não sei o que disse, e de um tal pormenor a imaginação não se ocupou… O que interessa é que, nesse dia, um outro espectador lhe respondeu, e que a coisa não ficou por aí. Houve um terceiro que entrou na conversa, e depois dele um quarto, e um quinto, até que, a certa altura, havia mesmo intensa cavaqueira em alta voz. Tinha-se rompido o dique, e, talvez por efeito catártico, aquilo parecia não ter fim. Até que, num acesso de genialidade, houve ainda um outro espectador que levantou a voz mais alto que os restantes e gritou “CALEM-SE TODOS QUE EU QUERO OUVIR O FILME!” E, daí até ao fim, Murnau, ou quem quer que fosse, foi de facto escutado com o devido, profundo, silêncio.
Lembro-me muitas vezes deste episódio, e lembrei-me dele quando, ao princípio da noite do passado dia 13 de março, entrei nas nossas salas de projeção entretanto esvaziadas. Era o início da suspensão da pandemia, e a segunda vez, em toda a história da Cinemateca neste local, que fechávamos as portas por motivo inelutável e sem verdadeiro plano imediato de reabertura (a primeira fora, quase quatro décadas antes, a do incêndio que destruiu o interior da sala original logo, justamente, numa manhã de primavera de 1981). Sendo um dos últimos a abandonar as instalações, acabei por ficar por ali mais algum tempo, pelas salas e pelos corredores, tomado por um silêncio que não tardou a encher-se de outros fantasmas. Como o espectador que quis ouvir o cinema mudo, apeteceu-me ouvir aquele silêncio, privilegiando esse momento, desfrutando dele, atrasando o reencontro com a vozearia instalada fora, na cacofonia dos Media e do comentadorismo. Como o Vijay de Guru Dutt, “a tristeza triunfou sobre mim”, mas, como ele, deixei-me conduzir pela volúpia dela. Quis ser visitado pelos habitantes daquele ecrã, e deixei que fossem eles a dirigir-me a palavra. Comecei então a ouvir frases e ambientes sonoros, primeiro coisas vagas, depois cada vez mais definidas como momentos recorrentes da minha memória do meu cinema. Ouvi, claro, a voz de Robert Flaherty, que tanto ouvira, em 1979, nas fitas magnéticas guardadas pela filha Monica, e que agora me chegava outra vez na abertura encantatória e mítica de Louisiana Story – a voz que vem juntar-se aos travellings nos pântanos e à música de Virgil Thomson, intervindo nesse mundo mágico com a delicadeza de quem, justamente, não o quer perturbar (“His name is Alexander… Napoleon… Ulysses… Latour…”). Ouvi a Harriet, do River de Jean Renoir, naquele assomo inextrincável de determinação e espanto que é só dela no mais belo dos filmes (“Mother, I want to be outstandingly beautiful!”). Ouvi aquele instante em que, para mim, o mundo inteiro se suspende, quando Fonda, no papel de “jovem Senhor Lincoln“, responde a Alice Bradly : “And you... who are you?…  I’m you lawyer ma’m.” Ouvi o fazendeiro Morten a gritar nas dunas em busca de seu filho Johannes, no supremo filme do supremo cinema de Dreyer (“Johannes!... Johannes!… Johannes!… Johannes!...”). Ouvi “o Sol de amanhã pode ser que eu o não veja”, que Simão (António Sequeira Lopes) escreve e depois lê, em voz sonâmbula, naquele longo e inesquecível plano-sequência do Amor de Perdição de Oliveira feito entre o dia e a noite, entre o domínio da vida e o domínio da morte. E ouvi – e a que ponto ouvi… – essa infinita melancolia das últimas obras de Dutt, sublimemente desfiada nos troços musicais, que, neste caso, constituem mesmo o cerne da narração (em Pyaasa: “nestas ruelas e casas em que se negoceiam os encantos, caravanas da vida entregues a mil pilhagens, onde estão, onde estão, os guardiões da dignidade? Onde estão aqueles que têm orgulho na Índia?”)  
A sala apagara-se e os seus habitantes falavam. De trás dos que agora mencionei começavam a surgir todos os outros, vindos do fundo do ecrã como os mortos da aldeia de Magino no fresco de Ogawa Shinsuke. Senti, talvez mais do que nunca, a que ponto uma sala destas está impregnada, até ao âmago de todos os seus materiais, com todos os filmes jamais feitos. Tal como o branco é a soma de todas as cores, o branco deste ecrã é a amálgama de todos os planos de todos os filmes de toda a vida do cinema. Não, aqui não passaram todos os filmes, como em nenhuma sala de nenhuma cinemateca. Mas o muito que passou foi tanto que trouxe o resto consigo, deu-o a “ver”, seja por afinidade seja até porque cada filme exibido leva a outros que esse convoca, e que são chamados a sessões futuras. E nessas sessões futuras está todo o outro lado – o cinema por fazer. Senti então que o apagamento é um intervalo que evoca esses dois universos. Não uma ausência, não uma elipse, mas um tempo próprio que há que escutar, um tempo entre tempos. Olhamos para trás mas também para a frente, para o que veremos a seguir, interrogando o que está em incubação, e que, nalguns casos, terá sido gerado precisamente aqui, quando o olhar de alguém do cinema de hoje, ou de alguém que, hoje, sonha um gesto de cinema, foi incendiado pela visão de outro filme.
Uma sala para todo o cinema do mundo: foi essa a realidade e a utopia das cinematecas. Era uma ideia clara de alguns pioneiros, indissociável da multiplicação de organismos homólogos por países e continentes, e de uma genuína vontade de trânsito entre eles: a ideia de uma rede de conservação a que se juntaria uma partilha intensa nos lugares de visionamento, que se converteriam assim, cada um deles, em salas de exposição de um museu universal. Por irrealizável que fosse, o projeto foi suficientemente realizado para que se evidenciasse o seu poder (outra vez, outra vez, as palavras de Henri Langlois a Ernest Lindgren em 1947: “estou absolutamente convencido de que o desenvolvimento individual de cada cinemateca só poderá ser efetivo se ligado ao desenvolvimento de cinematecas por todo o mundo”). Era isto, para a “arte do século XX”, o Museu Imaginário de Malraux? Sim e não. “Não”, em termos diretos, porque esse outro era o “museu” gerado pela imensa nova oportunidade de pensar, através da reprodução (representação), nem que fosse imperfeitamente, as obras da arte universal, e assim, pela primeira vez, poder confrontá-las, suplantando a limitação de todas as coleções conhecidas, ou seja, a “confrontação incompleta que nos é imposta pelos verdadeiros museus“ (inícios de As Vozes do Silêncio). Ora, aqui, pelo contrário, tratando-se de uma arte que ela mesma, de origem, é “reprodução por meios técnicos”, o que era (é) exibido em qualquer destas salas era (é) a obra e não uma sua representação, tornando virtualmente possível confrontar todas as obras dentro de uma única sala, e tornando potencialmente equivalentes as experiências dos visitantes de qualquer uma delas. Mas “sim”, evidentemente “sim”, no sentido em que o que agora se torna possível é a realização desse sonho de confrontação completa dentro de um espaço de museu – remetendo para outro plano o termo “imaginário”. Este aplicar-se-á então neste caso à própria natureza da obra, não aos graus de acesso ao seu conhecimento. Porque, se a obra cinematográfica está na realidade ali – se o objeto exibido (venha ele de onde vier) é “a obra” – há ainda que lembrar que, neste caso, a própria existência dessa obra é a experiência mental da sua receção. Não é assim o museu que é “imaginário”, é o filme em si mesmo, sendo essa a sua única realidade. Se, numa cinemateca como em qualquer museu, o filme é alterado pelo contexto de exibição face àquilo que fora na sua vida anterior, se uma cinemateca é portanto também uma “confrontação de metamorfoses” (ainda Malraux), o que aí não se altera é justamente essa condição primeira da irredutibilidade de cada visão. Dito de outro modo, o filme renasce, aqui e agora, como renasceu sempre, de espectador para espectador, de ato de visão para ato de visão. Uma estátua grega, uma tela de Rembrandt, até uma fotografia, mudam aos olhos humanos em cada novo olhar em cada novo tempo; muito para além disso, o filme, esse, só existe materialmente no próprio ato de projeção e na perceção humana. Mesmo ao longo da sua história analógica (a que referimos hoje como a dos “artefactos” fílmicos, convertidos em objetos museográficos), nem a série de fotografias impressas na película enrolada dentro da caixa nem a própria imagem formada no ecrã durante a projeção materializam o objeto filme, na medida em que este só acontece como “imagem em movimento” quando captado pelo olho humano e processado pelo cérebro. Nenhum filme é assim um único filme, mas a sucessão das experiências que proporciona, programadas como ato coletivo, social, feito da multiplicação de experiências individuais. Independentemente de essa operação cerebral ser ou não a própria matéria-prima mais relevante no processo de construção (questão diferente, que foi decisiva na grande viagem do cinema feito até aqui, em que essa foi apenas uma tendência possível, que todos os realismos contrabalançaram), a história do filme enquanto experiência humana é, sem margem para dúvida, a de um “livre e prazenteiro jogo da mente” como, logo em 1916, lhe chamou Münsterberg.   
Os fantasmas levaram-me à história da sala, e esta à interrogação do seu destino. Poderia estar a acontecer que este intervalo entre tempos fosse a metonímia involuntária de um esmorecimento de muito maior alcance? Poderia esta amálgama de memórias e expectativas proporcionadas pela “sala-museu-universal” constituir, não apenas um concentrado da experiência geral do cinema, mas o começo, ou a antevisão, de um hipotético contexto futuro em que essa experiência geral passaria afinal a ocorrer só neste tipo de espaços ou em espaços tão singulares como eles? Poderia este lugar museológico, antes e depois desta pausa, constituir o protótipo de um eventual cinema-ópera, feito de património e de obras de criação contemporânea vistas por públicos restritos, porventura até exibidos, de novo, em esplendorosos palácios de cinema que, desta vez, substituiriam o espetáculo alargado desta arte? Qual é o destino da sala – não, agora, a de uma cinemateca, e não necessariamente a de um tal cinema-ópera, mas a que serviu e serve de suporte a esse espetáculo alargado? A questão não é nova, e as mutações ocorridas na viragem de século não nos ajudam, por ora, a ter certezas de futuro. Perguntá-lo é perguntar sobre o destino desta arte que, tendo marcado o século anterior, não parece ainda ter dado uma resposta cabal sobre o lugar que pode e quer ter naquele em que vivemos. Porque uma coisa é a explosão do audiovisual e das suas novas formas de produção e receção, outra é a vida de uma arte que, na sua época, e entre outros impulsos que com isso confluíram, veio responder ao desejo universal e ancestral da taumaturgia da caverna. Neste momento, alguma confusão está instalada, sabendo-se que, contrariamente àquele que foi inventado no final do século XIX, o suporte tecnológico industrial dominante no século XXI passou a depender muito pouco (e virá a depender cada vez menos) da própria condição da câmara escura. Nesse sentido, a pergunta transfere-se para o que está para além da questão do suporte, ou seja, para o que, independentemente dele, continuará, ou não, a fazer-nos querer ver e ouvir histórias em locais escuros onde procuramos o espanto, a comoção, o medo ou a fantasia. O que vai prevalecer? A sobrevivência do que, no cinema, não está ligado à herança mágica da caverna, o que significaria certamente a perda da sua identidade enquanto experiência coletiva? Ou, passada esta fase de confusão ontológica, o recrudescimento da “grande arte da luz e das sombras”, que, sob formas novas, e porventura em lugares novos, reencontrará um papel central na sociedade por vir? Por mim, e não por dever de ofício, descubro no grande “passado do cinema” o forte argumento para acreditar no seu futuro de acordo com esta segunda alternativa: se, como tanto se insistiu na historiografia, o cinema veio a ser herdeiro de uma linhagem milenar, que, em última análise, radicava na pintura feita, sob luz cintilante, nas paredes de uma caverna, como acreditar que esse impulso possa esmorecer? O teatro de sombras chinês, a “lanterna viva” medieval, o espetáculo ótico de della Porta no século XVI (a sua Magiae Naturalis, deslocando a Camera Obscura para o território da ilusão…), a Lanterna Mágica do século XVII e seguintes, a fantasmagoria de Robertson em finais do século XVIII…: toda a “pre-história” do cinema é o melhor indicador da sua sobrevivência futura. Prolongando essa outra aceção – que pressupõe a “sala” – o verdadeiro cinema não se apagará. No fundo, nada aqui está garantido, e muito menos podemos dizer sob que formas, e com que reverberação, tal futuro acontecerá. Como lembrou Benjamin “muitas formas de arte nasceram e desapareceram”, tendo algumas desaparecido para ressurgir de outros modos séculos mais tarde. Mas nenhuma possível indecisão sobre cenários futuros consegue de facto levar-nos a acreditar que aquele desejo ancestral sucumbirá. Como, mais uma vez, escrevia André Malraux quase, quase no final da obra acima evocada, “na noite em que Rembrandt ainda desenha, todas as sombras ilustres, e as dos desenhadores das cavernas, seguem com o olhar a mão hesitante que prepara a sua nova sobrevivência ou o seu novo sono…”
 
José Manuel Costa
 
Post Scriptum. Dentre as vozes que me assaltaram naquela noite de 13 de março, uma outra, inconfundível, foi a de Erich von Stroheim na gravação que Jonathan Rosenbaum ali nos fizera escutar três anos antes. Foi na primeira sessão das “Histórias do Cinema: Rosenbaum/Stroheim”, cuja conferência/debate está agora acessível neste sítio Web, e era o testemunho de homenagem ao “Master” D. W. Griffith, lido na rádio no momento em que este desaparecia, em 1948. Conhecíamos essa voz, dada a longa carreira de Stroheim como ator no cinema sonoro, posterior à genial, contundente e maldita carreira de realizador (e também ator) da Hollywood do mudo. Mas Rosenbaum sabia o efeito adicional que esta gravação teria quando ouvida assim, em grupo e na obscuridade da sala. Não era uma curiosidade, era um mergulho direto e profundíssimo em todo um contexto histórico, através da relação entre dois gigantes, cuja importância, quaisquer que sejam os encómios que lhes dirijam, não deixa de ser hoje também adulterada pela “correção política” do nosso tempo. Agora que divulgamos a conferência de Rosenbaum, aproveitemos então para escutar essa outra voz, ouvindo-a nos suportes hoje acessíveis, e, idealmente, por si só (sem a redundância das imagens apostas na internet, neste caso prejudiciais para os dois lados). São palavras que vêm elas próprias do fundo de uma caverna, trazendo-nos a veneração total por um dos inventores de Hollywood, e, ao mesmo tempo, um violentíssimo libelo contra muito daquilo em que se converteu essa invenção. E são palavras que têm de ser ouvidas, porque só assim percebemos o que há de força e de embargo nesta despedida: “So long Master; so long D.W.”