...foi o que o pai, Antoine, disse aos dois irmãos, Louis e Auguste, para fazerem sair a invenção de onde um americano a tinha confinado. E enfim, agora o Estado e a pandemia devolveram-na à caixa, à casa, ao aborrecido e saudável quarto familiar, desprovido do erótico e anónimo mundanismo do quarto escuro, como diria Barthes. Porque ninguém se ri quando vê um filme de Lubitsch sozinho em sua casa, como quando está num cinema cheio de gente.
O americano tinha colocado a sua invenção numa caixa muito pesada que precisava de electricidade, como a cadeira eléctrica que ele ajudou a inventar. O Kinetoscope de Edison forçava e “obrigava” a ver sozinho e de pé; com os olhos para baixo, como agora fazemos com os computadores portáteis, por isso tinham que ajustar o chapéu e a carteira. Como disse Tavernier, o Edison inventou o Canal+ e os dois irmãos inventaram o cinema.
Nunca é de mais insistir nas qualidades únicas da máquina dos dois irmãos; era originalmente uma máquina perfeita, coerente, concreta e bela; uma máquina em que cada uma das suas partes servia várias funções, como acontece nos bons guiões com os diálogos. Por definição, era uma máquina “reversível” que continha três máquinas em uma: uma, obtinha imagens negativas; duas, devidamente orientada ao Sol, era um pequeno laboratório que obtinha positivos; e três e a melhor, permitia a projecção “pública”, como os dois irmãos, também inventores do cinema, afirmavam.
A reversibilidade da máquina foi sempre fundamental para os dois irmãos, pois reversíveis eram as suas casas gémeas e contíguas em Lyon, onde viviam seis meses um numa e o outro na outra e ao contrário, tão unidos desde que um salvou o outro de se afogar. Além disso, era uma máquina muito leve e funcionava sem electricidade, porque conseguia ser autónoma já que funcionava à manivela (algum francês deveria escrever um dia a história da manivela no mundo). A manivela transformava a relação do operador com a máquina porque tornava possível, durante a projecção, a manipulação da velocidade, e o espectador podia admirar, se quisesse, a beleza e perfeição, a alegria do movimento e a ligação entre o homem e a máquina.
Não se insistiu o suficiente que os dois irmãos inventaram o conceito de
take e, sobretudo, que o tornassem tecnicamente possível quando, inspirados pelo seu carpinteiro e construtor-chefe, justamente chamado Carpentier, fabricavam muito mais
magasins de pellicule para conter o filme do que câmaras; de modo que, quando o operador esgotava esses preciosos metros de película, tirava do bolso outro pequeno
magasin carregado sem passar pela câmara escura. Isto permitiu que a câmara, sempre carregada de filme, estivesse sempre pronta; tal possibilitou, por exemplo, que Gabriel Veyre filmasse um dos filmes mais bonitos que já foi filmado, em dois
takes.
Gabriel Veyre era o mais talentoso dos muitos operadores que os dois irmãos tinham treinado e contratado para levar o aparelho por todo o mundo. Até muito recentemente, a maior parte da sua vida e obra fantástica dormia num armário familiar até ser descoberto por Phillipe Jacquier, o seu bisneto que, juntamente com Marion Pranal, o devolveu ao seu legítimo lugar na grande História do Cinema e da Fotografia. Filmou e projectou filmes pela primeira vez no México, Canadá, Venezuela, Colômbia, Cuba e resto das Caraíbas, no Leste da China, Japão e Indochina, no actual Vietname, onde em meados de Fevereiro parou numa aldeia para tomar café. Aí rodou um filme que aparece no catálogo dos irmãos com o número 1296 e se intitula
Le village de Namo: panorama pris d'une chaise à porteurs.
O motivo do filme é tão banal quanto bonito: as crianças da aldeia onde o francês parou correm atrás do carro, despedindo-se do visitante inesperado que se afasta com a câmara apoiada nos joelhos num carrinho que chocalha, do qual (sem tripé) dá voltas à manivela ao mesmo tempo que faz uma panorâmica. Este pequeno filme não é apenas o primeiro
travelling para trás da breve história do cinema, mas também contém, note-se, toda a crueldade e ternura da infância (e do cinema) em, primeiro, um puxão de cabelo de uma menina mais velha a uma mais nova e, depois, no inestimável sorriso de uma menina para Gabriel Veyre, para a câmara no final do filme e plano, para os espectadores. O cinema não filma imagens, mas sim gestos, formula Agamben. Tudo isto não teria sido possível sem aquele precioso acessório portátil com a forma de uma caixa de dominó.
https://www.youtube.com/watch?v=u00HsDpCbCk
Os habitantes desta aldeia na Indochina provavelmente nunca viram este filme projectado. Mas devemos insistir que o cinematógrafo, que é o nome dado à máquina pelos dois irmãos, não foi concebido apenas para a captação de imagens em movimento, mas que se considerou igualmente importante a revelação e a projecção das imagens, com a mesma máquina. Infelizmente, a prodigiosa reversibilidade do cinematógrafo foi rapidamente abandonada pela lógica da exploração comercial, mas a dicotomia produção / difusão nunca existiu originalmente na máquina dos Lumière, pois era esse o nome dos dois irmãos.