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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Javier Rebollo, "‘Tirem-no da caixa!’"
Sala de Projeção: Javier Rebollo,
...foi o que o pai, Antoine, disse aos dois irmãos, Louis e Auguste, para fazerem sair a invenção de onde um americano a tinha confinado. E enfim, agora o Estado e a pandemia devolveram-na à caixa, à casa, ao aborrecido e saudável quarto familiar, desprovido do erótico e anónimo mundanismo do quarto escuro, como diria Barthes. Porque ninguém se ri quando vê um filme de Lubitsch sozinho em sua casa, como quando está num cinema cheio de gente.
 
O americano tinha colocado a sua invenção numa caixa muito pesada que precisava de electricidade, como a cadeira eléctrica que ele ajudou a inventar. O Kinetoscope de Edison forçava e “obrigava” a ver sozinho e de pé; com os olhos para baixo, como agora fazemos com os computadores portáteis, por isso tinham que ajustar o chapéu e a carteira. Como disse Tavernier, o Edison inventou o Canal+ e os dois irmãos inventaram o cinema.
 
Nunca é de mais insistir nas qualidades únicas da máquina dos dois irmãos; era originalmente uma máquina perfeita, coerente, concreta e bela; uma máquina em que cada uma das suas partes servia várias funções, como acontece nos bons guiões com os diálogos. Por definição, era uma máquina “reversível” que continha três máquinas em uma: uma, obtinha imagens negativas; duas, devidamente orientada ao Sol, era um pequeno laboratório que obtinha positivos; e três e a melhor, permitia a projecção “pública”, como os dois irmãos, também inventores do cinema, afirmavam.
 
A reversibilidade da máquina foi sempre fundamental para os dois irmãos, pois reversíveis eram as suas casas gémeas e contíguas em Lyon, onde viviam seis meses um numa e o outro na outra e ao contrário, tão unidos desde que um salvou o outro de se afogar. Além disso, era uma máquina muito leve e funcionava sem electricidade, porque conseguia ser autónoma já que funcionava à manivela (algum francês deveria escrever um dia a história da manivela no mundo). A manivela transformava a relação do operador com a máquina porque tornava possível, durante a projecção, a manipulação da velocidade, e o espectador podia admirar, se quisesse, a beleza e perfeição, a alegria do movimento e a ligação entre o homem e a máquina.
 
Não se insistiu o suficiente que os dois irmãos inventaram o conceito de take e, sobretudo, que o tornassem tecnicamente possível quando, inspirados pelo seu carpinteiro e construtor-chefe, justamente chamado Carpentier, fabricavam muito mais magasins de pellicule para conter o filme do que câmaras; de modo que, quando o operador esgotava esses preciosos metros de película, tirava do bolso outro pequeno magasin carregado sem passar pela câmara escura. Isto permitiu que a câmara, sempre carregada de filme, estivesse sempre pronta; tal possibilitou, por exemplo, que Gabriel Veyre filmasse um dos filmes mais bonitos que já foi filmado, em dois takes.
 
Gabriel Veyre era o mais talentoso dos muitos operadores que os dois irmãos tinham treinado e contratado para levar o aparelho por todo o mundo. Até muito recentemente, a maior parte da sua vida e obra fantástica dormia num armário familiar até ser descoberto por Phillipe Jacquier, o seu bisneto que, juntamente com Marion Pranal, o devolveu ao seu legítimo lugar na grande História do Cinema e da Fotografia. Filmou e projectou filmes pela primeira vez no México, Canadá, Venezuela, Colômbia, Cuba e resto das Caraíbas, no Leste da China, Japão e Indochina, no actual Vietname, onde em meados de Fevereiro parou numa aldeia para tomar café. Aí rodou um filme que aparece no catálogo dos irmãos com o número 1296 e se intitula Le village de Namo: panorama pris d'une chaise à porteurs.
 
O motivo do filme é tão banal quanto bonito: as crianças da aldeia onde o francês parou correm atrás do carro, despedindo-se do visitante inesperado que se afasta com a câmara apoiada nos joelhos num carrinho que chocalha, do qual (sem tripé) dá voltas à manivela ao mesmo tempo que faz uma panorâmica. Este pequeno filme não é apenas o primeiro travelling para trás da breve história do cinema, mas também contém, note-se, toda a crueldade e ternura da infância (e do cinema) em, primeiro, um puxão de cabelo de uma menina mais velha a uma mais nova e, depois, no inestimável sorriso de uma menina para Gabriel Veyre, para a câmara no final do filme e plano, para os espectadores. O cinema não filma imagens, mas sim gestos, formula Agamben. Tudo isto não teria sido possível sem aquele precioso acessório portátil com a forma de uma caixa de dominó.

https://www.youtube.com/watch?v=u00HsDpCbCk


Os habitantes desta aldeia na Indochina provavelmente nunca viram este filme projectado. Mas devemos insistir que o cinematógrafo, que é o nome dado à máquina pelos dois irmãos, não foi concebido apenas para a captação de imagens em movimento, mas que se considerou igualmente importante a revelação e a projecção das imagens, com a mesma máquina. Infelizmente, a prodigiosa reversibilidade do cinematógrafo foi rapidamente abandonada pela lógica da exploração comercial, mas a dicotomia produção / difusão nunca existiu originalmente na máquina dos Lumière, pois era esse o nome dos dois irmãos.
II
 
O meu pai contou-me que quando tinha oito anos, como não conseguia tirar os olhos do ecrã onde Errol Flynn – o General Custer – abraçava a morte e a glória na última bobina de They Died with their Boots On (1941), teve de mijar numa parede do cinema Tetuán em Madrid, que já não existe. Uma vez vi um amigo adolescente, que agora tem quatro farmácias e três filhas, masturbar-se na sessão das 22h no “galinheiro” do Cinema Muñoz de Tembleque em Toledo, Espanha, que obviamente já não existe, porque não gostou do filme. Se fosse uma pessoa frívola, poderia dizer que tudo isso se está a perder, como o fumar no cinema se perdeu há tanto tempo, mas não o vou dizer. Mas no que devemos insistir neste tempo sem cinema é que o grande talento dos irmãos Lumière foi fazer do cinema um espectáculo público, familiar, inclusive para padres, soldados de licença e criadas vestidas de domingo, como mostrava aquele belo cartaz que para as primeiras exibições pagas fez litografar Henry Brispot, um amante da vida quotidiana e popular, que teve a sabedoria de não mostrar o mistério na sala, mas às pessoas apinhadas à porta do cinema, porque o cinema para além de se ver, conta-se.
 
III
 
Na cinemateca de qualquer país, o trabalho de pesquisa e conservação, as publicações, são muito importantes. Poucas têm dinheiro para isso. Em Espanha temos um dos grandes centros de conservação do mundo, criado pelo entusiasta Chema Prado, mas sem o pessoal para mantê-lo. Mas hoje, mais do que nunca, é igualmente importante, se não mais, exibir, porque já não há salas de cinema. Os americanos cada vez que compram um filme aos europeus, vendem-lhes uma dúzia. O défice é incrível. É uma invasão mundial. Todos os anos perdemos nesse negócio uma quantidade brutal, além da identidade. Com a crise há cada vez menos dinheiro do Estado para o cinema, e os mais poderosos querem esse dinheiro para si mesmos. Há falta de dinheiro para filmes, mas acima de tudo há falta de salas de cinema e ecrãs no mundo, acima de tudo há falta de ecrãs. Nos Estados Unidos, que se diz que é um país de brutos, há mais ecrãs por habitante do que em qualquer outro lugar do planeta. A França – que é o país que tem mais público – tem muito menos ecrãs, mas vai mais ao cinema. Na feliz Roménia e em Portugal já quase não há salas de cinema, mas filmam grandes filmes que quase ninguém no seu país vê.
 
Temos de ir ao cinema. Se não formos ao cinema, se não fizermos os nossos próprios filmes, portugueses e espanhóis, uruguaios e franceses, romenos, os nossos filhos não verão imagens de seu país e não saberão quem são, quem foram os seus pais e avós, mas também não saberão como as pessoas vivem noutros lugares. É muito fácil perder a identidade, perde-se com a roupa e o sexo, perde-se através das imagens da televisão e da internet mal digeridas, dos jogos de vídeo e do futebol, perde-se quando em Espanha se tira a filosofia do currículo ou se deixa de ler Onnetti, Eça de Queiroz ou Cervantes... perde-se muito rapidamente, sem nos darmos conta. E é para isso que servem as cinematecas.
 
Temos que voltar às salas de cinema e temos que (re)aprender a ver. O cinema é um espectáculo gregário, praticado em comunidade, e fazer comunidade sempre foi fazer cultura, e fazer cinema sempre foi fazer comunidade. O ecrã, a sala de cinema, é a parte mais esquecida do cinema pelos governos, mais do que a produção. A falta de sensibilidade a esta questão é terrível: é prioritário resolvê-la.
 
IV
 
Gabriel Veyre, depois de viajar pelo mundo com o cinematógrafo Lumière, quando se considerava reformado aos 30 anos de idade em 1900, recebeu uma misteriosa chamada do Venerável Sultão de Marrocos. Embarcou então com um contrato de três meses para introduzir o simpático Sultão nos mistérios da câmara escura e do cinematógrafo, mas nunca mais regressou a França; permaneceria em Marrocos durante quarenta anos. Mas isso, como disse Kipling, é outra história... Há três anos que trabalho nesta história para um filme produzido por Nathalie Trafford em França e que se intitulará Dans la chambre du Sultan.
 
Javier Rebollo
Nascido em Madrid, é produtor e realizador, tendo assinado mais de quinze filmes, entre documentários e obras de ficção, entre os quais as longas-metragens Lo Que Sé de Lola (2006), La Mujer sin Piano (2009) e El Muerto y Ser Feliz (2013), tendo este último sido apresentado na Cinemateca Portuguesa em Dezembro de 2015, no ciclo “Novíssimo Cinema Espanhol”, do qual foi o mentor.


Auto-retrato de Gabriel Veyre em Marrocos