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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 05/05/2020
Sala de Projeção: Inês N. Lourenço, "Um fantasma à hora do chá"
Sala de Projeção: Inês N. Lourenço,
Era uma sessão de matinée na Cinemateca como tantas outras que na altura faziam parte da minha rotina. O filme, Three Comrades / Três Camaradas (1938) de Frank Borzage, baseado num livro de Erich Maria Remarque e adaptado por um F. Scott Fitzgerald caído em desgraça, que viu os diálogos do seu argumento “literário” quase todos readaptados pelo, neste caso, produtor Joseph L. Mankiewicz. Trata-se da história de três ex-soldados alemães que se tornam inseparáveis depois da Primeira Guerra e da mulher que ilumina essa camaradagem. Isto era tudo o que eu sabia antes de ver a película, e saí da sala Félix Ribeiro sem saber muito mais: adormeci pouco depois da sequência do modesto casamento de Margaret Sullavan e Robert Taylor, ficando naquele plano em que vemos, de costas, as quatro personagens viradas para o altar improvisado no café de Alfons – como se estivessem os três amigos a casar com ela (no fundo, é mesmo isso) – e acordei com a subida das notas musicais de Franz Waxman no derradeiro plano do filme, em que os quatro se afastam no crepúsculo, de novo de costas, dentro de um lindíssimo enquadramento de neve, ramos de árvores despidas e as nuvens em configuração de cirrus. Primeiro fiquei intrigada com as silhuetas ténues de dois deles, por não saber o que lhes tinha acontecido, depois pus-me a pensar nesse bizarro raccord, autêntico gesto de montagem do meu sono entre os dois planos, e por fim sucumbi ao sentimento de frustração. Adormecer no cinema não é algo que me aconteça com frequência, mas calha a todos.
 
Esperei então que Three Comrades voltasse a passar na Barata Salgueiro, porque não queria preencher a lacuna com um visionamento desenrascado em casa. Era imprescindível para mim recuperar o momento perdido na grande tela da sala escura – e naquela sala escura em particular. Acima de tudo, esse último plano nunca me largou, desde a primeira vez em que não vi o filme. A sua beleza fantasmagórica (e depois percebi o porquê das silhuetas diáfanas de Sullavan e Robert Young) regressa-me muitas vezes à lembrança como uma despedida que, em surdina, “aponta para as estrelas”, com diz  Franchot Tone a Sullavan para lhe afastar o medo de viver o amor de um fôlego, ainda que toldado pela doença.
 
Como referi ao princípio, por outras palavras, Margaret Sullavan é a luz deste filme de Borzage. Pode dizer-se o mesmo de outro, e estou a pensar em The Mortal Storm / Tempestade Mortal (1940), mas em Three Comrades há uma dimensão muito física nessa luz: os seus olhos húmidos, a pele que parece adquirir um brilho etéreo e, somando-se a isso, aquela voz levemente rouca e de volume controlado (sequela dos problemas auditivos da actriz) conjugam-se na figura de uma mulher frágil que está sempre entre o céu e a terra, entre o dia e a noite. Não por acaso, ela menciona pelo menos duas vezes o receio da solidão noturna. “I don’t want to be alone tonight.” Ou “when it turns dark you need someone”. Secretamente, está a morrer de tuberculose.
No livro A Doença como Metáfora, escreve Susan Sontag que “por mais de século e meio, a tuberculose forneceu um equivalente metafórico para a delicadeza, a sensibilidade, a tristeza, o fatalismo.” Não encontro palavras mais precisas – delicadeza, sensibilidade, tristeza e fatalismo – para definir a presença de Sullavan ou o toque sublime de Borzage. Por fim, ela pode apagar-se (ela que é luz) porque tem o coração “full of love”, não só do homem com quem trocou alianças, mas de todos e cada um dos três companheiros.
 
Reconheço que não parece de bom tom estar a falar de doença e morte nestes dias de pandemia, mas até por isso achei que fazia sentido não resistir à convocação íntima deste filme – ou melhor, daquela primeira sessão malograda – que de tempos a tempos me visita como um fantasma à hora do chá. Hoje, é muito clara para mim a razão pela qual me entreguei ao sono naquela tarde: a doçura de Three Comrades embala. O amor, assim tão terno, entre quatro personagens é um poderoso lenitivo.
 
Podia evocar várias sessões especiais... em que não adormeci. Escolho, todavia, ficar-me pelo último plano do filme de Borzage (antes do The End hollywoodesco), talvez porque não consigo explicar a minha fixação por esta imagem que acena como uma recôndita last picture show – e essa impossibilidade de explicar já teve o mérito de produzir o meu breve retorno imaginário à sala escura. Desejo que o dia em que regressarmos fisicamente à dita, o mais cedo possível, seja tão bonito como o início de Three Comrades: um jovem soldado que, finda a guerra, pede permissão a um major para lhe voltar a chamar pai, e depois o grande brinde aos camaradas.

 
Inês N. Lourenço