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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 12/05/2020
Sala de Projeção: Francisco Valente, "No Quarto Escuro"
Sala de Projeção: Francisco Valente,
Não me lembro exactamente da última vez que estive numa sala de cinema, dentro deste ano que veio interromper as nossas vidas como uma projecção parada a meio, mas lembro-me exactamente daquilo que sentia dentro dela. Todos nós — cinéfilos, programadores, realizadores — precisamos dessa projecção como quem precisa de água para beber, um serviço que, mesmo no meio de uma epidemia, consideraremos sempre “essencial”. E se sei exactamente aquilo que a sala de cinema me fazia, é porque os filmes que me marcaram nela afectam-me como um amante ao qual voltamos para lhe entregarmos o nosso olhar e o nosso corpo. A experiência de ver um filme numa sala de cinema é, por isso, uma experiência física — e que hoje nos deixa um insubstituível vazio por estarmos impedidos de vivê-la.
 
Penso nesses filmes, dizia, pois a sala de cinema permite essa transgressão e utopia impossível (ou indesejável, ou nada disso, dependendo do espectador) na vida real: termos vários amantes em simultâneo, na memória, depois de nos termos entregado a eles numa cadeira onde, iniciada a projecção, convidámos um filme a tomar conta dos nossos sentidos com um simples “faça de mim o que quiser”. A facilidade com que nos entregamos à suposta veracidade das imagens, à nossa frente, deve-se a essa sede de desejo: não de nos revermos no outro, simplesmente, mas de sermos algo mais através dele, descobrindo, dentro de nós, algo que as imagens ajudaram a revelar. Desejo, repito, sublimado por termos um filme só para nós no meio de um grupo de pessoas, sem que este se apague na nossa experiência, sem que esta nos dispa perante outros para que vejam a maneira como nos entregamos a um filme. Este affair to remember não se vive no isolamento e na segurança de uma casa: vive-se no meio do mundo e das vidas que se juntam, na sala de cinema, para ser guardada, dentro de nós, e desempenhar o seu papel nos encontros e outros casos que nos aguardam fora dela.
Pergunto-me, por isso: será que teremos a mesma disponibilidade, na verdadeira vida, para nos entregarmos a alguém da mesma maneira que fazemos com um filme? Acredito que a sala de cinema não nos encerra nessa experiência nem nos isola no meio dos outros. Pelo contrário, ensina-nos a procurar a viver a vida redobradamente, fora da projecção, e ajuda-nos a descobrir, na realidade que foi filmada, algo que nos abre os sentidos e nos faz entender que a experiência do espectador — a de sermos nós próprios e mais alguém — só se completa com outro olhar e outro corpo, fora da sala de cinema, junto ou próximo do nosso.
 
O que será então uma experiência “segura” para ver filmes e reabrir as salas? Não sei se continuaremos a ver filmes como fazíamos nem quantas salas de cinema ainda estarão abertas para nos oferecer essa experiência. O que desejo, pelo menos, é que esta não se torne numa experiência sã, inócua, esterilizada e sem risco na maneira como nos entregamos a um filme. E mesmo se a experiência de entrar numa sala (ou ficar umas horas dentro dela) se transformar num protocolo legal pouco prático ou convidativo a sair das nossas casas, que sejam os filmes, então, a chamar-nos à experiência escura da sala de cinema para que a projecção nos deixe uma marca da qual, afortunadamente, nunca conseguimos recuperar.
 
 
Francisco Valente
5 de Maio de 2020

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Francisco Valente nasceu em 1983, em Lisboa. Fez parte das equipas de programação do IndieLisboa e da Cinemateca Portuguesa e é realizador.

Notas

Imagem: "Mektoub My Love: Canto Uno" (Abdellatif Kechiche, 2017)