É aqui que nos despedimos de Jacques Derrida; a “vontade de poder” dá lugar à vontade de saber e ao desejo de verdade. Que verdade ? Uma conhecida lei da Física estabelece que não é possível conhecer simultaneamente a velocidade e posição de um determinado objecto (partícula) já que, para conhecer a sua posição é preciso “iluminá-lo” e quando isso acontece, ele muda de posição e de velocidade. Significa isto que a observação afecta sempre a “verdade do objecto”. Ao longo do ano de 2018 – Ano Europeu do Património Cultural e 70. Aniversário da Cinemateca Portuguesa –, e parte do ano de 2019, “gente da casa” e outra, que dela não sendo, dela não deixa de o ser, seleccionou, pensou e escreveu, debaixo da rubrica
Textos & Imagens, sobre diversos objectos que representam os vários arquivos que constituem o arquivo do CDI (segundo a feliz formulação de Teresa Borges), afectando-os e revelando o desejo de memória e o desejo de verdade de que falávamos; o arquivo de arquivos move-se, tem dinâmicas e lógicas internas que se ocultam e desocultam à medida do trabalho que sobre ele e a partir dele se desenvolve. As novas perspectivas que todos esses contributos trouxeram a objectos que pareciam fixos e instalados em categorias comuns e que, mercê desse trabalho, mudaram de posição e de velocidade, permanecem os mesmos, sendo já outros.
Como todos os arquivos, o do CDI requer uma domiciliação e um suporte estável, o que o liga de certo modo à inescapável determinação topográfica dos arquivos desde tempos imemoriais (a
arkhê dos arquivos à guarda dos arcontes). Supõe também a dimensão comum a essa
arkhê, a arqueologia. Exceptuando algumas instâncias determinadas pela necessidade de conservação da integridade dos documentos/monumentos, ou jurídico-legais, está totalmente aberto à comunidade, sinal de uma modernidade e de uma actualidade perenes, que dispensam o estabelecimento de uma autoridade hermenêutica legítima com acesso privilegiado a fontes recusadas a não-especialistas; o desejo de verdade é cosmopolita e democrático; o poder arcôntico que detinha em exclusividade as funções de unificação, identificação e classificação caminha a par e passo com o poder de consignar, isto é, de reunir os signos num sistema de sincronia ideal, no qual não existe distanciação absoluta, heterogeneidade ou segredo que o separe dessa consignação, ou da sua função institucional. Não cabe aqui discutir – embora fosse interessante fazê-lo – o impacto deste arquivo sobre a historiografia do cinema em Portugal e talvez também o impacto sobre a historiografia do arquivo e do arquivismo. É um trabalho que está por fazer e que, certamente, será feito um dia. De uma coisa estamos certos: este projecto de saber, de prática e de instituição, de comunidade e consignação é atravessado na totalidade do campo por uma questão política: a da res publica.
A Cinemateca é assim uma imensa sala de projecção, não só dos filmes, mas de tudo aquilo que com eles se relaciona, recusando a falsa aproblematicidade dos objectos; eles são, no fim de contas, uma inesgotável “planície de verdade” cuja pensabilidade nunca se esgota; ocultam-se e desvelam-se como enigmas; criam novos valores, sendo a sala de projecção não só a possibilidade de experiência dos objectos, mas a condição dos próprios objectos da experiência. Precisamos urgentemente de voltar à presença e à familiaridade.
Começámos agora a era do medo, sobretudo o medo de perdermos o controlo das circunstâncias e rotinas da nossa vida diária. Compreendemos que, talvez, já não sejamos só nós que já não conseguimos moldar as nossas vidas, conferir-lhes sentido, dar-lhes um rumo, mas que também quem nos governa tenha perdido o controlo, para forças que os transcendem e que se situam no domínio do inimaginável. Estamos, sem dúvida, garantidamente menos confiantes nos nossos objectivos e aspirações comuns. Como celebremente comentou o politólogo John Dunn, o passado está um pouco melhor iluminado que o futuro; vemo-lo com mais nitidez. Mais do que nunca, vamos precisar de instituições públicas sólidas, credíveis, poderosas no que toca à criação de confiança comunitária – confiança no projecto colectivo –, capazes de fornecerem serviços fiáveis fornecidos por um sector público devidamente financiado. Algumas dessas instituições já existem.
Arnaldo Mesquita