Ver

Pesquisa

Destaques

Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Antonio Rodrigues, "Estrelas na bilheteira"
Sala de Projeção: Antonio Rodrigues,
Um dos episódios a que mais lamento não ter assistido foi o dia em que Catherine Deneuve aceitou ficar na bilheteira do Olympic-Entrepôt, um dos dois cinemas dirigidos por Frédéric Mitterrand em Paris, a partir de meados dos anos 70, com uma programação de primeiríssima qualidade. Não sei em que ocasião isto se deu, nem quanto tempo durou a brincadeira, mas os espectadores que se dirigiram àquele cinema naquele dia depararam-se com Catherine Deneuve. Suponho que alguns não reparavam que ela era, que outros a reconheciam e não acreditavam no que viam e, sem dúvida, outros não hesitassem em lhe pedir autógrafos.
 
Mas embora lamente amargamente não ter comprado um bilhete de cinema nas mãos de Catherine Deneuve, tive uma surpresa semelhante certa vez na bilheteira de um cinema parisiense, ainda que a “estrela” que lá estava não fosse exatamente da mesma grandeza que Catherine Deneuve. Foi nos tempos em que a Cinemateca Francesa tinha duas salas, a oficial no Palais de Chaillot e uma outra, no quinto e último andar de Beaubourg (por uma questão de pureza ideológica, não se dizia Centro Beaubourg e muito menos Centro Pompidou). Embora eu detestasse aquele espaço, cujas cadeiras não podiam ser piores, ia lá com frequência, pois a programação era boa. Uma tarde apresentei-me na bilheteira para ver não sei que filme e tive um choque semelhante ao que devem ter tido aqueles que deram de caras com Catherine Deneuve vendendo bilhetes de cinema no Entrepôt. O homem que estava ali na bilheteira da Cinemateca era o mesmo que fizera o papel do filho em Teorema, de Pasolini. Estava mais velho e mais gordo (tinham-se passado muitos anos), mas perfeitamente reconhecível.
 
Antes mesmo desta aparição, não muito semelhante à de Terence Stamp em Teorema, eu já sabia que ele era chileno e se chamava Andrés Cruz. Chegara a Roma em meados dos anos 60 e tivera a sorte de fazer o filme de Pasolini. Pensou, compreensivelmente, que isto lhe abriria as portas do cinema, mas nada aconteceu, ou melhor, quase nada. Antes do filme de Pasolini, ele fora figurante no Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli e, pouco depois, numa situação digna de um filme de ficção, teve um pequeno papel num western spaghetti de Sergio Corbucci, com Johnny Halliday e Françoise Fabian (que mistura!), Gli Specialisti. Depois de viver algum tempo em Roma, ainda nos ecos da glória de ter participado de Teorema, mas sem fazer nada de preciso naqueles tempos em que se vivia de brisa, veio tentar a sorte em Paris, onde a coisa também parece não ter corrido bem. O escritor Armando Llamas, que o conhecia, contou-me que, num momento especialmente duro do ponto de vista financeiro, ele escrevera a Pasolini pedindo ajuda e teria recebido uma recusa cruel. Andrés Cruz desapareceu do mapa não muito tempo depois desta aparição à minha frente (não posso escrever visão, mesmo levando em conta que ele foi ator numa enigmática obra-prima sobre o tema da visitação).
Contava-se ainda a respeito dele uma história mais do que provavelmente falsa, mas que, como dizem os italianos, se não é verdadeira é bem pensada. Ele teria acionado certa vez “por engano” o dispositivo anti-incêndio, o que desencadeou uma verdadeira catarata. Segundo esta versão, a água teria descido até o quarto andar, logo abaixo da sala de projeção da Cinemateca, onde fica o museu, com aquela coleção fabulosa de pintura do século XX e que, por pouco, alguns quadros não foram atingidos. Ouvi, a este propósito, o seguinte comentário: “Agora, eles contratam os Marx Brothers!”. Por conseguinte, o ex-ator que fizera o papel do filho em Teorema não era a única estrela presente na bilheteira da Cinemateca Francesa, no último andar do Centro Beaubourg. Groucho, Chico, Harpo e Zeppo Marx também estavam lá, pelo menos em espírito e, quem sabe, também a Marx sister adotiva, uma das minhas estrelas secundárias preferidas: Margaret Dumont, imperiosa e imperial figura de uma lady de outros tempos, sempre às voltas com a anarquia infantil dos bigodes de Groucho. Se nas paredes de Paris em Maio de 1968 lia-se a famosa declaração Sou marxista, tendência Groucho, pessoalmente serei sempre tendência Margaret Dumont, embora o ator do filme de Pasolini tivesse mais semelhanças com Harpo (cuja peruca era ruiva e não loura), porém desprovido da mesma aura poética.
 
Antonio Rodrigues