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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 20/11/2021
O Museu vai a casa
O Museu vai a casa
Câmara de filmar/Projetor 35mm
Kinétographe de Bedts
George William de Bedts
Paris, França, 1896
CP-MC|GF586

 
Câmara de filmar reversível, número de série 65; equipada com uma lente f/8 Pappillon S.A. "Rectilinge"; em falta o visor lateral; sistema de tração intermitente por duas rodas dentadas (35 mm, perfurações Edison); obturador de disco de abertura fixa com duas aberturas diametralmente opostas; uma bobina interna com capacidade para bobinas de 30m de película; mecanismo de manivela manual; inscrição "BREVETE SGDG".
Este "kinétographe de Bedts" foi a câmara reversível utilizada por Aurélio da Paz dos Reis (Porto, 1862-1931), um dos primeiros cineastas portugueses, em 1896. Foi fabricada por George William de Bedts em Paris, em 1896, um dos muitos cinematógrafos/projetores que se espalharam pela Europa em consequência da resistência dos irmãos Lumière em vender o seu próprio "cinématographe" antes de maio de 1897. Segundo Laurent Manonni e Eric Lange, a câmara reversível de Bedts, com patente registada em janeiro de 1896, foi a primeira câmara/projetor a ser vendida em França e foi considerada a maior competição dos irmãos Lumière. Não se sabe muito, contudo, sobre o próprio inventor (não há imagens, nem informações sobre as suas datas de nascimento ou morte nesta altura). De Bedts vendia película e equipamento fotográfico da European Blair Camera Company (Londres) em Paris desde c. 1893, e também vendeu aparelhos de Georges Demenÿ a partir de 1894. No final de 1896, comercializou também uma versão mais pequena e simples do seu "kinématographe" destinado a amadores, quase cinco vezes mais leve do que o modelo profissional de 5 kg.
Paz dos Reis comprou a sua câmara de filmar/projetor em Paris, no Verão de 1896, já a pensar organizar uma digressão no Brasil. Sabendo que o cinema já não era uma novidade absoluta nem em Lisboa nem no Porto, as maiores cidades de Portugal, decidiu apelar ao público de emigrantes portugueses no Brasil, explorando as suas saudades de casa com imagens originais em movimento do seu país. Em finais de 1896, Reis realizou mais de 30 filmes em Lisboa e no Porto, a escolha dos temas e enquadramento foram diretamente influenciados pelo catálogo Lumière: longas filmagens fixas de ruas movimentadas e edifícios ou monumentos icónicos, marcos naturais, desfiles militares, festivais folclóricos, danças e mercados, cerimónias religiosas, e as inevitáveis praias e fábricas. Um bom exemplo é o título Saída dos operários da Fábrica Confiança, considerado o primeiro filme de um cineasta português e o mais antigo guardado no arquivo cinematográfico da Cinemateca. Seria recriado mais de um século mais tarde por Manoel de Oliveira, também nascido no Porto, no seu filme autobiográfico Porto da minha infância (2001).  
Depois de algumas exibições públicas de grande sucesso no Porto e Braga em novembro de 1897, Paz dos Reis atravessou o Atlântico para apresentar o seu "kinetógrapho portuguez" no Rio de Janeiro. As exibições não obtiveram o sucesso esperado porque, para além de várias dificuldades de projeção, os seus filmes não eram suficientemente apelativos para um momento em que o cinema também não era uma novidade absoluta no Brasil. Desapontado, Paz dos Reis abandonou completamente o cinema, e retomou as duas atividades profissionais pelas quais se tornou famoso na história portuguesa: a fotografia, e a sua floricultura. Além disso, devemos acrescentar que Aurélio da Paz dos Reis foi também uma figura de destaque no movimento republicano, tendo passado algum tempo na prisão após o falhado golpe de 1891 contra a monarquia constitucional portuguesa. Ele viveu para ver a implantação de um regime republicano em 1910, mas também a ditadura militar que se lhe seguiu em 1926. Morreu em 1931, o ano em que foi lançado o primeiro filme sonoro português.
Este aparelho cinematográfico entrou para as coleções da Cinemateca Portuguesa em 1982. Pertenceu às famílias de dois atores de teatro portugueses (Miguel Verdial e Alves da Cunha) antes de ser oferecido em 1956 a Alberto Cutileiro, um dos colecionadores mais omnívoros de Portugal. A câmara foi identificada em 1975 pelo historiador de cinema, A. Videira Santos, que não só a identificou corretamente como a câmara utilizada por Paz dos Reis, mas também o seu modelo e fabricante original. Hoje, apenas mais três unidades são conhecidas em museus e arquivos cinematográficos nos EUA e na Europa, tornando-a uma peça importante não só da história do cinema português, mas também da história inicial da tecnologia das câmaras de filmar europeias.