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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 29/04/2020
Sala de Projeção: Nuno Sena, "O cinema dos gestos descontinuados"
Sala de Projeção: Nuno Sena,
Na véspera do encerramento das salas da Cinemateca, preparava uma folha de sala sobre o maravilhoso Domenica d’agosto de Luciano Emmer, programado em rima com Conte d’été de Rohmer num soalheiro Double Bill dedicado a dois extraordinários filmes “de  verão”.  A sessão era no sábado, o fecho das salas aconteceu na sexta anterior, e, por isso, nem filme nem folha. “I was interrupted” (como diz o título do livro de Nicholas Ray), mas não completamente e não por muito tempo. Na ressaca da súbita interrupção da possibilidade de ver cinema em sala nasceu o desejo de encontrar refúgio no prazeroso cinema de Emmer, ainda que em formato doméstico e graças à irmandade secreta que na internet mantém acesa a chama da cinefilia num mundo em que, com cada vez mais imagens para ver, o cinema é cada vez menos importante. Nas suas muitas faces, a cinefilia contemporânea não tem tanto a ver com o tamanho do ecrã em que se vêem os filmes mas com a “qualidade dos olhares” de quem está perante os filmes, como lembrava o crítico Jean-Baptiste Thoret numa entrevista há umas semanas no Ípsilon ou como se via numa cena sintomática do estados das coisas na nostalgia “très nouvelle vague” de Mes provinciales (Jean-Paul Civeyrac), na qual  três estudantes de cinema em Paris descobrem com assombro a desmesura de um filme de Marlen Khutsiev na pequenez de um computador portátil.
 
Para além da renovação das alegrias proporcionadas por Domenica d’agosto, a visão sucessiva de Camilla, La ragazza in vetrina, Il bigamo, Le ragazze di Piazza di Spagna, Parigi è sempre Parigi e Terza liceo em forma de retrospectiva de autor em versão caseira teve o efeito secundário de servir como compensação para o drástico confinamento das primeiras semanas do novo regime de pandemia. Repleta de gestos entretanto proscritos – beijos, abraços, passeios, vidas vividas na rua mais do que em casa –, a obra ficcional de Emmer tinha-se tornado de um dia para o outro num longo documentário social sobre os tempos pré-covid e tornava ainda mais pungente a distância entre a Itália martirizada pelo vírus nesses dias de bombardeio noticioso sobre a escalada de mortos e um outro país de que o cinema italiano do pós-guerra foi o melhor retratista e inventor, naquele que foi talvez o encontro mais feliz entre um cinema e uma identidade nacional. Esse cinema, também ele descontinuado, foi uma enorme arte popular sem nunca ser popularucho e tornou-se absolutamente indistinguível da sua matéria humana.
Nos antípodas de qualquer distanciamento social, as personagens de Emmer desejam acima de tudo estar próximas e, na sua irredutibilidade individual (e Emmer e os seus abençoados actores dão a cada uma delas, independentemente do seu estatuto social e narrativo, uma existência que não é apenas efeito de cinema mas a fusão miraculosa deste com a vida), existem mais verdadeiramente no interior de um colectivo maior, o da grande comédia humana. À superfície mais sentimental do que político e mais ligeiro do que grave (ou, mais correctamente, ao mesmo tempo grave e ligeiro), cada filme de Emmer é um convívio retemperador com a força de personagens a viver as suas vidas em primeiro grau e incapazes de cinismo ou sobranceria.
 
Se ainda estiverem vivos, muitos dos jovens actores de Emmer (cineasta que tão bem soube filmar essa juventude) serão hoje octogenários e nonagenários (grupo de elevadíssimo  risco, portanto, nos tempos conturbados que atravessamos). Mas na duração destes filmes todos eles existem novamente no esplendor dos seus anos de mocidade, nas alegrias e tristezas das suas histórias de primeiros amores e desamores, numa plenitude de sentimentos que faz de cada sequência uma celebração renovada na potência ilimitada da vida (e, que me recorde, não há uma única morte no conjunto de títulos acima referido, o que diz tudo sobre o impulso vitalista que é o cerne do cinema de Emmer), existências alheias ficcionadas mas mais verdadeiras por isso mesmo e que com todo o gosto fazemos momentaneamente nossas. O cinema é mesmo a arte da ressurreição do passado, como dizia o velho Bazin, e o melhor bálsamo para as agruras do presente, digo eu.
 
Se a cinefilia como culto ainda tem na sala de cinema o seu templo de eleição, esperemos que venha novamente o dia em que haja a possibilidade de poder partilhar a felicidade deste cinema numa verdadeira sala e na companhia de outras pessoas, conhecidas e desconhecidas, dispositivo na qual se forjou o sentido da experiência do cinema, do seu impacto e da  sua longevidade, por agora interrompido mas não certamente descontinuado.
 
 
Nuno Sena
28 de Abril de 2020