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Assunto: CINEMA PORTUGUÊS
Data: 03/03/2016
NOÉMIA DELGADO 1933-2016
NOÉMIA DELGADO 1933-2016

Máscaras documenta várias festas e rituais do Nordeste Trasmontano, abordando as tradições seculares do chamado “Ciclo de Inverno” ou das “Festas de Inverno”, celebrações de origem pagã que evocam o solstício, a transição para a idade adulta (“a Festa dos Rapazes”) e os vários ciclos da vida. Como acentua o texto introdutório de Máscaras, narrado pela voz do escritor Alexandre O’Neill, os mascarados envolvidos nestas celebrações que, no nosso país, se concentram nas “terras de feição ainda arcaizante do Nordeste Trasmontano” são personagens que têm também uma forte relação com a morte, tratando-se de tradições associadas ao culto dos mortos, que remontam a eras longínquas e a tempos que precedem o cristianismo.

 

Por pretender registar um conjunto de celebrações de origem popular em vias de desaparecimento, bem como a relação com o quotidiano dos seus praticantes, poderemos inscrever Máscaras naquele que foi designado por Eduardo Prado Coelho como um “movimento antropológico do cinema português”. “Movimento” que, não por acaso, se desenvolve na década de 70, e recupera o interesse pelas tradições e pela ruralidade de regiões como Trás-os-Montes. Entre os filmes produzidos nessa altura encontramos assim Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada (1973), de Manuel Costa e Silva, Falamos de Rio de Onor (1974), de António Campos, Argozelo (1977) de Fernando Matos Silva, ou o emblemático Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro. No início da década anterior, Manoel de Oliveira havia já realizado o belíssimo Acto da Primavera (1962), que abrirá o caminho para este conjunto de filmes que se alimentam da cultura popular e que manifestam um interesse etnográfico, sem sacrificar a forma cinematográfica.

 

Máscaras colocará várias questões levantadas por muitos destes filmes, alargando-as a uma problematização da instabilidade da fronteira entre o registo e a ficção como modo ideal de representação do real. Centrando-se ainda no Nordeste Trasmontano, o filme de Delgado tem uma maior amplitude geográfica que uma outra obra sobre as mesmas tradições dessa região, como Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada. Enquanto Costa e Silva filmou os mascarados numa única localidade - Grijó de Parada -, optando por integrar as festas nas restantes dimensões do quotidiano da aldeia, Delgado realizou Máscaras entre Varges, Grijó, Bemposta, Rio de Onor, Podence e Bragança. As suas filmagens foram prolongadas entre o Natal de 1974 e Fevereiro de 1975 e acompanharam as respectivas festas do Ciclo de Inverno: Festa dos Rapazes, Santo Estêvão, Natal, Ano Novo, dia de Reis e Carnaval. Não obstante as suas diferenças, estes dois filmes, possuidores de uma força invulgar, ecoam um sobre o outro. Ao documentar o Santo Estêvão em Grijó de Parada, Noémia Delgado ajuda-nos a melhor compreender a cerimónia composta por uma refeição colectiva cuja mesa é instalada no largo da aldeia, festa já filmada por Costa e Silva, que não nos dava todos os elementos para o seu entendimento.

Máscaras é a primeira longa-metragem de Noémia Delgado, cineasta que começou a trabalhar como anotadora, montadora e assistente de outros realizadores como António da Cunha Telles, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, mas Máscaras não é o seu primeiro filme, pois Noémia Delgado já se havia estreado na curta-metragem. Todavia Máscaras é, sem dúvida, o seu mais belo filme. Ao registar um conjunto de tradições cujo significado e rigor na representação se estavam a diluir progressivamente no tempo em virtude de factores como a cada vez maior escassez das máscaras e de trajes (o que limitava as comemorações), mas também o fenómeno da emigração, que levava os homens mais jovens a abandonar as aldeias, deixando para trás os idosos, as mulheres e as crianças, sendo estes rituais profundamente masculinos, Delgado fará muito pela recuperação dessas mesmas tradições.

 

Face ao desejo de filmar algumas das tradições já desaparecidas para as comunidades locais, Noémia Delgado chega, na tradição de Jean Rouch, a enveredar por uma “recriação possível”, o que se revela nas curiosas imagens finais em Bragança que fazem renascer os rituais da quarta-feira de cinzas. Recorrendo à encenação, Noémia Delgado retrata várias festas e tradições perdidas, ao mesmo tempo que contribui para a sua própria revitalização. Entre o propósito da cientificidade, traduzido pela presença de dois antropólogos como consultores, e a aposta na recriação, Máscaras aponta para os pressupostos de um cinema não inocente, que transforma positivamente o que filma.


Joana Ascensão