A nível de estrutura, estes balanços – como França os designa, embora o seu carácter vá muito para além daquilo que como tal se costuma designar – são anuais e compreendem a evocação que nesse período temporal o impressionou positiva ou negativamente na produção nacional e internacional, enquadrando sempre as obras no contexto social, político e cultural em que foram produzidas e avaliando o seu impacto na definição da modernidade nos termos que temos vindo a referir. Nesse sentido, a visão de França em relação ao panorama cinematográfico português, anterior ao chamado “cinema novo”, é amarga e pessimista, como se pode constatar na seguinte declaração:
«Cinema português, não. Perdido em problemas económicos e anedotas financeiras, ele tem aos ombros a tragédia da falta de gente que o realize. Que venha outra, nova, porque a que há (e exceptuando Manuel de Oliveira), de todo em todo não presta.» (p. 204)
Para compreender este diagnóstico, ou este retrato em tons negros da cinematografia nacional, é preciso ler de fio a pavio cada um dos «balanços» e verificar o modo exigente como o autor avalia em cada ano a produção portuguesa, a sua aflitiva indigência de meios económicos e expressivos, a falta de argumentos sólidos e a ausência de autores, sobretudo quando contrastada com as realidades europeia e norte-americana; uma tendência que é marca de água da sua metodologia analítica e que é expressa em termos definitivos na nota de Roland Barthes que acima reproduzimos. Como se compreende, França aplica ao cinema a mesma metodologia que emprega na avaliação da situação e evolução da arte portuguesa ao longo do século XX: sempre em relação de oposição ou tentativa de confluência com as suas congéneres de outras latitudes.
De qualquer modo,a sua finíssima intuição apresenta-lhe já o obrigatório e iminente surgimento de uma nova geração, de novas perspectivas, enfim, de autores capazes de iniciarem uma revolução no estado de coisas da nossa cinematografia. Como sabemos hoje, essa intuição foi certeira e realizou-se. Aliás, é no próprio devir do cinema que França encontra a sua maior virtude modernista; reconhecendo que todo o saber, independentemente do seu objecto, é sempre provisório, admite que a arte cinematográfica tem um significado sociológico imediato, comprometido e indomado, tornando-se assim um elemento fundamental da fenomenologia do século XX e remetendo para uma atenção constante a esse sociológico que atravessa todos estes «balanços»: o sociológico é aqui sociologia do espectador, patente na seguinte afirmação:
«Feito para o público “que tem sempre razão” pelo que quer e pelo que necessita, ele cria-lhe os desejos e as necessidades. Elemento número um de uma mito-sociologia actual, o cinema rodeia-nos invisivelmente, explica-nos o mundo, enche-nos o sonhar colectivo, espreita-nos e fabrica-nos.» (p. 194)
Outra característica determinante no pensamento do autor no que diz respeito à década cinematográfica que analisa, é a constatação de que o cinema, pela primeira vez, se incorpora num movimento universal de expressão, podendo agora intervir, actuar para além dos limites que absurdamente lhe foram impostos e das proposições que lhe foram atribuídas. Tal movimento de expressão universal é por ele fulgurantemente definido nestes termos:
«No romance que se diria pós-faulkeriano (e pós-becketeano, desde já), no teatro de novas vias de conhecimento, e de proposição de uma nova consciência, de Beckett, de Adamov, de Ionesco e de Sheadé, na poesia, depois de Ezra Pound, na pintura de um Bazaine, de uma Vieira da Silva, de um Bissière, de um De Staël, em correntes da música e do ballet contemporâneos, novas estruturas psicológicas estão a traduzir-se, efabulativamente ou não, na criação de um
espaço e de um tempo ambíguos – que a ciência física e a filosofia verificam.»
[1]
Ou seja, França pensa a modernidade cinematográfica também pela via do fim de um desligamento do cinema pela problemática estética geral e pela adesão total aos valores da vida (valores viventes). E, ainda, pela exigência e interrogação. Se, como alguém disse, a crise é a tónica e a característica determinante da modernidade, toda a crise é, para além do pessimismo e do optimismo entorpecedores, criativa e fecunda. É este – julgamos nós – o maior dos ensinamentos destes escritos que, como todos os grandes textos da contemporaneidade, assumem plenamente o estatuto provisório do saber que procuram alcançar e comunicar. Para finalizar, não resistimos a reproduzir, como corolário, aquilo que Hervé Bazin afirmou a propósito da obra
Charles Chaplin – Le Self-Made Myth[2]:
«Voici un travail critique capital auquel on ne pourra désormais manquer de se référer. Ses 250 pages de réflexions méthodiques sur le mystère chaplinesque constituent sans doute l’effort critique le plus poussé et le plus complet sur le phénomène Chaplin considéré dans sa signification éthique et sociologique.»
[3]
Arnaldo Mesquita
José-Augusto França,
Dez anos de cinema. Lisboa, Sequência, [s.d.], 218 p.
Tipologia documental: livro
Cota: 70
[1][1] José-Augusto França,
Oito Ensaios Sobre Arte Contemporânea. Mem Martins, Publicações Europa-América, 1967, p. 198.
[2] Publicado em Portugal pela editora Livros Horizonte, sob o título
Charles Chaplin, O “Self-made-Myth”. Também disponível para consulta na Biblioteca.
[3] «Eis aqui um trabalho crítico fundamental ao qual não poderemos futuramente deixar de nos referir. As suas 250 páginas de reflexões metódicas sobre o mistério chaplinesco constituem sem dúvida o esforço crítico levado mais longe e mais completo sobre o fenómeno Chaplin no seu significado ético e sociológico.». Citado na introdução ao texto
O Cinema Italiano e Eu, publicado na revista
Estudos Italianos Em Portugal, Lisboa, Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, Nova Série, número 11.