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Assunto: in memoriam
Data: 26/11/2019
Em homenagem a Jean Douchet, também colaborador regular da Cinemateca, publicamos um texto evocativo de Antonio Rodrigues (da equipa de programação da Cinemateca) e uma das suas intervenções no ciclo “Histórias do Cinema Jean Douchet/Eric Rohmer”
Jean Douchet (Arras, 19 de Janeiro de 1929-Paris, 24 de Novembro de 2019)

Com Jean Douchet, desapareceu um dos mais talentosos comentadores de cinema da sua geração, que mudou alguma coisa no cinema: a geração da Nouvelle Vague, da qual ele foi companheiro de viagem e posteriormente historiador, além de grande exegeta. Como eles e como tantos outros, Jean Douchet era um dos filhos da Cinemateca, a Cinémathèque Française no longo período em que esta foi dirigida por Henri Langlois. De modo simbólico, Douchet tem uma brevíssima aparição num dos filmes que lança a Nouvelle Vague, Les Quatre Cents Coups (1959), de François Truffaut, no papel do amante da mãe do protagonista. No entanto, é preciso sublinhar que a sua relação nem sempre foi totalmente pacífica com todos os membros daquele grupo. Depois de colaborar (como François Truffaut e Jean-Louis Bory) no excelente semanário Arts, Douchet tornou-se colaborador regular dos Cahiers du Cinéma quando a revista já se tinha imposto. No início dos anos 60 duas tendências divergentes se definiram na revista, cujo editor-chefe era Eric Rohmer, de quem Douchet sempre foi extremamente próximo e com quem tinha grande afinidade intelectual (em 1993, Rohmer exigiria que fosse Douchet a pessoa encarregue de o entrevistar para a série de documentários Cinéma – de Notre Temps). Um grupo organizado à volta de Jacques Rivette e formado por uma nova geração de colaboradores da revista queria tomar o poder e opunha-se de modo cada vez mais veemente à linha de Rohmer, argumentando que era preciso abrir a revista a outros horizontes da arte e do pensamento contemporâneos. Em 1963, houve um autêntico golpe de Estado nos Cahiers du Cinéma, Rohmer foi deposto e Douchet foi literalmente expulso, fisicamente empurrado para fora da redação da revista, num gesto no qual há uma dose evidente de homofobia e ódio de classes, pois Douchet vinha de uma família abastada, embora em 1963 ele nada tivesse herdado e vivesse do seu salário. Dois anos depois, Douchet assinará a realização do primeiro episódio de Paris vu Par… que ele considerava como “o último filme da Nouvelle Vague e o seu único filme-manifesto” e que foi feito como uma reação de grupo ao que se passara nos Cahiers (Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jean Rouch e Jean-Daniel Pollet realizaram os demais episódios, François Truffaut preferiu ficar neutro). Em 1972, Douchet consentiria, com o seu espírito aristocrático, em fazer uma aparição em Céline et Julie Vont en Bateau, do seu inimigo Rivette, certo de que era ele que estava a rir por último. Por brincadeira ou amizade, Douchet faria diversas breves aparições como ator, inclusive para João César Monteiro, em A Comédia de Deus.
Ao longo dos anos, Douchet içou-se acima da condição de simples crítico, tornando-se um passador, alguém que permite que se transponha uma fronteira, eventualmente de contrabando, que transmite em surdina a capacidade de melhor apreender o cinema, sem pedagogia ostensiva ou terrorismo intelectual: sem programa, a não ser a consciência daquilo que se vê e o prazer de vê-lo. Por isso, uma compilação dos seus artigos foi publicada com o título L’Art d’Aimer. Jean Douchet era um bon vivant, um hedonista, apreciador e conhecedor de boa mesa, bons vinhos, bons carros e belos corpos e levou este gosto pelo prazer sensual, este temperamento de sibarita, para a sua relação com o cinema, reforçando-a com uma vasta cultura geral, que ele também abordava de modo hedonista e não sistemático. A elegância e a nonchalance que Douchet punha em todos os gestos da vida e na sua conversação irresistível, na qual podiam ser abordados todos os assuntos, era a mesma com a qual ele abordava o cinema, escrevia sobre cinema e falava em público sobre cinema. Douchet não se limitou a escrever excepcionalmente bem sobre cinema durante cerca de sessenta anos. Nos últimos trinta anos da sua vida, este homem que trabalhou até pouco tempo antes do fim e que teve o privilégio de ter um esplêndido outono na sua existência, tornou-se ainda mais conhecido e apreciado através das suas intervenções orais do que pelos seus artigos e livros, mas como tinha substância e era profundamente inteligente, jamais se deixou transformar numa vedeta da cinefilia, que vinha explicar coisas. O velho hábito de apresentar um filme e debater sobre ele ao fim da sessão, que vinha do movimento dos cineclubes, que Douchet certamente frequentara a partir da segunda metade dos anos 40, foi transfigurado por ele numa elegante exposição verbal em que havia um trabalho de contextualização, mas sobretudo eram dadas pistas para que o espectador pudesse ver o filme exclusivamente através das suas imagens e dos seus sons – o que é um enfoque verdadeiramente materialista, típico da cinefilia, que no entanto é uma paixão supostamente alienante e fetichista – e não através de teorias exteriores ao filme. Durante muitos anos e até muito pouco tempo, ele apresentou na Cinemateca Francesa o Cineclube de Jean Douchet, uma sessão mensal com uma programação muito variada. Isto fez deste homem que se tornou involuntariamente uma vedeta da apresentação de filmes um autêntico programador, que escolhia os filmes que queria compartilhar. Em relação ao cinema clássico, Douchet permaneceu fiel aos critérios da política dos autores dos anos 50 (tinha especial implicância com René Clair), mas manteve uma enorme curiosidade pelo que se fazia de novo. Jean Douchet esteve repetidas vezes na Cinemateca Portuguesa. Em 2005, teve uma carta branca na rubrica “Chegaram os Nossos Mestres” e participou duas vezes da rubrica “Histórias do Cinema”, com cinco conferências-apresentações de filmes de um realizador. Nas duas vezes, Douchet foi convidado a falar de realizadores cujos segredos poucos analistas seriam capazes de desvendar tão bem quanto ele: Jean Renoir, em 2012 e Eric Rohmer em 2016 (*). Estas conferências/apresentações foram absolutamente memoráveis e durante elas Jean Douchet revelou porque Jean Renoir era o seu cineasta preferido, numa frase que é uma chave para se perceber o seu próprio percurso: “Os filmes dele estão na vida”. E se houve alguém que soube simultaneamente separar e conciliar o cinema e “a vida”, este alguém foi Jean Douchet.

Antonio Rodrigues
26 de novembro de 2019

Notas

(*) “Histórias do Cinema Jean Douchet/Jean Renoir” (18-20 de abril de 2012); “Histórias do Cinema Jean Douchet/Eric Rohmer” (14-18 de março de 2016). Para além destas séries, Jean Douchet também apresentou na Cinemateca Tabu, de F.W. Murnau (21 de abril de 2012) e O Túmulo Índio, de Fritz Lang (7 de novembro de 2016).