Ao longo dos anos, Douchet içou-se acima da condição de simples
crítico, tornando-se um
passador, alguém que permite que se transponha uma fronteira, eventualmente de contrabando, que transmite em surdina a capacidade de melhor apreender o cinema, sem pedagogia ostensiva ou terrorismo intelectual: sem programa, a não ser a consciência daquilo que se vê e o prazer de vê-lo. Por isso, uma compilação dos seus artigos foi publicada com o título
L’Art d’Aimer. Jean Douchet era um
bon v
ivant, um hedonista, apreciador e conhecedor de boa mesa, bons vinhos, bons carros e belos corpos e levou este gosto pelo prazer sensual, este temperamento de sibarita, para a sua relação com o cinema, reforçando-a com uma vasta cultura geral, que ele também abordava de modo hedonista e não sistemático. A elegância e a
nonchalance que Douchet punha em todos os gestos da vida e na sua conversação irresistível, na qual podiam ser abordados todos os assuntos, era a mesma com a qual ele abordava o cinema, escrevia sobre cinema e falava em público sobre cinema. Douchet não se limitou a escrever excepcionalmente bem sobre cinema durante cerca de sessenta anos. Nos últimos trinta anos da sua vida, este homem que trabalhou até pouco tempo antes do fim e que teve o privilégio de ter um esplêndido outono na sua existência, tornou-se ainda mais conhecido e apreciado através das suas intervenções orais do que pelos seus artigos e livros, mas como tinha substância e era profundamente inteligente, jamais se deixou transformar numa vedeta da cinefilia, que vinha explicar coisas. O velho hábito de apresentar um filme e debater sobre ele ao fim da sessão, que vinha do movimento dos cineclubes, que Douchet certamente frequentara a partir da segunda metade dos anos 40, foi transfigurado por ele numa elegante exposição verbal em que havia um trabalho de contextualização, mas sobretudo eram dadas pistas para que o espectador pudesse ver o filme exclusivamente através das suas imagens e dos seus sons – o que é um enfoque verdadeiramente
materialista, típico da cinefilia, que no entanto é uma paixão supostamente alienante e fetichista – e não através de teorias exteriores ao filme. Durante muitos anos e até muito pouco tempo, ele apresentou na Cinemateca Francesa o Cineclube de Jean Douchet, uma sessão mensal com uma programação muito variada. Isto fez deste homem que se tornou involuntariamente uma vedeta da apresentação de filmes um autêntico programador, que escolhia os filmes que queria compartilhar. Em relação ao cinema clássico, Douchet permaneceu fiel aos critérios da
política dos autores dos anos 50 (tinha especial implicância com René Clair), mas manteve uma enorme curiosidade pelo que se fazia de novo. Jean Douchet esteve repetidas vezes na Cinemateca Portuguesa. Em 2005, teve uma carta branca na rubrica “Chegaram os Nossos Mestres” e participou duas vezes da rubrica “Histórias do Cinema”, com cinco conferências-apresentações de filmes de um realizador. Nas duas vezes, Douchet foi convidado a falar de realizadores cujos segredos poucos analistas seriam capazes de desvendar tão bem quanto ele: Jean Renoir, em 2012 e Eric Rohmer em 2016 (*). Estas conferências/apresentações foram absolutamente memoráveis e durante elas Jean Douchet revelou porque Jean Renoir era o seu cineasta preferido, numa frase que é uma chave para se perceber o seu próprio percurso:
“Os filmes dele estão na vida”. E se houve alguém que soube simultaneamente separar e conciliar o cinema e “a vida”, este alguém foi Jean Douchet.
Antonio Rodrigues
26 de novembro de 2019