É possível que o nome traga imediatamente à lembrança os olhos magnéticos, o sorriso franco, uma dúzia de filmes – e que dúzia de filmes –, a efervescência dos anos 60 da
Nouvelle Vague francesa, os epítetos de ícone, musa, estrela. Porque tudo isso é justo, mas também redutor e porque a resplandecência tende a ofuscar, nota-se menos depressa a intensidade do percurso, o risco, a variação. Actriz, Anna Karina tem uma filmografia de mais de 60 títulos com início dinamarquês, epicentro francês, amplitude internacional, e um relevante trabalho no teatro. A capacidade de manter a iniludível imagem e de compor personagens muito diferentes em muito diversos registos. Realizadora, assinou dois filmes. Cantora, tem discografia editada nas rotações do vinil e em dados digitais. Escritora, tem créditos como argumentista, romances publicados
[1].
“Luz! câmara! acção!...” Na traquina exclamação
off de Anna Karina, aliás, Angéla, o arranque da comédia musical sentimental em Technicolor e CinemaScope que é o seu segundo filme com Jean-Luc Godard larga todos os lugares comuns. Evidentemente pegando neles.
Une femme est une femme (1961). Estamos no
cinema (em letras maiúsculas e coloridas) quando o genérico apresenta os nomes de Brialy, Karina, Belmondo em letras (maiúsculas e coloridas) que se sobrepõem à imagem nos planos de cada um deles. É nesse momento que se ouvem as três palavras de comando do elemento feminino do trio, em inglês, como num filme de Hollywood.
Por exemplo, de Lubitsch, nome que já então surgiu (em letras maiúsculas e coloridas), até porque o que se segue retoma termos do filme americano dos anos 30 em que Miriam Hopkins desaustina Frederic March e Gary Cooper e lhes diz como se hão-de arranjar os três,
Design for Living. Não há um Godard mais esfuziante. Quando sente tristeza, Angéla oferece-se um interlúdio de cinema, ou recorre aos livros para lhes tomar graciosamente as palavras. Não
infâme, mas
une femme, Karina há-de rodopiar, cantar, palrar, emudecer, endiabrar até à piscadela de olhos final – um dos tão eloquentes olhares para a câmara dos seus oito filmes com Godard: entre 1960 e 1967, sete longas-metragens (
Le petit soldat,
Une Femme est une femme,
Vivre sa vie,
Bande à part,
Alphaville,
Pierrot le fou,
Made in U.S.A.) e a curta filmada como segmento de um filme colectivo, um costume da altura (
Anticipation, ou: L’Amour en l’an 2000, última parte de
Le plus vieux métier du monde). Não foram os únicos filmes nem de um nem de outro nessa época, sendo tão verdade como isso que o núcleo das obras em dueto realizador-actriz é um capítulo decisivo nas filmografias de ambos, na novidade da vaga, no rasto dela. Ou seja, essencial na História do cinema moderno.
Cabelo apanhado, gabardine clarinha, saia escura pelos joelhos, sapatos quase rasos que ela é alta, blusa e meias vermelhas, como o chapéu-de-chuva que leva debaixo do braço enquanto atravessa as ruas do bairro de Paris dos cafés, das livrarias, do bar de striptease e das águas furtadas desse filme. Foi a primeira imagem parisiense de Karina que se viu nos ecrãs de cinema, porque
Une Femme est une femme estreou antes dos filminhos com Éric Rohmer e Agnès Varda (
Présentation ou Charlotte et son steak, uma presença sonora;
Les fiancés du pont Mac Donald ou (Méfiez-vous de lunettes noires), num par burlesco-romântico-cinéfilo com Godard, que havia de ganhar vida autónoma permanecendo o filme dentro do filme de
Cléo de 5 à 7, 1961). Estreou antes de
Le petit soldat (1960), uma história de Genebra cujo teor político atraiu a censura em anos de Guerra na Argélia retardando a visibilidade. Num comentário registado em disco a propósito do filme, Godard apresenta-a: “Dois olhos azuis: Giraudoux. Um chapéu-de-chuva vermelho: Aragon. Angéla
la voilà.”
Uma Rapariga, uma pistola e uma canção
Uma dinamarquesa em Paris. Quando
Une femme est une femme foi apresentado em Berlim, o júri premiou-lhe a originalidade, a juventude, a audácia, a impertinência com que sacudia as regras clássicas da comédia filmada, distinguindo Karina pela “revelação de uma personalidade promissora que detém qualidades raras numa actriz estreante”. A estreia absoluta no cinema dera-se uns dois anos antes, nos 11 minutos de
Pigen og skoene ou “
A Rapariga dos Sapatos,” de Ib Schmedes, por sua vez premiado em Cannes. Por essa altura, a rapariga nascida em Copenhaga em 1940, criada nos primeiros anos de vida pelos avós maternos num país sob ocupação alemã em anos de guerra, respondia pelo nome de Hanna Karin Blarke Bayer.
Independente de espírito desde muito nova (começou a trabalhar aos 14 anos), ouvia música e ia ao cinema. Queria ser actriz desde que se lembra. No retrato filmado por Dennis Berry em que desfia as suas memórias numa sala de cinema do Quartier Latin,
Anna Karina Souviens-Toi (2017), fica a saber-se do muito que gostou de Louis Armstrong, de como descobriu Chaplin, do fascínio por Judy Garland. Da atracção pela comédia musical, trata já
Une femme est une femme. Godard dá-lhe a deixa, dá-a a Angéla: “Queria estar numa comédia musical ao lado de Cyd Charisse e Gene Kelly.”
[1] Centrando-se este texto no cinema, registe-se que, no teatro, Anna Karina se distinguiu pelas suas interpretações de
La Religieuse, de Denis Diderot, encenada em 1963 por Jacques Rivette;
Toi et tes nuages, de Éric Westphal, encenada em 1971 por Roland Monod;
Après la répétition, de Ingmar Bergman, encenada em 1997 por Louis-Do de Lencquesaing. Os seus álbuns mais conhecidos são o registo da banda sonora de
Anna, com canções de Serge Gainsbourg (1967) e
Une histoire d’amour (1999), tendo editado uma colectânea das canções que interpretou em filmes,
Chansons de films (2005). Foi argumentista dos dois filmes que realizou (
Vivre ensemble, 1973;
Victoria, 2007) e co-argumentista de
Last Song (Dennis Berry, 1987). Publicou
Golden City (1983),
On n’achète pas le soleil (1988),
Jusqu’au bout du hazard (1998). Escreveu e narrou dois contos musicais inspirados em Hans Christian Andersen:
Le vilan petit canard (2010) e
La petite sirène (2013).