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Assunto: Programação
Data: 02/05/2019
Anna Karina la voilà
Anna Karina la voilà
É possível que o nome traga imediatamente à lembrança os olhos magnéticos, o sorriso franco, uma dúzia de filmes – e que dúzia de filmes –, a efervescência dos anos 60 da Nouvelle Vague francesa, os epítetos de ícone, musa, estrela. Porque tudo isso é justo, mas também redutor e porque a resplandecência tende a ofuscar, nota-se menos depressa a intensidade do percurso, o risco, a variação. Actriz, Anna Karina tem uma filmografia de mais de 60 títulos com início dinamarquês, epicentro francês, amplitude internacional, e um relevante trabalho no teatro. A capacidade de manter a iniludível imagem e de compor personagens muito diferentes em muito diversos registos. Realizadora, assinou dois filmes. Cantora, tem discografia editada nas rotações do vinil e em dados digitais. Escritora, tem créditos como argumentista, romances publicados[1].
 
“Luz! câmara! acção!...” Na traquina exclamação off de Anna Karina, aliás, Angéla, o arranque da comédia musical sentimental em Technicolor e CinemaScope que é o seu segundo filme com Jean-Luc Godard larga todos os lugares comuns. Evidentemente pegando neles. Une femme est une femme (1961). Estamos no cinema (em letras maiúsculas e coloridas) quando o genérico apresenta os nomes de Brialy, Karina, Belmondo em letras (maiúsculas e coloridas) que se sobrepõem à imagem nos planos de cada um deles. É nesse momento que se ouvem as três palavras de comando do elemento feminino do trio, em inglês, como num filme de Hollywood.
 
Por exemplo, de Lubitsch, nome que já então surgiu (em letras maiúsculas e coloridas), até porque o que se segue retoma termos do filme americano dos anos 30 em que Miriam Hopkins desaustina Frederic March e Gary Cooper e lhes diz como se hão-de arranjar os três, Design for Living. Não há um Godard mais esfuziante. Quando sente tristeza, Angéla oferece-se um interlúdio de cinema, ou recorre aos livros para lhes tomar graciosamente as palavras. Não infâme, mas une femme, Karina há-de rodopiar, cantar, palrar, emudecer, endiabrar até à piscadela de olhos final – um dos tão eloquentes olhares para a câmara dos seus oito filmes com Godard: entre 1960 e 1967, sete longas-metragens (Le petit soldat, Une Femme est une femme, Vivre sa vie, Bande à part, Alphaville, Pierrot le fou, Made in U.S.A.) e a curta filmada como segmento de um filme colectivo, um costume da altura (Anticipation, ou: L’Amour en l’an 2000, última parte de Le plus vieux métier du monde). Não foram os únicos filmes nem de um nem de outro nessa época, sendo tão verdade como isso que o núcleo das obras em dueto realizador-actriz é um capítulo decisivo nas filmografias de ambos, na novidade da vaga, no rasto dela. Ou seja, essencial na História do cinema moderno.
 
Cabelo apanhado, gabardine clarinha, saia escura pelos joelhos, sapatos quase rasos que ela é alta, blusa e meias vermelhas, como o chapéu-de-chuva que leva debaixo do braço enquanto atravessa as ruas do bairro de Paris dos cafés, das livrarias, do bar de striptease e das águas furtadas desse filme. Foi a primeira imagem parisiense de Karina que se viu nos ecrãs de cinema, porque Une Femme est une femme estreou antes dos filminhos com Éric Rohmer e Agnès Varda (Présentation ou Charlotte et son steak, uma presença sonora; Les fiancés du pont Mac Donald ou (Méfiez-vous de lunettes noires), num par burlesco-romântico-cinéfilo com Godard, que havia de ganhar vida autónoma permanecendo o filme dentro do filme de Cléo de 5 à 7, 1961). Estreou antes de Le petit soldat (1960), uma história de Genebra cujo teor político atraiu a censura em anos de Guerra na Argélia retardando a visibilidade. Num comentário registado em disco a propósito do filme, Godard apresenta-a: “Dois olhos azuis: Giraudoux. Um chapéu-de-chuva vermelho: Aragon. Angéla la voilà.”
 
Uma Rapariga, uma pistola e uma canção
Uma dinamarquesa em Paris. Quando Une femme est une femme foi apresentado em Berlim, o júri premiou-lhe a originalidade, a juventude, a audácia, a impertinência com que sacudia as regras clássicas da comédia filmada, distinguindo Karina pela “revelação de uma personalidade promissora que detém qualidades raras numa actriz estreante”. A estreia absoluta no cinema dera-se uns dois anos antes, nos 11 minutos de Pigen og skoene ou “A Rapariga dos Sapatos,” de Ib Schmedes, por sua vez premiado em Cannes. Por essa altura, a rapariga nascida em Copenhaga em 1940, criada nos primeiros anos de vida pelos avós maternos num país sob ocupação alemã em anos de guerra, respondia pelo nome de Hanna Karin Blarke Bayer.
 
Independente de espírito desde muito nova (começou a trabalhar aos 14 anos), ouvia música e ia ao cinema. Queria ser actriz desde que se lembra. No retrato filmado por Dennis Berry em que desfia as suas memórias numa sala de cinema do Quartier Latin, Anna Karina Souviens-Toi (2017), fica a saber-se do muito que gostou de Louis Armstrong, de como descobriu Chaplin, do fascínio por Judy Garland. Da atracção pela comédia musical, trata já Une femme est une femme. Godard dá-lhe a deixa, dá-a a Angéla: “Queria estar numa comédia musical ao lado de Cyd Charisse e Gene Kelly.”
 
[1] Centrando-se este texto no cinema, registe-se que, no teatro, Anna Karina se distinguiu pelas suas interpretações de La Religieuse, de Denis Diderot, encenada em 1963 por Jacques Rivette; Toi et tes nuages, de Éric Westphal, encenada em 1971 por Roland Monod; Après la répétition, de Ingmar Bergman, encenada em 1997 por Louis-Do de Lencquesaing. Os seus álbuns mais conhecidos são o registo da banda sonora de Anna, com canções de Serge Gainsbourg (1967) e Une histoire d’amour (1999), tendo editado uma colectânea das canções que interpretou em filmes, Chansons de films (2005). Foi argumentista dos dois filmes que realizou (Vivre ensemble, 1973; Victoria, 2007) e co-argumentista de Last Song (Dennis Berry, 1987). Publicou Golden City (1983), On n’achète pas le soleil (1988), Jusqu’au bout du hazard (1998). Escreveu e narrou dois contos musicais inspirados em Hans Christian Andersen: Le vilan petit canard (2010) e La petite sirène (2013).
Foi em Paris, onde chegou em fuga intempestiva em 1958, que Coco Chanel se cruzou com ela, já modelo fotográfica, e lhe deu o nome profissional, Anna Karina. Assim a conheceu Godard que, tendo-a visto num filme publicitário, dentro de uma banheira de espuma, tentou levá-la para um pequeno papel em À bout de souffle. A coisa não se deu, dar-se-ia em Le petit soldat, cuja rodagem acabaram como um casal. Karina costuma dizer que Jean-Luc foi o seu Pigmalião. Habituámo-nos a ver a sua história na sincronia/assincronia da vida e do cinema, cujos filmes permitem uma crónica conjugal ou, talvez, a crónica da travessia de Karina, em personagens muito diferentes de filme para filme. Faz parte deles serem um registo daquela mulher, actriz, a representar em funda cumplicidade com a câmara.

Mais leve e mais grave, exuberante, contida, a preto e branco ou em cores garridas, alinhada com o ritmo, a coreografia de movimentos e composição, os diálogos, a energia de cada um dos filmes em que foi – os nomes são importantes – Veronica Dreyer, a dinamarquesa que lembrava uma peça de Jean Giraudoux, “boca do tipo Leslie Caron”, “olhos cinzento Velasquez” numa incursão política e exacerbação romântica a 24 imagens por segundo; a mulher Angéla; Nana, existencial, nos doze quadros do mais comovente dos seus retratos por JLG que a filma em lágrimas, afundada no escuro de uma sala diante da projecção dos grandes planos de Renée Falconetti em La Passion de Jeanne d’Arc por Dreyer; Odile no “western de subúrbio” em que se corre pelo museu do Louvre numa visita de poucos minutos; Natacha von Braun, contagiada pela poesia na distopia de Alphaville; a aventureira Marianne Renoir, que mata e morre ao lado de Pierrot, le fou, aliás Ferdinand, ou seja, Belmondo, dando-nos a ver a emoção de que Samuel Fuller fala explicando o que é o cinema; Paula Nelson, “num filme de Walt Disney com sangue” e alguma tristeza; Natascha / Eleanor Romeovich, que na última imagem dos dois Godard filma de perto, acabando num grande plano frontal: Karina a olhar para a câmara, a palavra “fim” a surgir à esquerda, um corte rápido em deslize para o negro.
 
JLG ofereceu-lhe muitas canções, passos de dança, momentos jukebox. Michel Deville antecipara-se na dança, quando a dirigiu em Ce soir ou jamais (1961, filmado antes de Une femme est une femme), que lhe deu uma popularidade extraordinária. Anna (Pierre Koralnik, 1967) marca outro encontro decisivo, com Serge Gainsbourg que escreveu 14 canções para ela, entre as quais Sous le soleil exactement e Roller Girl. O que é que ela tem de especial, perguntaram-lhe – “Recursos vocais, é muito raro. Sentido de humor, é uma coisa muito rara. E sensualidade.” Rodado a cores para a televisão, a comédia musical pop e gráfica toma-lhe o nome e segue-a pelas ruas de Paris e na praia de Deauville. Anna é uma ode festiva a Karina, cuja imagem fotográfica perde de amores Jean-Claude Brialy, como Fred Astaire se encanta por Audrey Hepburn em Funny Face (Stanley Donen, 1957). Também Jacques Rivette a filma a cantar, quando volta a dirigi-la depois de La Religieuse (1966), que deu brado, foi interdito, e é porventura o filme em que Karina/Suzanne Simonin “prova” ser a grande actriz que é a quem dúvidas tivesse: em Haut Bas Fragile (1995), Anna é a Sarah que canta Mon amant perdu e La fille à l’envers.
 
La Religieuse é um verdadeiro caso, e um caso sério na interpretação da actriz. No curso do seu trajecto no cinema europeu e americano, Karina foi dirigida por Valerio Zurlini no sacrifício de Elenitza em La Soldatesse (1965), por Visconti que lhe deu o papel de Maria Cardona em Lo Straniero (1967), por Cukor que a viu Melissa em Justine (1969), no mesmo ano em que foi Elizabeth ou Margot (Michael Kohlhaas, der Rebel, de Volker Schlöndorff; Laughter in the Dark, de Tony Richardson), por André Delvaux (Rendez-vous à Bray, 1971; L’oeuvre au noir, 1988), por Fassbinder no enigmático Chinesisches Roulette (1976) ou por Raoul Ruiz como mãe de Jim/Melvil Poupaud em Treasure Island (1985) a partir de Stevenson, parcialmente filmado em Portugal.
 
Viver a sua vida, o título do filme de Godard aplica-se. Quando decidiu estrear-se como realizadora num passo porventura improvável em 1973, Karina escolheu um título em trocadilho e compô-lo em seis quadros de um realismo pontuado pelo burlesco e a melancolia. Em Vivre ensemble, acumula os papeis de produtora, argumentista e actriz, contracenando com Michel Lancelot num retrato conjugal imbuído do espírito do tempo nos espaços parisiense e nova-iorquino de Saint-Germain-des-Prés e do Quartier Latin (que são dela), do Harlem e de Greenwich Village (aproveitando a rodagem de “um filme alimentar” nos Estados Unidos). Concebeu-o como um filme exclusivamente baseado nos sentimentos, porque, dizia na altura, só acredita nos movimentos de alma. Filmou-o em verdadeira independência, com um orçamento reduzido, em quatro semanas e película 16 mm. Levou-o a Cannes, recebeu o elogio de François Truffaut: “o seu filme não tem nada de vago ou de decorativo. O seu cérebro é claro. Sabe o que quer e atinge-o no ecrã.”
 
 
Maria João Madeira
texto publicado no catálogo do IndieLisboa’19