CICLO
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade


Fernando Matos Silva é a última das figuras seminais do Novo Cinema português a quem a Cinemateca Portuguesa ainda não tinha dedicado uma retrospetiva de autor. É também um dos cineastas essenciais para compreender o “cinema de Abril”. Que a organização desta retrospetiva, há muito adiada, coincida com o momento em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril é um feliz acaso que só vem reafirmar a atualidade da obra do realizador. 
Fernando Matos Silva era técnico de mecanografia na CUF e, porque gostava de cinema desde pequeno, inscreveu-se com o irmão (também ele realizador, João Matos Silva) no Curso de Cinema Experimental lançado por António da Cunha Telles em 1961. Esta foi a sua porta de entrada para o mundo do cinema. O produtor convidou-o a juntar-se às Produções Cunha Telles como assistente de realização de Paulo Rocha, em OS VERDES ANOS, de Fernando Lopes, em BELARMINO, e de Carlos Vilardebó, em AS ILHAS ENCANTADAS. Fernando Matos Silva tornou-se assim uma figura fundamental para compreender de que modo se deram os primeiros passos do Novo Cinema português.
Fernando Matos Silva estreia-se na longa-metragem com O MAL-AMADO, produzido na primeira leva de filmes do CPC, e filme que ficaria para a História do cinema português como o último a ser proibido pela Censura (em fevereiro de 1974) e o primeiro a estrear após o 25 de Abril (estreou a 3 de maio de 1974). Em pleno PREC, Fernando Matos Silva funda a cooperativa Cinequipa através da qual, e de forma coletiva, irá produzir e realizar dezenas de importantes documentários de intervenção: filmes sobre a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, sobre as ocupações de fábricas, a Reforma Agrária, as greves, o 28 de Setembro, as condições de vida, a liberdade de expressão e manifestação, o teatro revolucionário…
A partir de 1976, a obra de Fernando Matos Silva abre-se a uma reflexão sobre a Revolução, na ressaca do 25 de Novembro. Nesse momento, ainda a quente, assina alguns dos filmes mais lúcidos sobre a situação política, económica e social do Portugal de então, títulos como o panfleto CONTRA AS MULTINACIONAIS e a ficção-ensaística O MEU NOME É…. Paralelamente, inicia a realização de um conjunto de filmes de pendor histórico onde as questões do passado nacional e da memória regional são reenquadradas segundo os parâmetros do novo regime democrático. Assim, surge o documentário ARGOZELO – À PROCURA DOS RESTOS DAS COMUNIDADES JUDAICAS, onde inicia um processo de escavação etno-arqueológica sobre os vestígios judaicos da região de Trás-os-Montes, em particular de Miranda do Douro, zona essa que será o cenário da ficção histórica GUERRA DO MIRANDUM, filme de época sobre a curta ocupação do território português durante a Guerra dos Sete Anos. Nestes dois filmes, o interesse historiográfico alia-se a uma revisitação da História enquanto metáfora do presente, pelo que tanto ARGOZELO é um documentário de denúncia sobre as condições de vida e de trabalho dos mineiros, como GUERRA DO MIRANDUM é uma alegoria sobre a força do poder popular.
Mas talvez não haja outro título mais marcante na filmografia de Fernando Matos Silva – especialmente aos dias de hoje – do que ACTO DOS FEITOS DA GUINÉ, revisitação de 500 anos do passado colonial português feito de exploração dos recursos, de escravatura e de guerra. Com este filme, o realizador constrói um extraordinário travelling trans-histórico que percorre uma série de figuras caricaturais do colonialismo “luso-tropicalista”, desmontando, ponto por ponto, o argumento colonial edificado ao longo de séculos e cimentado durante o Estado Novo. Dedicado a Amílcar Cabral, este é um filme que, além de fazer um percurso crítico sobre a história portuguesa, produz igualmente um arrasador levantamento de materiais de arquivo do conflito armado entre o exército português (no qual Matos Silva lutou) e o PAIGC, incluindo também imagens da declaração da independência da Guiné-Bissau e do país já em independência.
A partir do início de 1980, o realizador deixa de conseguir financiamento para os seus projetos cinematográficos e regressa ao pequeno ecrã. Aí assina alguns programas fundamentais da televisão pública dessa década, nomeadamente PARE, ESCUTE E OLHE, ENERGIA, O OUTRO LADO DA CRISE, O ROMANCEIRO, PROGRAMA DAS FESTAS e, especificamente sobre cinema, CINEMAGAZINE – do qual se apresenta uma pequeníssima seleção de quatro episódios (a série conta com mais de 300 títulos).
Passarão mais de doze anos até que Fernando Matos Silva consiga regressar ao grande ecrã, e fá-lo com um belíssimo filme-resumo: AO SUL. Injustamente incompreendido, é hoje o filme que dá sentido e união à obra dispersa de Matos Silva. É o filme que tudo convoca, tanto o que está para trás (o Novo Cinema, o cinema militante, os traumas da guerra colonial) como o que estaria para a frente (a entrada na CEE, a desertificação do Alentejo, a emigração das gerações mais qualificadas).
Chegados ao século XXI, e na viragem do milénio, o realizador descobre-se enquanto documentarista vídeo e realiza LUZ SUBMERSA, sobre o drama do alagamento da Aldeia da Luz na sequência da construção da Barragem do Alqueva. Subitamente a abordagem de Fernando Matos Silva aproxima-se da novíssima geração de documentaristas que despontava nesse final da década de 1990 – ele que era, já então, um decano cineasta do Novo Cinema. Esta disponibilidade face à técnica e às possibilidades narrativas que esta potencia revelam de forma clara o posicionamento do realizador e o modo como, ao longo das décadas, sempre procurou reinventar-se.
Mais de 60 anos depois da sua estreia enquanto realizador, estamos perante uma obra que, segundo os trâmites canónicos com que se tem escrito a História do cinema, é pequena (já que assinou “apenas” cinco longas-metragens de ficção para cinema), porém, se se integrar na sua filmografia toda a produção documental e híbrida, de curta-metragem, de publicidade, e – especialmente – para televisão, descobre-se uma obra extensíssima onde se contam várias centenas de títulos. Mas mais do que uma questão de extensão, importa, isso sim, o registo do país, que só se compreende retrospetivamente e de forma panorâmica. Eis o momento certo para o fazer através deste Ciclo e do catálogo que o acompanha. Descobrir uma filmografia para conhecer mais de meio século de um país em transformação. Fernando Matos Silva irá, para além de uma conversa quase no final do programa, estar presente em muitas das sessões dos seus filmes.
 
 
04/01/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade

Marionettes, INC. | O Mal-Amado
duração total da projeção 108 min | M/12
 
04/01/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade

Hoje Estreia | Hello Jim! | Belarmino
duração total da projeção: 93 min | M/12
05/01/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade

Saltimbancos
de Manuel Guimarães
Portugal, 1951 - 91 min | M/12
05/01/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade

Tejo – Rota do Progresso | Tejo – Na Rota do Progresso | Estoril – Costa do Sol | Por Um Fio… | Contra as Multinacionais
duração total da projeção: 115 min | M/12
06/01/2024, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade

Marionettes, Inc. | Fahrenheit 451
duração total da projeção: 121 min | M/12
04/01/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade
Marionettes, INC. | O Mal-Amado
duração total da projeção 108 min | M/12
Com a presença de Fernando Matos Silva
MARIONETTES, INC.
de Fernando Matos Silva
com Ricardo Santos, Eva Martyn, Jorge Guerra, Christopher Galloway
Reino Unido, 1967 – 9 min

O MAL-AMADO
de Fernando Matos Silva
com João Mota, Maria do Céu Guerra, Zita Duarte, Fernando Gusmão, Helena Félix
Portugal, 1974 – 99 min

O MAL-AMADO ficará para sempre na História do cinema português como a última longa-metragem a ser censurada pelo Estado Novo e a primeiro a ser exibida depois do 25 de Abril (estreou a 3 de maio). Um filme premonitório onde se antecipa a revolução e que foi classificado pela Censura como “iconoclasta” e “destruidor da família”. O MAL-AMADO retrata o desencanto da pequena burguesia (assombrada pela guerra colonial) e as suas oscilações ideológicas, na figura de um jovem de Campo de Ourique que procura romper com a sua classe. A abrir a sessão exibe-se MARIONETTES, INC., o filme de escola que Fernando Matos Silva fez na London School of Film Technique. Esta é uma adaptação do conto homónimo do escritor de ficção-científica Ray Bradbury, realizado ao mesmo tempo que François Truffaut, também em Londres, adaptava o famoso romance do mesmo autor, Fahrenheit 451. MARIONETTES, INC. é apresentado pela primeira vez na Cinemateca.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de MARIONETTES INC. aqui

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de O MAL-AMADO aqui

 
04/01/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade
Hoje Estreia | Hello Jim! | Belarmino
duração total da projeção: 93 min | M/12
Carta Branca a Fernando Matos Silva

Com a presença de Fernando Matos Silva
HOJE ESTREIA
de Fernando Lopes
Portugal, 1967 – 8 min

HELLO JIM!
de Augusto Cabrita
Portugal, 1970 – 13 min

BELARMINO
de Fernando Lopes
Portugal, 1964 – 72 min

BELARMINO é um dos filmes chave do Novo Cinema Português. Fernando Lopes, com a câmara de Augusto Cabrita e a assistência de realização de Fernando Matos Silva, capta uma Lisboa noturna e marginal como até então ninguém a tinha filmado. Utilizando métodos semelhantes aos do cinema direto, o filme segue Belarmino Fragoso, um pugilista, e através dele mostra os sinais de uma cidade (e de um país) à beira do sufoco. Antes exibem-se duas curtas-metragens: HOJE ESTREIA que acompanha a reconstrução do Cinema Condes, depois do incêndio de 1967; e o primeiro filme realizado a solo por Augusto Cabrita, HELLO JIM!, que surgiu com o intuito de promover a indústria turística, uma encomenda que o realizador desmonta a partir de dentro. HELLO JIM! é exibido em cópia digital produzida no âmbito do projeto FILMar, com o apoio do programa EEAGrants 2020-2024.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de HOJE ESTREIA e HELLO JIM! aqui

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de BELARMINO aqui
 
05/01/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade
Saltimbancos
de Manuel Guimarães
com Maria Olguim, Helga Liné, Artur Semedo
Portugal, 1951 - 91 min | M/12
Carta Branca a Fernando Matos Silva
Primeira longa-metragem de Manuel Guimarães, SALTIMBANCOS marcou a diferença no cinema português do começo da década de cinquenta relativamente às comédias “à portuguesa” que então se faziam. Depois de ser assistente de Manoel de Oliveira em ANIKI BÓBÓ, Guimarães lança-se na realização, aproximando-se dos modelos do neorrealismo italiano, numa história adaptada do romance O Circo, de Leão Penedo, sobre a vida e a morte de uma companhia de saltimbancos. Manuel Guimarães foi um dos cineastas mais maltratados pelo Estado Novo e encontraria, anos depois, acolhimento junto da geração do Novo Cinema, regressando à realização com O CRIME DA ALDEIA VELHA, produzido por António da Cunha Telles.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
05/01/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade
Tejo – Rota do Progresso | Tejo – Na Rota do Progresso | Estoril – Costa do Sol | Por Um Fio… | Contra as Multinacionais
duração total da projeção: 115 min | M/12
Com a presença de Fernando Matos Silva
TEJO – ROTA DO PROGRESSO
de Fernando Lopes
Portugal, 1967 – 11 min

TEJO – NA ROTA DO PROGRESSO
de Fernando Matos Silva
Portugal, 1967 – 12 min

ESTORIL – COSTA DO SOL
de Fernando Matos Silva
Portugal, 1972 – 12 min

POR UM FIO…
de Fernando Matos Silva
Portugal, 1968 – 13 min

CONTRA AS MULTINACIONAIS
de Cinequipa [Fernando Matos Silva]
Portugal, 1977 – 67 minutos

Ao longo dos anos 1960 a subsistência da maioria dos realizadores portugueses ora se fazia pela televisão, ora se fazia pelos filmes institucionais e de publicidade. Através da Média Filmes, empresa fundada por Fernando Lopes, Alfredo Tropa e Manuel Figueira, à qual se juntaram os irmãos Matos Silva e Alberto Seixas Santos, fizeram-se vários “filmes alimentícios” que serviram também para treinar a mão na realização. Foi aí que Fernando Matos Silva realizou os seus primeiros filmes. TEJO – NA ROTA DO PROGRESSO é um caso curioso, uma vez que a Lisnave encomendou um filme para ser exibido ora em 35mm, ora em 16mm. Dentro da Média decidiram que Lopes realizaria a versão em 35mm e Matos Silva a outra. Embora do mesmo ano e com aproximadamente a mesma duração, são dois filmes substancialmente diferentes. POR UM FIO… centra-se no trabalho da fábrica de cabos elétricos de Diogo d’Ávila em Alfragide e conta com uma lindíssima direção de fotografia de Manuel Costa e Silva e um comentário irónico escrito por Alexandre O’Neill, assinado sob o pseudónimo A. de Jazente. ESTORIL – COSTA DO SOL, por sua vez, é uma produção de Francisco de Castro para promoção do turismo nas praias ao redor de Lisboa. A sessão é seguida pela exibição de CONTRA AS MULTINACIONAIS, um documentário político realizado com o intuito de enquadrar os problemas da Applied Magnetics (fábrica americana de componentes eletrónicos que ficaria sem gestão poucos meses depois do 25 de Abril) numa realidade alargada e num discurso assumidamente anticapitalista, traduzido por uma omnipresente e panfletária voz off. TEJO – NA ROTA DO PROGRESSO (de Fernando Matos Silva) é apresentado pela primeira vez na Cinemateca e será exibido em cópia digital produzida no âmbito do projeto FILMar, com o apoio do programa EEAGrants 2020-2024.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
06/01/2024, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Fernando Matos Silva: O Cinema a Fazer a Realidade
Marionettes, Inc. | Fahrenheit 451
duração total da projeção: 121 min | M/12
Carta Branca a Fernando Matos Silva
MARIONETTES, INC.
de Fernando Matos Silva
com Ricardo Santos, Eva Martyn, Jorge Guerra
Reino Unido, 1967 – 9 min

FAHRENHEIT 451
Grau de Destruição
de François Truffaut
com Julie Christie, Oskar Werner, Cyril Cusack
Reino Unido, 1966 – 112 min / legendado em português | M/12

Único filme de Truffaut falado em inglês e por isso mesmo o objeto mais isolado no interior da sua obra. Num inquietante futuro próximo, dominado pelo audiovisual (as paredes são gigantescos ecrãs de televisão), a leitura tornou-se um ato subversivo e os livros são condenados ao fogo. Fahrenheit 451 é a temperatura a que arde um livro e o protagonista desta adaptação de um romance de Ray Bradbury faz parte da brigada de destruição. Mas uma mulher convence-o a desobedecer à lei e ele torna-se um leitor. A abrir a sessão exibe-se MARIONETTES, INC., o filme de escola que Fernando Matos Silva fez na London School of Film Technique. Esta é também uma adaptação de Ray Bradbury, realizada ao mesmo tempo que François Truffaut filmava FAHRENHEIT 451.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de MARIONETTES, INC. aqui

consulte a FOLHA DA CINEMATECA de FAHRENHEIT 451 aqui