CICLO
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut


A habitual colaboração entre a Cinemateca e o IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema, em 2023 na sua 20ª edição, começa nos três últimos dias do mês e continuará na primeira semana de maio (o programa da Cinemateca acompanha as datas do festival, que decorre em várias salas em Lisboa entre 27 de abril e 7 de maio). Este ano a colaboração assenta em três eixos: a organização conjunta de uma retrospetiva dedicada à obra de Jan Švankmajer; na apresentação de filmes da secção Director’s Cut (em rima com sessões “em contexto”, refletindo sobre a História do cinema, a sua memória e o seu património), e num foco sobre a Escola Friedl Kubelka (a apresentar em maio) sobre os filmes produzidos nesta singular escola de cinema exclusivamente dedicada à realização em suportes analógicos (película Super 8, 16mm e 35mm).
 
Jan Švankmajer, o Surrealista
“Costumo dizer que a palavra ‘animação’ vem de ‘animismo’. Não vem de ‘animar’, (…) mas de ‘animismo’, de ‘dar vida’” (in Athanor: The Alchemical Furnace/“Athanor: A Fornalha Alquímica”). As origens de Jan Švankmajer (nascido em 1934, na Checoslováquia) permitem que se entenda melhor parte do seu fascínio, quase pigmaliónico, por “dar vida” a uma multiplicidade de elementos: fundou o Teatro de Máscaras após obter formação em marionetismo na Academia de Artes Performáticas de Praga, arte que quis dominar desde que, aos oito anos, recebeu dos seus pais como prenda de Natal um pequeno teatro de marionetas. Trabalhou, depois, para um verdadeiro teatro, o Laterna Magika, em Praga, antes de se iniciar na realização de curtas de animação, em 1964, com um filme que converte atores de carne e osso em marionetas vivas: Poslední trik Pana Schwarcewalldea a Pana Edgara/“O Último Truque”. A passagem do trabalho sobre a “animação animista” das marionetas para o da direção de atores em palco pode tornar claro o lugar intermédio que parece ocupar esta arte da animação, a qual, com o passar dos anos, tem vindo a reunir inúmeros seguidores sobretudo no mundo anglófono: dos Irmãos Quay, no Reino Unido, a Tim Burton e Terry Gilliam, nos Estados Unidos.
Influenciando uma vasta família de criadores, que se situam algures entre o cinema de imagem real e o de animação tout court, não há como fugir também aos nomes que o moldaram. Para o compatriota Milos Forman, a equação é esta: “Disney + Buñuel = Švankmajer”. Com efeito, o princípio de não-distinção sobre “o que animar”, esteja o “objeto” deste trabalho vivo ou morto, faz escola na sua prática artística, não escondendo o orgulho sentido por um conjunto de referências surrealistas (André Breton, Salvador Dalí, Max Ernst e Hans Bellmer) bem assimiladas pela arte deste membro do Grupo Surrealista de Praga desde 1970: “O Surrealismo é, de facto, uma grande aventura coletiva”, disse em entrevista concedida à artista Nandita Kumar. Švankmajer foi beber ao universo de escritores como Lewis Carroll, Marquês de Sade e Edgar Allan Poe (autores adaptados por si) ou ao de um pintor como o italiano Giuseppe Arcimboldo e ao da compatriota, “tão-só” o grande amor da sua vida, Eva Švankmajerová. Falecida em 2005, no ano de LUNACY, Švankmajerová, célebre artista checa, colaborou com Švankmajer das mais diversas formas, nomeadamente enquanto assistente de produção e participando na conceção gráfica do material de divulgação, tal como os deslumbrantes cartazes que revelam não somente o produto de uma longa colaboração profissional mantida entre marido e mulher como evidenciam uma das mais importantes, e nada negligenciáveis, raízes do universo deste realizador. E de que fala ele? De sonhos, medos, desejos e ainda de uma atração excrementícia e quase necrófila pelo lado B da vida.
Se, como em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, há um aspecto maravilhoso no seu “teatro” de situações, também nele damos de caras com uma coleção de bizarrias. Tudo o que “se anima” costuma suscitar um sentimento de maravilhamento e, ao mesmo tempo, uma reação de horror. O lado negro desta mundividência não raras vezes foi atiçado por razões políticas: alguns dos seus filmes mais inquietados e inquietantes foram realizados – e mantidos “na prateleira” ou severamente censurados pelo regime – durante os anos de chumbo da dita “normalização” comunista dos anos 70: é quase sufocante o clima de paranoia, bem como toda a apatia ou impotência reinantes nalgumas das suas curtas-metragens, tais como Byt/“O Apartamento” e Tichý týden v domě/“Uma Semana Tranquila em Casa”, e aquilo que parece ser intrínseco ao Homem é representado muitas vezes como uma atividade dolorosa, nomeadamente as ações, à partida, pouco problemáticas de “comer” (deguste-se, com cautela, a obra-prima Jídlo/“Comida”) e de “dialogar” (encare-se de frente aquela que é, muito provavelmente, a sua curta-metragem mais celebrada mas não menos controversa no seu país natal: MOŽNOSTI DIALOGU/“Dimensões do Diálogo”). O próprio “nascer” é transformado em dificuldade poética que maravilha tanto quanto horroriza, e, nesse aspecto, um filme como Tma-světlo-tma/“Escuridão, Luz, Escuridão” sintetiza, de maneira assaz violenta, esta visão sobre a humanidade como uma espécie de grande porcaria em formação. Os títulos mais flagrantemente críticos do comunismo foram, por vezes, realizados entre a República Checa e o Reino Unido. Neste particular, vejam-se as curtas Jídlo/“Fome” e Konec stalinismu v Cechách/“A Morte de Estaline na Boémia”, obras que, seguindo a boa prática surrealista, não se cingem a um momento histórico muito bem identificado, mas que não deixam de ser respostas diretas à conjuntura presente ou passada e daí terem sido algumas delas alvo de censura quando ainda estavam sob a forma de projeto.
O cinema de Švankmajer desdobra-se em temas, em materiais (objetos como pessoas ou animais, pessoas ou animais como objetos) e em tecnologias de animação (privilegiando a “ação real” e enjeitando a animação por computador por lhe faltar a necessária dimensão orgânica ou táctil), mas o seu apelo final é eminentemente universal e visa a humaníssima mediocridade de seres consumidos por uma lista interminável de taras e paranoias. As suas longas-metragens, desde o internacionalmente reconhecido NECO Z ALENKY/“Alice” até ao recentíssimo KUNSTKAMERA, passando pelo buñueliano SPIKLENCI SLASTI/”Conspiradores do Prazer” e o delírio mélièsiano FAUST/”Fausto”, constituem um compêndio dos horrores – ou dos prazeres mais ou menos sádicos – associados à condição humana. A irrequietude de Jan Švankmajer é tal que o cineasta checo terá anunciado a sua reforma em 2018 com HMYZ, mas já em 2022 surpreendeu os seus seguidores ao lançar KUNSTKAMERA (tendo nessa altura confirmado a sua retirada definitiva do cinema, inclusive de qualquer futura presença em mostras do seu trabalho), mais um filme lidando com as obsessões rematerializadas – todo um gabinete de curiosidades – deste incansável surrealista.
A presente retrospetiva, uma das mais completas de sempre da obra de Švankmajer e certamente a primeira oportunidade em Portugal para um conhecimento mais sistemático desta obra essencial da História do cinema de animação (mas não só), começa em abril na presença do seu produtor de longa data, Jaromír Kallista (os dois fundaram em conjunto o lendário estúdio Athanor), o qual dará uma conferência na Cinemateca sobre a colaboração inseparável mantida entre ambos ao longo de mais de três décadas de cumplicidade artística e de trabalho conjunto.

 
 
28/04/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut

Bögjävlar | Prejudice & Pride – Swedish Film Queer
Duração total da projeção: 124 min
 
28/04/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut

Otesánek
“O Pequeno Otik”
de Jan Švankmajer
República Checa, 2000 - 131 min
29/04/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut

Athanor: The Alchemical Furnace
de Jan Danhel, Adam Olha
República Checa, 2020 - 122 min
29/04/2023, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut

Encontro com Jaromír Kallista
60 min
29/04/2023, 19h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut

Neco z Alenky
“Qualquer Coisa de Alice”
de Jan Švankmajer
Checoslováquia, Suíça, Reino Unido, República Fede, 1988 - 86 min
28/04/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut
Bögjävlar | Prejudice & Pride – Swedish Film Queer
Duração total da projeção: 124 min
legendados eletronicamente em português | M/16
Director’s Cut
BÖGJÄVLAR
“Malditos Queers”
de Olle Holm
Suécia, 1977 – 21 min

PREJUDICE & PRIDE – SWEDISH FILM QUEER
de Eva Beling
Suécia, 2022 – 103 min

Em BÖGJÄVLAR, onze homens homossexuais, que vivem juntos num apartamento no centro de Estocolmo, documentam a sua vida quotidiana, enquanto partilham as suas experiências pessoais e as suas visões sobre a sociedade, o amor e a sexualidade. BÖGJÄVLAR é um testemunho sobre a vivência de pessoas queer na Suécia dos anos 70, mas também da maneira como a homossexualidade, os papéis de género e a homofobia eram encarados naquele período. PREJUDICE & PRIDE – SWEDISH FILM QUEER é uma viagem pela História do cinema sueco através de uma perspetiva queer. Um documentário sobre a presença e a representação de pessoas homossexuais e transgénero nas produções cinematográficas suecas, ao longo dos últimos 100 anos. Desde VIGARNE (1916), de Mautiz Stiller, passando por Bergman e Zetterling, até aos dias de hoje, em que a comunidade LGBTQI+ finalmente obtém o  seu lugar de direito no cinema sueco.

consulte a FOLHA DA CINEMATECA aqui
28/04/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut
Otesánek
“O Pequeno Otik”
de Jan Švankmajer
com Veronika Zilková, Jan Hartl, Jaroslava Kretschmerová
República Checa, 2000 - 131 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Jan Švankmajer, o Surrealista

sessão apresentada por Jaromír Kallista
Adaptação de uma fábula do escritor checo do século XIX Karel Jaromír Erben, trata-se de um dos mais perturbadores filmes do artista, de costela surrealista, Jan Švankmajer. O tema da maternidade é aqui encarado e desmontado pelo imaginário fértil deste idiossincrático realizador: face à impossibilidade de ter um filho, sangue do seu sangue, um casal decide adotar o cepo de uma árvore. No entanto, a dita “criança” de substituição ganha vida e começa a exigir mais, muito mais do que uma criança dita normal. Švankmajer associa a experiência por que passa o casal deste filme à experiência utilizando LSD de que foi cobaia, em 1972, supervisionada pelo exército checo, e que correu terrivelmente mal. Ao The Guardian, referiu haver uma relação com este filme, ”pela forma como os heróis infelizes da história sucumbem ao desejo de ter um filho como podiam ter sucumbido ao uso de drogas. Desse desejo nasce o demónio que os vai destruir”. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

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29/04/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut
Athanor: The Alchemical Furnace
de Jan Danhel, Adam Olha
República Checa, 2020 - 122 min
legendado em inglêws e eletronicamente em português | M/12
Jan Švankmajer, o Surrealista

sessão apresentada por Jaromír Kallista
HMYZ foi anunciado como o derradeiro filme do mestre da animação táctil com imagem real, Jan Švankmajer. O seu montador, Jan Danhel, e respetivo diretor de fotografia, Adam Olha, não quiseram desperdiçar a oportunidade de registar o método de trabalho mas sobretudo entabular um diálogo íntimo e franco com este nome quase lendário da cinematografia checa. O produto deste acompanhamento dos dias agitados de Švankmajer, dividido entre a sua arte escultórica, a sua coleção de fetiches, as exposições, retrospetivas cinematográficas e projetos inacabados, é esta “fornalha alquímica”, onde se cozinham a alta temperatura as ideias e momentos da vida do cineasta, com especial destaque dado ao casamento de longuíssima duração ao lado da pintura surrealista Eva Švankmajerová, falecida em 2005, e a amizade franca com o seu produtor de longa data, Jaromír Kallista. Primeira apresentação na Cinemateca.

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29/04/2023, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut
Encontro com Jaromír Kallista
60 min
conferência em checo, com tradução simultânea em inglês

entrada livre mediante levantamento de bilhete 30 minutos antes do início
Jaromír Kallista, produtor de Jan Švankmajer desde 1988 e até ao seu mais recente filme (KUNTSKAMERA, anunciado como a sua despedida do cinema), fala da sua longa relação de trabalho com o realizador e sobre os bastidores do processo de criação e de produção de uma obra marcadamente autoral na forma e no seu singular universo temático. A moderação será do cineasta Pedro Serrazina e participará ainda a artista plástica Sara Bichão.

 
29/04/2023, 19h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Indielisboa: Jan Švankmajer e Director’s Cut
Neco z Alenky
“Qualquer Coisa de Alice”
de Jan Švankmajer
com Krystyna Kohoutová
Checoslováquia, Suíça, Reino Unido, República Fede, 1988 - 86 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Jan Švankmajer, o Surrealista

sessão apresentada por Jaromír Kallista
Vindo do teatro, entre outros do célebre teatro Laterna Magika, em Praga, Jan Švankmajer começou a realizar filmes em 1964. NECO Z ALENKY é a concretização de um antigo sonho seu: adaptar Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol ao cinema, mas de um modo perfeitamente “amoral”. O filme mistura uma atriz e objetos de animação. Numa entrevista de 1989 à revista Positif, o realizador observava: “O livro pertence à minha mitologia pessoal. Não quis fazer uma interpretação, nem uma ilustração direta e sim uma adaptação que refletisse as experiências da minha infância. Para mim, não se trata de um conto de fadas, mas de um sonho”. A exibir em cópia digital.

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