CICLO
O Cinema da Estónia: Um Ninho ao Vento


O cinema estónio, que no ano de 2022 celebrou as suas 110 primaveras, terá em abril a sua primeira retrospetiva na Cinemateca. Esta viagem iniciática pela singularidade da História do cinema estónio centra-se na produção feita por realizadores e produtores da Estónia durante o período soviético, com particular relevo para as décadas de 1960 a 1980 e integra títulos hoje considerados clássicos dessa cinematografia.
O cinema da Estónia nasceu profundamente enraizado na sua paisagem. O primeiro realizador estónio, Johannes Pääsuke, começou por documentar em fotografias uma parte considerável do território nacional, captando a sua vasta diversidade. A aventura no cinema começou em 1912 com a realização do primeiríssimo filme, de natureza documental, assinado por um estónio, obra considerada perdida ao dia de hoje. Em 1914, Pääsuke assinou a primeira ficção estónia, intitulada Karujaht Pärnumaal/ “Caça ao Urso Em Pärnumaa”. A história deste cinema é também a história de uma nação permanentemente fustigada por guerras e dolorosas ocupações estrangeiras, tendo o seu território passado, durante a Segunda Guerra Mundial, para mãos russas, sendo depois subjugado pelos nazis e, por fim e novamente, integrado como uma das quinze repúblicas soviéticas.
Após o conflito mundial, o cinema estónio foi refundado à medida que a sociedade era reedificada em torno dos valores políticos ditados pela fação vencedora. A educação para um certo “realismo socialista” começa sensivelmente em 1947, com o lançamento de ELU TSITADELLIS/“A Vida na Cidadela”, de Herbert Rappaport, realizador nascido na Áustria, tendo prosseguido a sua carreira, então já internacionalizada, em Leninegrado (atual São Petersburgo) com o intuito de realizar filmes antinazis. Rappaport fez parte de um contingente de realizadores enviados por Moscovo para doutrinar, educar e profissionalizar o cinema da nova república soviética. O período dos idos anos 40 e 50 é globalmente pouco considerado hoje em dia, apresentando-se dominado por cineastas vindos da Rússia à procura de uma segunda oportunidade ou melhores condições de vida. Esse filme de Rappaport, com a marca dos estúdios russos Lenfilm, corresponde ao início de uma fase não representada neste Ciclo. O período dourado da nova Estónia é identificado com a chamada “escola nacional do cinema”, iniciada nos anos 60 por uma fornada de cineastas nascidos na Estónia e falantes de estónio, que receberam formação nas melhores escolas de cinema soviéticas, desde logo, na célebre VGIK.
O fim da era estalinista, que propiciou um ambiente mais favorável à liberdade de criação, também ajudou à eclosão de uma vaga de cinema (verdadeiramente) estónio, com a chancela dos estúdios Tallinnfilm. Mesmo assim, como nota a investigadora Eva Näripea, num ensaio acerca dos anos pioneiros do cinema estónio sob o domínio soviético, A View from the Periphery Spatial Discourse of Soviet Estonian Feature Film: The 1940s and 1950s, uma luta intestina teve lugar entre os cineastas russos e a nova geração próxima da cultura e valores morais estónios. Da mesma forma que politicamente este povo nunca deixou de se bater pela sua autodeterminação, combatendo com armas na floresta durante a Segunda Guerra Mundial (o intenso TUULTE PESA/“Um Ninho ao Vento”, situado numa altura de rescaldo do conflito, fala de uma nação estilhaçada pela guerra) ou de maneira diplomática, graças a um governo exilado que considerava a anexação soviética ilegal, foi também de dentro do cinema que se começou a contar a História de um país finalmente libertado e só efetivamente reconhecido como tal com o colapso da União Soviética, num processo, iniciado em 1987 e concluído em 1991, que ficou conhecido como Laulev Revolutsioon (“Revolução Cantada”).
Em muitos dos filmes que constam deste Ciclo, é dominante o tom crítico em relação ao regime político vigente, destacando-se, a este propósito, um título como HULLUMEELSUS/“Loucura”, obra que tira partido dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, em particular do período da ocupação nazi, para visar o regime comunista, o que à época lhe custou uma visibilidade quase nula “fora de portas”. A sátira, de crítica mais ou menos velada ao comunismo, domina uma parte do grupo de filmes aqui selecionado: a comédia hilariante VIINI POSTMARK/“Carimbo Postal de Viena” fala da cadeia de desastres gerada pelo ato simples de “se dizer a verdade” e de “se ser honesto consigo mesmo”, ao passo que PÕRGUPÕHJA UUS VANAPAGAN/“As Desventuras do Novo Satanás” faz o Diabo descer à Terra para provar que nem todos nós, terráqueos, nesta sociedade doente, ficámos iguais a ele.
O realismo socialista dos idos anos 40 e 50 dá lugar a um realismo mais cru (e por vezes cruel ou desencantado) nos anos 80 do século passado, com a importante realizadora Leida Laius (cujo centenário do nascimento se assinala este ano e que está igualmente representada neste Ciclo com uma das suas primeiras obras, LIBAHUNT/"Lobisomem"), em NAERATA OMETI/“Jogos para Adolescentes” e VARASTATUD KOHTUMINE/“Encontro Roubado”, lidando com os problemas de mulheres deixadas à deriva no mundo, numa realidade fundamentalmente urbana. Sentimos este “estado de abandono” em muitas destas histórias sobre os indivíduos e as comunidades ou coletividades em que se inserem, destacando-se, também, o papel do documentário, que frontalmente enfrenta as contradições e inconsistências do regime soviético (Mark Soosaar, em MAN OF KIHNU/“Homem de Kihnu”, é o cineasta que mais longe leva a postura crítica, documentando as muito difíceis condições de vida de quem ainda habita uma das suas inúmeras ilhas). Mas há também magia, encantamento e até alguma nostalgia salpicados ao longo do programa: KEVADE/“Primavera”, um dos filmes mais amados do cinema estónio, sobre o tempo quase feérico da infância, casa, de maneira reversa, com o divertimento irresistível de um film noir de ficção científica chamado HUKKUNUD ALPINISTI HOTELL/“O Hotel do Alpinista Morto” ou com a fábula agridoce contada em NIPERNAADI, obra protagonizada por um trapaceiro que promete mundos e fundos mas que não tem onde cair morto. A paisagem é eminentemente rural e as personagens carregam sonhos e esperanças em percursos de vida tortuosos, que são um pouco como o próprio país: um “ninho ao vento”, soprado entre o “Oeste do Leste” e o “Leste do Oeste”.
Todos os filmes a exibir são primeiras exibições na Cinemateca e serão apresentados em versões digitais graças à colaboração com o Estonian Film Institute e na presença de Eva Näripea, diretora da Cinemateca de Tallin. O programa tem também um desdobramento na Cinemateca Júnior com duas sessões de cinema de animação, um dos géneros que mais tem contribuído para a reputação internacional da cinematografia estónia na atualidade.
 
 
26/04/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema da Estónia: Um Ninho ao Vento

Naerata Ometi
“Jogos para Adolescentes”
de Leida Laius, Arvo Iho
Estónia (período URSS), 1985 - 88 min
 
26/04/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Cinema da Estónia: Um Ninho ao Vento

Varastatud Kohtumine
“Encontro Roubado”
de Leida Laius
Estónia (período URSS), 1988 - 101 min
26/04/2023, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema da Estónia: Um Ninho ao Vento

Em colaboração com o Estonian Film Institute, com o apoio da Embaixada da Estónia em Lisboa
Naerata Ometi
“Jogos para Adolescentes”
de Leida Laius, Arvo Iho
com Monika Järv, Hendrik Toompere Jr., Tauri Tallermaa
Estónia (período URSS), 1985 - 88 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
História sobre os anos difíceis da adolescência, ambientada num orfanato soviético, onde a protagonista Mari (Monika Järv) procura aprender a sobreviver, tentando esquecer-se da realidade destroçada que deixou para trás e lá fora (ao falecimento da mãe junta-se um pai alcoólico e abusivo). A realizadora Leida Laius já era, nesta altura, um nome reconhecido do novo cinema estónio, particularmente sensível aos problemas por que passavam então as jovens mulheres ou mesmo adolescentes como Mari, tentando aprender “à força” as lições mais duras da vida. Mari descobre o seu lugar no mundo através dos companheiros e companheiras do orfanato, do amor mas também da violência e revolta presentes no interior de cada um deles e nas suas histórias de vida.

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26/04/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Cinema da Estónia: Um Ninho ao Vento

Em colaboração com o Estonian Film Institute, com o apoio da Embaixada da Estónia em Lisboa
Varastatud Kohtumine
“Encontro Roubado”
de Leida Laius
com Maria Klenskaja, Andreas Kangur, Kaie Mihkelson
Estónia (período URSS), 1988 - 101 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Da mesma realizadora de NAERATA OMETI, Leida Laius volta a filmar um drama centrado numa personagem feminina que resiste às agruras e injustiças da vida. Valentina saiu da prisão e procura recuperar o tempo perdido, começando desde logo por encontrar o filho Jüri que esta entregou para adoção anos antes. A procura do paradeiro motivará uma espécie de viagem de autodescoberta, tentando ir à raiz de todos os problemas na sua vida. Laius filma a via crucis da sua personagem (fabulosa interpretação de Maria Klenskaja), questionando-se sobre o direito a uma segunda oportunidade e cantando o exemplo de todas as mulheres, também elas abandonadas e maltratadas na infância, que procuram (corajosamente? Poderão ainda ir a tempo de...) algum tipo de acerto nas suas vidas.

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