CICLO
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)


A conceção deste programa, que finalmente se concretiza e cuja apresentação se prolongará no mês de abril, foi iniciada quando José Manuel Costa era Diretor da Cinemateca. É dele o texto que se segue, bem como as notas sobre as sessões individuais.
Concretizada depois de muitas iniciativas sobre a relação cinema­‑literatura nestas salas, a ideia de um “programa Joseph Conrad”, ela própria já com alguns anos, pareceu­‑nos sempre óbvia, convidativa, e ao mesmo tempo diferente – no sentido de extrema –, dentro desse universo. Extrema não necessariamente pela quantidade das adaptações conradianas – dado significativo mas difícil de comparar com outros casos notórios, quanto mais não seja porque tal pressuporia resolver o irresolúvel problema das fronteiras do ato de “adaptar” –, e não também, em si mesma, pela diversidade dessas adaptações, que, sendo fundamental, só revela toda a sua importância quando associada a ainda outro parâmetro. O que mais torna este projeto extremo, é então o facto manifesto de ter sido a transposição de Conrad aquela que mais potenciou o próprio “debate da adaptação” da literatura ao cinema, para não dizer que o fez explodir em todas as direções, levando a sucessivas posições (e “soluções”) diferentes e não raro opostas, certamente também devidas ao lugar charneira do escritor na história da literatura na viragem para o século XX, e, claro, às transformações que foram marcando o cinema e a sua relação com as outras artes. Conrad no cinema é um laboratório, um teste e um continuado estudo de caso, de 1919 ao século XXI. A bem do que é simples e do que é complicado, tudo ficou expresso na dupla boutade de Orson Welles quando afirmou que “cada história de Conrad é um filme”, ou que “não há outro romancista senão Conrad que possa ser posto diretamente no ecrã”, ao mesmo tempo que concluía “nunca ter havido um filme Conrad pela simples razão de que ninguém alguma vez o fez como foi escrito” [“nobody’s ever done it as written”].
Sublinhado isto, está explicada a dimensão assinalável do ciclo, que nasce para dar a conhecer a longa atração do cinema por Conrad e as etapas e veredas da resposta a esse desafio. Essa atração não é só visível, claro, nas adaptações de obras específicas, sabendo­‑se a que ponto, nestes casos, o escritor até poderá estar mais presente em filmes em que nenhuma obra foi adaptada. A meio do século XX, Pierre Kast  dava como grandes exemplos de espírito conradiano ASPHALT JUNGLE ou THE AFRICAN QUEEN, de John Huston, e bem nos podemos perguntar justamente quanto há de Conrad em Welles, cujo primeiro projeto de cinema foi Heart of Darkness e que escreveu “scripts” não só para essa obra como também para Lord Jim e Victory… Mas, face ao interesse que nos suscitou o percurso das transposições de Conrad, e face à subjetividade e quase aleatoriedade de uma eventual lista de “espírito conradiano” (apeteceria dizer, como disse J. Bénard da Costa a propósito de Shakespeare, que “há um [Conrad] para cada um e cada um encontra o fantasma dele às esquinas que quer ou merece”), o primeiro critério que assumimos foi mesmo o de fixar o programa dentro do universo das obras adaptadas, até como âncora que ajude a perceber (e “deixe falar”) as variações.
O ponto de partida é assim objetivo e exaustivo: independentemente das apreciações de época, damos a ver o maior número possível de filmes feitos para cinema baseados em romances, novelas ou contos de J. Conrad (não em personagens, episódios, referências pontuais ou misturas de histórias, e não também nas obras de colaboração Conrad­‑F. Madox Ford, que implicariam desvios de conversa). A esses juntamos algumas produções televisivas, numa seleção que, essa sim, é restrita e focada no contributo de realizadores de cinema (sabendo­‑se que o universo televisivo e videográfico baseado em Conrad e sobre Conrad vai muito para além disso, incluindo aliás, curiosamente, uma significativa parcela polaca). O resultado é um núcleo amplo, bem revelador de um interesse que se foi prolongando e reavivando ao longo de um século (1919­‑2016) e se espalhou geograficamente, dos EUA à Europa, e do México à Malásia.
Mas esta abrangência é ainda o que permite pegar no programa pela ponta oposta, ou seja, a de saber que obras estiveram na base de filmes para o “grande ecrã”, quais as que foram aí mais vezes trabalhadas, quais os contextos em que o foram, e, por último, o que está hoje acessível. Sobre essas outras questões (que abordaremos no “Caderno” a publicar) lembre­‑se para já que, dos dezasseis romances de Conrad, onze foram adaptados ao cinema, e que, destes, há um relevantíssimo – Nostromo – cuja única adaptação, feita ainda no período mudo, THE SILVER TREASURE de Rowland Lee (1926), é hoje considerada perdida (com base nele foi feita uma série televisiva BBC/RAI, em 1997, que, de acordo com o exposto acima, considerámos exterior ao universo abordado). Todos os restantes estão contemplados no ciclo, através de todas as adaptações que identificámos sob os citérios supra, com exceção das cinco outras versões linguísticas de DANGEROUS PARADISE rodadas na Europa em 1930/31, igualmente dadas como perdidas. Quanto à transposição das “short­‑stories”, serão aqui visíveis as nove adaptações feitas de oito obras de Conrad (duas com base em The Secret Sharer), através das quais é contemplado pelo menos um exemplo de cada uma das seis coletâneas editadas em vida do escritor. No total do ciclo, há um pequeno grupo de filmes que, não tendo ainda sido objeto de preservação ou restauro, será mostrado em materiais não de referência e há um título – THE RESCUE, de H. Brenon – que será exibido na única versão sobrevivente, amputada de uma bobina, em sessão preciosa que devemos agradecer ao George Eastman Museum.
Finalmente, é devida uma explicação que nos faz regressar às fronteiras da “adaptação”. A decisão de incluir os filmes que têm por base uma história de Conrad não foi objeto de nenhum outro crivo, seja pelo facto de algumas histórias terem sido atualizadas (o que englobamos no conceito de adaptação), seja porque no próprio genérico se referiu algo diferente de “adaptação” (caso da fórmula “inspirado em”), seja porque não houve sequer referência à fonte no genérico (caso de Coppola). Dito isso, há porém que explicar a inclusão de WIND ACROSS THE EVERGLADES de Nicholas Ray, o qual não só não tem nenhum crédito de referência a Heart of Darkness como, tanto quanto temos conhecimento, nunca foi antes relacionado, nem pelo autor, nem por biógrafos ou historiadores, com a narrativa de Conrad. Caso único neste programa, e nesse sentido distinto do que sucedeu em APOCALYPSE NOW (Coppola sempre falou de Conrad e chamou Kurtz ao personagem de Brando), pensar­‑se­‑á assim que é a nossa exceção à nossa própria regra, remetendo para o “espírito conradiano”. Ora, por muito que haja a dizer sobre isso (a propósito de Ray e dessa história na sua relação com o cinema), neste filme, o próprio desenrolar da narrativa “é” também o “coração das trevas” de Joseph Conrad, de uma forma concreta, que não pode senão convocar o termo “adaptação”, e que se aproximará da integração de arquétipos dramáticos ou literários em outras narrativas modernas, de uma forma que, a este nível, as torna de facto adaptações e não citações
Cinéfilos, conradianos ou simplesmente curiosos de uma coisa e outra: deixemo­‑nos perder no labirinto destas relações, sabendo que, aqui, de cada vez que a luz do projetor se acende, é o cinema que comanda e que só a sua matéria conta. Não nos limitemos então a ver o que há de Conrad no cinema, nem no que podia já haver de cinema em Conrad, e, sobretudo, não nos concentremos aí, mas no jogo de (re)descoberta de cada um deles em cada um dos respetivos lugares. Não tanto “Conrad no Cinema”, mas, portanto, “o Cinema e Conrad”, ou “Conrad e o Cinema”.
Agradecemos a Olaf Möller e a Federico Rossin a colaboração dada em diferentes fases da preparação deste ciclo.
 
José Manuel Costa
 
 
14/03/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)

Razumov: Souls Les Yeux D`Occident
de Marc Allégret
França, 1936 - 95 min
 
15/03/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)

The Rescue
O Corsário
de Herbert Brenon
Estados Unidos, 1929 - 96 min
17/03/2025, 16h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)

Laughing Anne
Torturada Pela Paixão
de Herbert Wilcox
Reino Unido, Estados Unidos, 1953 - 90 min
18/03/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)

Lord Jim
Lord Jim
de Richard Brooks
Estados Unidos, 1965 - 154 min
19/03/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)

Smuga Cienia
"Linha de Sombra"
de Andrzej Wajda
Polónia, Reino Unido, 1976 - 100 min
14/03/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)
Razumov: Souls Les Yeux D`Occident
de Marc Allégret
com Pierre Fresnay, Danièle Parola, Michel Simon, Jacques Copeau, Pierre Renoir
França, 1936 - 95 min
legendado eletronicamente em português | M/12
No ano em que Hitchcock adaptou The Secret Agent em Inglaterra, M. Allégret adaptou em França Under Western Eyes, que, na obra conradiana, tinha sido o romance seguinte e aquele em que o escritor quisera desenvolver o universo político do anterior, concentrando-se agora na “alma russa” (“the very soul of things Russian”).
A história retomava o tema da “segunda oportunidade”, neste caso a expiação da culpa sentida pelo estudante Razumov de ter traído o seu colega Haldin – aquele que cometera um assassinato político e que Razumov se recusara a ajudar por temer ser envolvido na sua causa. De novo tudo era necessariamente simplificado, sendo reduzida a escombros a imensa subtileza da análise internacional. Por outro lado, se Allégret não era Hitchcock (o grande inventor de formas que sustentavam um outro tipo de complexidade), não faltou quem lhe elogiasse a consistência e apostasse na resistência futura desta obra, até mesmo quanto a uma certa proximidade ao escritor.. E, claro, como sempre com Allégret, sublinhou-se a relação com os atores – Fresnay pouco antes da GRANDE ILUSÃO, M. Simon pouco depois de L’ATALANTE, além de Barrault, Copeau, P. Renoir, Dasté… Primeira exibição na Cinemateca

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15/03/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)
The Rescue
O Corsário
de Herbert Brenon
com Ronald Colman, Lili Damita, Alfred Hickman, Theodore von Eltz
Estados Unidos, 1929 - 96 min
mudo com intertítulos em inglês e legendagem eletrónica em português | M/12
The Rescue, um dos últimos romances de Conrad cuja escrita tinha porém sido começada nos seus inícios, foi também a última história de uma das suas primeiras personagens-chave, Tom Lingard (V. acima nota sobre OUTCAST OF THE ISLANDS), que aqui, ao pretender ajudar uma comunidade nativa do Arquipélago Malaio, se deixa desviar para salvar um iate dum casal inglês, vendo-se envolvido num conflito entre honra e paixão. Para além da vertente melodramática subjacente a outras obras, esta acabou por ser marcada por um excesso operático que o próprio escritor acentuou e que poderia aliás constituir mais um chamariz  curioso na ligação ao cinema. Brenon (realizador com aura considerável no tempo do mudo, contemporâneo de Griffith), estava então no auge do seu reconhecimento, sendo considerado um autor sofisticado que se impôs por algum tempo ao crescente poder dos estúdios. Para além de Conrad, há assim não poucos motivos de expectativa em relação a este filme, que foi por cá distribuído à época, mas que é hoje uma obra rara, tendo aliás sobrevivido apenas numa versão amputada de uma bobina.  Primeira apresentação na Cinemateca.

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17/03/2025, 16h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)
Laughing Anne
Torturada Pela Paixão
de Herbert Wilcox
com Wendell Corey, Margaret Lockwood, Forrest Tucker
Reino Unido, Estados Unidos, 1953 - 90 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Nos inícios dos anos 50 começaram a ser adaptadas ao cinema algumas das “short-stories” de Conrad, curiosamente não transpostas até aí. Não sendo possível mostrar já a primeira (incluída em FACE TO FACE, de 1952, que exibiremos em abril) saltamos para esta adaptação do conto Because of the Dollars (publicado na coletânea Within the Tides de 1915), do qual o próprio Conrad veio a fazer uma adaptação teatral com o título utilizado no filme. A história conta o irónico destino do comandante da marinha Davidson, que, na sequência de uma aventura com a cantora de bar conhecida como Laughing Anne (Margaret Lockwood), e depois de, mais tarde, ser por ela avisado de que o homem para quem ela voltou planeia roubar a carga de dinheiro que ele tem por missão entregar, é confrontado com a morte dela e adota o seu filho. Neste caso há um narrador Conrad (Robert Harris) mas tudo parece ter caído depressa no esquecimento. Por outro lado, esta foi uma das obras esquecidas da “Republic Pictures” (filmada sobretudo nos estúdios Shepperton em Londres, em Technicolor) que Scorsese escolheu para os programas de restauro digital por si patrocinados. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital.

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18/03/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)
Lord Jim
Lord Jim
de Richard Brooks
com Peter O’Toole, James Mason, Curd Jurgens, Eli Wallach
Estados Unidos, 1965 - 154 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Quatro décadas depois da versão de Fleming, a segunda adaptação de Lord Jim veio a ser feita por Richard Brooks já em período de transição pós-clássico, como produção inglesa e americana rodada (pelo menos em grande parte) em exteriores no Camboja. Agora bastante livre nos seus propósitos, Brooks ergueu um projeto ambiciosíssimo, ao mesmo tempo pessoal e grandioso, que acabaria por sofrer com a equívoca expectativa de um novo LAWRENCE DA ARÁBIA (o então muito recente épico de D. Lean), que a escolha de O’Toole obviamente alimentava. Desta vez Marlow (J. Hawkins), numa solução engenhosa, limitada à primeira parte do filme, que, porém, com alguma ironia mas de forma sintomática, não terá contribuído por si mesma para aproximar o filme de Conrad. Apanhado entre tempos e contextos em mudança, parece ter havido pouca margem para ver o filme pelo seu lado mais forte, que era naturalmente o próprio cinema de Brooks, em particular pelo seu controlo seguro de câmara e pelo seu domínio do espaço, algo que alguns salientaram mas de que, mais uma vez, há que propor a (re)descoberta.

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19/03/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (I)
Smuga Cienia
"Linha de Sombra"
de Andrzej Wajda
com Marek Kondrat, Graham Lines, Tom Wilkinson
Polónia, Reino Unido, 1976 - 100 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Narrativa de uma fatídica primeira experiência de comando de um veleiro por um jovem “na região crepuscular entre a juventude e a maturidade” (Conrad), SMUGA CIENIA destaca-se antes de mais por ser uma rara adaptação conradiana para cinema dirigida por um realizador polaco, facto não despiciendo em relação a uma obra literária da língua inglesa na qual as reminiscências eslavas nunca deixaram de ser lembradas e interrogadas. Já se sublinhou que Wajda conteve a sua índole mais barroca, ou “expressionista”, para se aproximar de Conrad, mas até isso poderá também ter estado na origem de uma tensão especial que sobressai neste filme. Por outro lado, o facto de Wajda ter querido colar-se a uma narrativa tão centrada num “estado de espírito” e na “não-ação” (a longa imobilização de um veleiro “assombrado”) tornou-se mais um episódio da interminável discussão sobre a adaptação cinematográfica, levando o próprio realizador a dizer mais tarde que devia ter escolhido outro caminho. Muito pouco visto entre nós (tanto quanto sabemos, só foi exibido em raras sessões em 1978, quando foi trazido para o Ciclo de Cinema Polaco na Fundação Gulbenkian), é uma das esperadas revisitações deste ciclo. Primeira exibição na Cinemateca.

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