CICLO
Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)


Qualquer tentativa de definição do género mais americano de todos, produtor de uma mitologia que se pode confundir, a espaços, com o próprio processo de consolidação cultural e histórica da identidade americana, dificilmente deixará de articular o nascimento e o definhamento do western, de Edwin S. Porter (THE GREAT TRAIN ROBBERY, tido como o primeiro dos westerns) a Jane Campion (THE POWER OF THE DOG, um dos mais celebrados westerns recentes, graças ao qual a realizadora neozelandesa venceu o Oscar de Melhor Realização), com a noção de “território” ou “paisagem”. Trata-se de um dos poucos géneros da História do cinema cuja designação se apresenta marcada geograficamente, situada a “oeste” nos Estados Unidos da América. Com efeito, foi sensivelmente a oeste do rio Mississippi e a norte do Rio Grande que ganharam formas múltiplas as histórias mais ou menos míticas do faroeste, localizadas temporalmente entre o período da Guerra Civil Americana (1861-1865) e a entrada no século XX (ou mais simbolicamente até à rendição do líder indígena Goyaaleh, mais conhecido como Geronimo, em 1886, a que se seguiu o terrível Massacre de Wounded Knee, em 1890, ou até ao falecimento do grande líder ameríndio, em 1909). Ao mesmo tempo, também não é errado dizer-se que “a oeste nada de novo”. Neste particular, a definição do género e as suas (re)interpretações confundem-se com a própria noção de classicismo ou com as premissas e a práxis de todo o sistema hollywoodesco, porquanto clássico é tudo aquilo que se repete, como bem notou o crítico francês André Bazin e, depois, sistematizou de maneira mais científica David Bordwell.
O paradigma clássico sedimentou-se, assim, na grande paisagem original e originária, com a repetição de fórmulas narrativas e a criação de tipos de personagens que a atravessavam (diz-se que couberam todos na diligência de STAGECOACH: o xerife incorruptível, o side-kick cómico, o banqueiro corrupto, o vendedor de whiskey, o jogador, o médico bêbedo, a boa “bad girl”, a “lady” vinda do Este e finalmente Ringo Kid, o herói fora-da-lei). Produziu-se, desse modo, uma série de variantes sobre modelos narrativos que melhor asseguravam o sucesso comercial dos filmes. Foi como que respaldados nesta base “simplificada” – toda uma mitologia enraizada na terra, na sua história e, acima de tudo, nos seus mitos – que alguns dos maiores realizadores do cinema americano puseram mãos à obra e pés ao caminho, deixando a sua marca, em tons dourados, na paisagem do cinema americano e além-fronteiras: John Ford, que ficou conhecido pela expressão “When in doubt, make a western”, é o maior entre todos os cineastas do género, mas Howard Hawks, Anthony Mann, Budd Boetticher, Sergio Leone, Sergio Corbucci, Sam Peckinpah e Clint Eastwood, entre outros, desempenharam e desempenham um papel fundamental na divulgação dos lugares-comuns que, a dado momento na História, tornaram o western um dos géneros mais populares do século XX. Por exemplo, nos anos 40, o género chegou a representar 30% do total da produção de cinema na América, superando o número de filmes dentro do género produzidos no final do período do cinema mudo, durante o qual o western era associado a nomes tais como D. W. Griffith, Tom Mix, William S. Hart e os irmãos John e Francis Ford (o trabalho de realizador deste último, o irmão mais velho do autor de STAGECOACH, lamentavelmente permanece por descobrir).
A redescoberta do western coincide com a redescoberta da paisagem americana em John Ford “no seu” Monument Valley, sendo, neste sentido, verdadeiramente icónico o primeiro e mítico plano de apresentação do grande herói clássico, John Wayne, “Duke” de alcunha, ele que foi, segundo Manuel Cintra Ferreira, “o western ‘feito’ corpo” (in Western: 1939/1964, ver abaixo). Acontece em STAGECOACH, filme que representa um marco importantíssimo nesse período de renascimento do género, numa altura em que se procurava tirar partido das novas possibilidades permitidas pelo som. Esse plano é significativo quanto à ligação estabelecida entre tempo e espaço, entre lenda e facto, e, nele, a personagem, o herói fora-da-lei, ganha relevo ou definição a partir do fundo preenchido por uma vista distante, mas nem por isso pouco sumptuosa: a de Monument Valley. Num plano apenas, Ford parecia sintetizar a essência de todo um cinema: em certo sentido, o realizador irá aproximar-se, de maneira progressiva, do “sentir” e “sentido” desta paisagem tanto mais quanto mais próximo está do seu fim como realizador de westerns. Algo de muito importante se revela no movimento que embala o género e que vai de STAGECOACH a CHEYENNE AUTUMN, filmes que se refletem brilhantemente um no outro, como notou Manuel Cintra Ferreira no seu texto «O ‘Western’: O Mito», publicado no catálogo Western: 1939/1964, lançado aquando de um Ciclo da Cinemateca Portuguesa dedicado ao género, que marcou não só a efeméride dos cem anos do cinema como também a do centenário de nascimento de John Ford. Entre esses títulos, um assunto ganha relevo: a chacina das nações índias às mãos dos colonizadores brancos. E, ao mesmo tempo, esse seu último western é uma obra inteiramente dela, da paisagem, quer dizer, deles, dos índios. A “origem originária” já estava no plano de apresentação de “Duke”, mas cumpre-se, dentro de uma lógica circular perfeita (a cosmovisão fordiana tem uma natureza religiosa algo incontornável), nessa obra que João Bénard da Costa dizia ser de uma “assombrosa coralidade, a cada nova visão mais grandiosa e serena”.
Se o papel dos índios é preponderante para se pensar e repensar o western nos dias de hoje, o das mulheres, num género predominantemente “másculo”, também se afigura determinante. Nesse sentido, se naturalmente é fácil associarmos o género aos rostos, porte e pose – maneiras de andar, gestos e trejeitos característicos – de atores como John Wayne, Gary Cooper, James Stewart, Randolph Scott e Alan Ladd, também podemos falar em Barbara Stanwyck (THE FURIES e FORTY GUNS), em Marlene Dietrich (RANCHO NOTORIOUS), em Joan Crawford (JOHNNY GUITAR) e em Angie Dickinson (RIO BRAVO), entre outras, como imponentes “mulheres de armas” que se afirmaram como tal outrossim num qualquer rancho, estalagem ou saloon do faroeste.
A primeira parte deste Ciclo dedicado ao western conta-se assim, distribuído entre os meses de janeiro e fevereiro do novo ano, mas também, e significativamente, porque se a paisagem é americana, os temas são universais (o amor, o ódio, a ganância, a inveja, o desejo, o medo...), entre a figura do cowboy e a do índio, entre o homem e a mulher, entre o mito e a realidade – no oeste, como se “ensina” no já “meta-western” THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE, deve-se privilegiar a lenda em detrimento do facto – e entre o território e a História. As partes II e III deste Ciclo dedicar-se-ão a escalpelizar as apropriações futuras do género, nomeadamente fora do próprio território dos Estados Unidos e, por fim, atenta-se na persistência, quase fantasmática, de certas marcas estéticas e temáticas “westernianas” no cinema moderno e contemporâneo – eis, enfim, a manutenção possível de um género, entretanto, algo esquecido ou subestimado.
Porquê este desinteresse crescente sensivelmente desde os idos anos 50? De acordo com Patrick Brion, no texto de apresentação da sua indispensável Encyclopédie du Western, o ocaso do western clássico deve-se, numa primeira instância, à entrada nos lares americanos do televisor e ao impacto nos telespectadores de toda uma programação feita à medida do pequeno ecrã, onde se “abusaram de tal modo de séries ‘westernianas’ e de westerns séries B que o público considerava já ter tido a sua dose”. Ao mesmo tempo, destaca-se, nos anos 50 e 60 do século passado, toda uma geração de grandes realizadores a dar a sua carreira por terminada. De qualquer modo, com esse virar de página nasce uma certa maneira de fazer cinema – uma nova mundivisão, inegavelmente mais engajada e consciente da História e da tradição do cinema – que não estava nem totalmente alheia ao género, nem tão-pouco limitada à geografia norte-americana. Fenómenos como o western spaghetti e os filmes mais crus, realistas e referenciais ou paródicos vindos da Nova Hollywood ocuparão a parte II, ao passo que o sobrante do western à data presente – o chamado pós-western ou o cinema sob a influência meramente conceptual do género, em que a figura do cowboy aparece, por vezes, “metaforizada”, como um órfão ou um desterrado do velho faroeste – será remetido para a parte III.
É, por isso, tempo de se repovoar e reterritorializar este género que, ao longo da História, tem exercido um fascínio sem fronteiras entre criadores e cinéfilos, até porque afirmar hoje o papel do western poderá significar, num duelo de fogo com o futuro, a exaltação deste “género dourado” como grande (re)criador da própria cinefilia e enquanto máximo catalisador do desejo de (se fazer) mais e melhor cinema.
Era uma vez...
 
 
29/01/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)

High Noon
O Comboio Apitou 3 Vezes
de Fred Zinnemann
Estados Unidos, 1952 - 85 min
 
29/01/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)

Devil’s Doorway
O Caminho do Diabo
de Anthony Mann
Estados Unidos, 1950 - 84 min
29/01/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)

Garden of Evil
O Jardim do Diabo
de Henry Hathaway
Estados Unidos, 1954 - 100 min
29/01/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)

Silver Lode
Falsa Justiça
de Allan Dwan
Estados Unidos, 1954 - 77 min
30/01/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)

The Naked Spur
Esporas de Aço
de Anthony Mann
Estados Unidos, 1953 - 89 min
29/01/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)
High Noon
O Comboio Apitou 3 Vezes
de Fred Zinnemann
com Gary Cooper, Grace Kelly, Thomas Mitchell, Lloyd Bridges, Katy Jurado, Lon Chaney
Estados Unidos, 1952 - 85 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Um western que provocou muita polémica e que tem como virtude maior o facto de ter levado Howard Hawks a fazer RIO BRAVO, como resposta a este filme que detestava. De qualquer modo, HIGH NOON é essencialmente um estudo sobre o medo e uma luta contra o tempo. Gary Cooper ganhou aqui o segundo Oscar, no papel de um xerife que, no dia do casamento, tem de enfrentar uma quadrilha apostada em abatê-lo, sendo abandonado por todos os concidadãos. A exibir em cópia digital.
29/01/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
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Devil’s Doorway
O Caminho do Diabo
de Anthony Mann
com Robert Taylor, Louis Calhern, Paula Raymond, Marshall Thompson
Estados Unidos, 1950 - 84 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O terceiro western de Anthony Mann foge um pouco ao modelo instituído por WINCHESTER ‘73. DEVIL’S DOORWAY inscreve-se na moda do western pró-índio que BROKEN ARROW iniciara. Robert Taylor é um nativo americano que se distinguira no exército da União durante a Guerra Civil e ao regressar à sua terra encontra o seu povo vítima de repressão e injustiças, o que o conduz à revolta. “Poucos filmes descreveram com tanta lucidez e tristeza a aniquilação física, moral e económica do índio”, escreveu Patrick Brion.

consulte a FOLHA da CINEMATECA aqui
29/01/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)
Garden of Evil
O Jardim do Diabo
de Henry Hathaway
com Gary Cooper, Susan Hayward, Richard Widmark, Cameron Mitchell, Rita Moreno
Estados Unidos, 1954 - 100 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Gary Cooper é um aventureiro americano, no México do século XIX, que aceita o encargo de conduzir um grupo de salvamento contratado por uma mulher (Susan Hayward) em busca do seu marido perdido numa região dominada pelos índios onde procurava ouro. Um dos primeiros westerns que a Fox produziu em CinemaScope. “[A] verdadeira vedeta de GARDEN OF EVIL, o que está no centro do filme, não é a trama, nem são os personagens, nem os atores. É o formato do ecrã largo, é o CinemaScope” (Antonio Rodrigues). A exibir em cópia digital.

A sessão repete no dia 31 às 15h30, na sala M. Félix Ribeiro.
 
29/01/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)
Silver Lode
Falsa Justiça
de Allan Dwan
com John Payne, Lizabeth Scott, Dan Duryea
Estados Unidos, 1954 - 77 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Foi o filme inaugural da colaboração de Dwan com Benedict Bogeaus, um produtor independente que conseguira um acordo de distribuição com a RKO, a qual por sua vez lhe exigia um realizador experiente (e é assim que Dwan se cruza com Bogeaus, como “garantia” do investimento da RKO). Mas SILVER LODE, um western, também ficou como um dos mais célebres títulos desta época, muito por causa da sua narrativa onde toda a gente viu uma incidência política, e uma alegoria do “maccarthismo”.

A sessão repete no dia 31 às 19h00, na sala M. Félix Ribeiro.
30/01/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Revisitar Os Grandes Géneros: Era Uma Vez... O Western (Parte I)
The Naked Spur
Esporas de Aço
de Anthony Mann
com James Stewart, Robert Ryan, Janet Leigh, Ralph Meeker, Millard Mitchell
Estados Unidos, 1953 - 89 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Um dos filmes que mais “ensombreceu” a imagem de James Stewart, que, aqui, é um herói a agir não por pureza, mas por interesse. É o mais conhecido dos cinco westerns que o ator fez com Anthony Mann, aquele em que a ação é mais concentrada, com um grupo de cinco personagens, o que amplia ainda mais a imensidão do espaço que os cerca. “NAKED SPUR é uma soberba obra lírica na qual sentimos a natureza viva (...) e onde as paisagens adquirem uma importância considerável”, notou Patrick Brion.