CICLO
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”


Nascida na Alsácia, em 1941, Monique Rutler veio viver para Portugal em criança. Embora tenha vivido em Paris durante a segunda metade da década de 1960, fez a sua carreira no cinema em Portugal, logo a partir de 1971. Trabalhou como montadora durante quase vinte anos, em filmes de Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Fernando Matos Silva, António de Macedo ou José Nascimento. Enquanto realizadora assinou uma obra curta, mas que revela o seu incessante envolvimento em causas sociais e políticas, dando particular atenção aos dramas da condição feminina (alguns dos seus filmes são sátiras ao machismo ou denúncias do sistema patriarcal), às fragilidades da terceira idade ou às potencialidades transformadoras do ensino.

Monique Rutler integra a geração de cineastas portuguesas que se afirmaram na década de 1970, onde se incluem Solveig Nordlund, Noémia Delgado, Ana Hatherly, Margarida Cordeiro e Margarida Gil. No entanto, ao contrário das três primeiras, que estudaram em Paris ou Londres com bolsas de estudo, ou das últimas, que descobriram a realização através da prática, Monique Rutler foi uma pioneira do ensino do cinema em Portugal. Foi aluna da primeira turma do Curso de Cinema do Instituto das Novas Profissões, em 1970/71, e foi aluna da primeira turma da dita Escola Piloto para a Formação de Profissionais de Cinema do Conservatório Nacional (futuro Conservatório de Cinema, atual Escola Superior de Teatro e Cinema), em 1972/73.

Nesse sentido, o seu percurso é concomitante com a transformação que se produziu nas últimas cinco décadas no que respeita ao contexto da produção de cinema, onde se passou, progressivamente, a uma profissionalização e aperfeiçoamento técnicos. Mais que isso, Monique Rutler corporiza o modo como o ensino permitiu um renovado e mais plural acesso ao meio cinematográfico português, até então ainda muito encerrado sobre os seus sistemas de convívio autocentrados.

Claro que, mais do que o seu percurso pela Escola de Cinema, foi o seu envolvimento ativo na Revolução de Abril que possibilitou uma total integração no contexto do cinema militante do PREC. Em particular, é a Monique Rutler (juntamente com Fernando Matos Silva) que se deve a montagem de AS ARMAS E O POVO, cuja forma final demorou mais de três anos a atingir.

Esteve envolvida em duas das mais dinâmicas cooperativas do período revolucionário e pós-revolucionário, a Cinequipa e a Cinequanon, tendo montado e realizado dezenas de filmes e programas televisivos de cariz político. Foi o sangue--frio da realizadora que garantiu a completude de O ABORTO NÃO É UM CRIME, filme que geraria uma das mais acesas polémicas nacionais, em 1976, e que levaria a jornalista Maria Antónia Palla ao banco dos réus. Polémica essa que foi a rampa de lançamento para a campanha que levaria à realização do primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Além de uma vasta produção televisiva, realizada entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 (de que a presente retrospetiva apresenta alguns títulos selecionados), Monique Rutler assinou três longas-metragens que tiveram distribuição comercial nas salas portuguesas. A primeira delas, um filme produzido com um orçamento mínimo em película de 16mm e em modo guerrilha, VELHOS SÃO OS TRAPOS. Obra inclassificável, algures entre o filme de denúncia, o levantamento sociológico e o cinema direto, mas com uma dimensão de fábula romântica e de sátira cruel – “uma obra de pesquisa sociológica e de invenção poética” (David Mourão-Ferreira).

Depois deste, a realizadora prossegue o esboroamento dos géneros cinematográficos, com JOGO DE MÃO, o mais internacional dos seus filmes, apresentado na seleção oficial do Festival de Veneza (e aplaudido por Nagisa Oshima, júri dessa edição do certame). Composto por cinco histórias entrecruzadas, o filme faz um levantamento dos vários tipos de “machos lusitanos”, escarnecendo – um a um – da sua pequenez. Como escreveu Maria Teresa Horta, a propósito de JOGO DE MÃO, “um filme de uma mulher inteligente que questiona. Se questiona. Dentro de uma sociedade sexista, que ela denuncia muitas vezes através da ironia, do humor. Mas sempre: implacavelmente.”

Por fim, já na década de 1990, Monique Rutler realiza a sua última longa-metragem de ficção, SOLO DE VIOLINO, sobre a história verídica de Adelaide Coelho da Cunha, a infame dona do Diário de Notícias que o marido tentou aprisionar num manicómio (com o apoio das sumidades médicas da época, Egas Moniz e Júlio de Matos) para esconder a ignomínia de que ela o havia trocado pelo choferpara isso, e para se apoderar da sua cobiçada herança. Paulo Rocha muito elogiou este filme como um “poderoso melodrama populista” onde Monique Rutler “quebra distraidamente a loiça da família lusa, sem cuidar de bom gosto e de bom senso.”

Ao longo da segunda metade de setembro apresenta-se a sua filmografia em seis sessões, a que se acrescenta uma sessão dedicada ao seu trabalho como montadora (onde se apresenta FRANCISCA, de Manoel de Oliveira) e sete sessões que constituem uma “carta branca virtual”, onde se apresentam 11 filmes de 11 realizadoras destacadas por Monique Rutler.

O Ciclo é acompanhado pela publicação do catálogo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”, onde se propõe uma reavaliação da obra da realizadora através de ensaios originais e novas entrevistas (Ana Isabel Soares, Ricardo Vieira Lisboa, Maria Antónia Palla), da republicação de textos preexistentes (Natália Correia, Maria Teresa Horta, Luís Miguel Oliveira, Maria João Madeira, entre outros), da publicação de textos inéditos (Paulo Rocha, David Mourão-Ferreira e vários ensaios da própria Monique Rutler) e de um vasto número de testemunhos de diversos colaboradores (São José Lapa, André Gago, Mário Barroso, Luís Cília, Fernando e João Matos Silva, José Nascimento, Philippe Constantini, Filipe La Féria, Castro Guedes).
 
 
21/09/2024, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”

A Recompensa (Trailer) | Francisca
 
23/09/2024, 16h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”

Suspense | Street Corner
23/09/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”

Freguesias de Lisboa: S. Mamede – das Amoreiras ao Parque Mayer | Carro da Estrela
25/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”

Desperately Seeking Susan
Desesperadamente Procurando Susana
de Susan Seidelman
Estados Unidos, 1985 - 104 min
26/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”

Le Matelas Alcoolique | Il Portiere di Notte
21/09/2024, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”
A Recompensa (Trailer) | Francisca
A Recompensa (Trailer)
de Arthur Duarte [e Monique Rutler]
Portugal, 1979 – 3 min

Francisca
de Manoel de Oliveira
com Teresa Meneses, Diogo Dória, Manuela de Freitas, Mário Barroso, João Guedes
Portugal, 1981 – 168 min

duração total da projeção: 171 min | M/12

Depois da Escola de Cinema do Conservatório Nacional, Monique Rutler começou a trabalhar como montadora, função que ocupou durante mais de uma década. Além de ter montado (com Fernando Matos Silva) AS ARMAS E O POVO, o seu outro grande feito como montadora foi FRANCISCA, uma das obras maiores de Manoel de Oliveira. FRANCISCA é o filme da última heroína da “tetralogia dos amores frustrados” (interpretada por Teresa Meneses). Manoel de Oliveira filma a partir do romance Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís (1979), escrito com base em factos verídicos (Porto, século XIX, círculo intelectual e boémio de que fazia parte Camilo Castelo Branco). É um filme de espelhos e reflexos, ou como escreveu João Bénard da Costa, “não se pode ser mais claro em palavras e mais escuro em visões.” A abrir a sessão exibe-se o trailer, montado por Monique Rutler, do filme A RECOMPENSA.

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23/09/2024, 16h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”
Suspense | Street Corner
Filmes de Realizadoras escolhidas por Monique Rutler
Suspense
de Lois Weber
Estados Unidos, 1913 – 10 min

Street Corner
de Muriel Box
com Anne Crawford, Peggy Cummins, Rosamund John
Reino Unido, 1953 – 94 min

duração total da projeção: 104 min
legendados eletronicamente em português | M/12

Florence Lois Weber, a mais prolífica das realizadoras do cinema mudo (com uma obra paralela à de D. W. Griffith), realizou em 1913 a curta-metragem SUSPENSE, o filme que primeiro recorreu ao uso do split screen nos EUA (para dar a ocorrência paralela de eventos ligados pelas linhas telefónicas). Neste pequeno filme (onde Weber é, além de realizadora, argumentista e a protagonista), experimenta--se uma plêiade de soluções visuais desconcertantes, para construir um “filme de cerco” sobre a violação do espaço doméstico. Já Muriel Box foi a mais prolífica das realizadoras inglesas do século XX, tendo realizado treze longas-metragens ao longo das décadas de 1950 e 1960 (além disso, foi uma importante argumentista, sendo a primeira mulher a receber um Oscar na categoria de Melhor Argumento Original). STREET CORNER versa sobre o trabalho e as agruras das mulheres-polícia (Anne Crawford, Rosamund John) na cidade de Chelsea, num filme que claramente se inspira nos policiais de Alfred Hitchcock. Segundo a realizadora, este foi um filme realizado com uma equipa técnica e artística predominantemente feminina e “nunca fui tão feliz e livre numa rodagem”. Os dois filmes são exibidos pela primeira vez na Cinemateca, ambos em cópia digital

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23/09/2024, 19h30 | Sala Luís de Pina
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”
Freguesias de Lisboa: S. Mamede – das Amoreiras ao Parque Mayer | Carro da Estrela
Freguesias de Lisboa: S. Mamede – das Amoreiras ao Parque Mayer
de Monique Rutler
Portugal, 1991 – 29 min

Carro da Estrela
de Monique Rutler
com António Lopes Ribeiro
Portugal, 1989 – 59 min

duração total da projeção: 88 min | M/12

Nesta sessão exibem-se dois filmes de encomenda que são, simultaneamente, retratos da cidade de Lisboa (a cidade que acolheu Monique Rutler desde a sua adolescência) e retratos da cinefilia revista à luz do urbanismo. DAS AMOREIRAS AO PARQUE MAYER corresponde ao capítulo de uma série promovida pela Câmara Municipal de Lisboa, onde se convidou um realizador diferente para assinar um retrato documental (em vídeo) sobre cada uma das freguesias da cidade. Monique Rutler, que viveu vários anos na zona do Príncipe Real (bairro que filmou em VELHOS SÃO OS TRAPOS e JOGO DE MÃO), conhecia muito bem os contornos da freguesia e fez deste “vídeo” um retrato tocante de um espaço, entre a decadência das tradições e a força da novidade. Já CARRO DA ESTRELA foca-se num bairro adjacente, e num dos seus mais célebres habitantes: António Lopes Ribeiro. Talvez pelo seu estatuto de “estrangeira”, só mesmo Monique Rutler teve o discernimento e a distância para conseguir encarar a complexa (e controversa) figura de Lopes Ribeiro. Cineasta oficioso do Estado Novo, Lopes Ribeiro foi o realizador que mais se entregou ao cinema de propaganda nacionalista, mas foi também um dos homens de cinema mais cultos da sua geração, um tradutor exímio, um literato e um dos mais populares promotores da cultura cinéfila na televisão no pré-25 de Abril. Os dois filmes são apresentados pela primeira vez na Cinemateca, ambos em suporte digital.

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25/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”
Desperately Seeking Susan
Desesperadamente Procurando Susana
de Susan Seidelman
com Madonna, Rosanna Arquette, Aidan Quinn, John Turturro
Estados Unidos, 1985 - 104 min
legendado em português | M/12
Filmes de Realizadoras escolhidas por Monique Rutler
E eis que Madonna chegou ao cinema! DESPERATLEY SEEKING SUSAN foi o primeiro filme de Madonna num papel de relevo (a cantora estreou-se no grande ecrã no mesmo ano com uma aparição em VISION QUEST). Assinada por Susan Seidelman, realizadora de comédias muito populares nos anos 1980, esta é uma divertida comédia que elege a figura de uma dona de casa dos subúrbios como protagonista, Roberta (Rosanna Arquette). Quando esta perde a memória, é confundida com Susan (Madonna), uma jovem boémia que não para quieta. Inspirado em CÉLINE ET JULIE VONT EN BATEAU, de Jacques Rivette, o filme foi um enorme sucesso comercial, tornando Seidelman numa das poucas realizadoras a singrar na indústria de Hollywood.

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26/09/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Monique Rutler – “Isto Vai Mudar!”
Le Matelas Alcoolique | Il Portiere di Notte
Filmes de Realizadoras escolhidas por Monique Rutler
Le Matelas Alcoolique
de Alice Guy-Blaché
França, 1906 – 9 min

Il Portiere Di Notte
O Porteiro da Noite
de Liliana Cavani
com Charlotte Rampling, Dirk Bogarde, Gabriele Ferzetti, Philippe Leroy
Itália, 1974 – 117 min

duração total da projeção: 126 min
legendados eletronicamente em português | M/16

Polémico pelo tema que trata (aliás, foi apelidado à época como “o filme mais controverso dos nossos tempos”), IL PORTIERE DI NOTTE conta uma história que vem da II Guerra, trinta anos depois dela ter passado: uma sobrevivente a um campo de concentração (Charlotte Rampling) e o seu torturador (Dirk Bogarde), atualmente porteiro noturno num hotel vienense, encontram-se e revivem uma relação sadomasoquista. É o filme mais conhecido de Liliana Cavani, cineasta italiana que nunca se esquivou aos temas difíceis. Embora tenha sido muito atacado aquando da estreia, é hoje visto como um retrato ambíguo e complexo sobre as sequelas do horror da guerra. A abrir a sessão, um filme da pioneira Alice Guy-Blaché, um dos seus filmes burlescos onde uma lavadeira de colchões arregaça as mangas e põe mãos ao trabalho, custe o que custar. LE MATELAS ALCOOLIQUE é exibido pela primeira vez na Cinemateca, em cópia digital.

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