CICLO
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail


Regina Guimarães (n. 1957) e Saguenail (n. 1955) fazem cinema há mais de 50 anos. Formaram a casa de produção independente Hélastre, no Porto, em 1975, e desde então é a partir dela que declaram o seu amor pelo cinema. É uma relação intensa, ativa e apaixonada que toma uma forma multifacetada, pelo menos tripla: seja na criação, na crítica ou na programação, é sempre de fazer cinema que se trata. Todas estas três faces, inseparáveis, estão em ato neste programa.
Saguenail fez o seu primeiro filme aos 14 anos, em 1969, e durante a sua juventude ainda em França fez outros filmes a que chamou “pecados de juventude” – desses veremos REVOLVER OU CHEVEUX BLANCS, que fez aos 18 anos. Com um desejo e um anseio forte pelo cinema desde muito cedo, então, Saguenail mantém uma prática regular na realização (para além da colaboração com outros cineastas, portugueses e estrangeiros, sobretudo na montagem). Podemos caracterizar brevemente essa prática pelo uso dos meios e ferramentas cinematográficas mais estabilizados e académicos (desde logo na planificação), para corromper e desestabilizar por dentro esse mesmo academismo ou estabilidade. “Sou formalista”, diz na conversa que fecha o catálogo que acompanha este Ciclo. E é de um formalismo arrojado que se trata, radicalmente independente, independência que está assim inscrita em todas as dimensões da sua prática, desde a produção à realização e distribuição dos seus filmes. “Se alguém já fez, não faço”, é a única regra que tem na organização dos seus projetos fílmicos. E em todos os que veremos aqui percebemos o que quer dizer: apesar de uma aparência clássica (os campos/contra-campos, os raccords de continuidade), os filmes de Saguenail são marcados por um forte experimentalismo formal, todos eles tratados preciosos sobre a possibilidade e o limite da “linguagem” cinematográfica – são filmes que perguntam o que é e o que pode essa linguagem. Com temas muito diversos – do colonialismo, à própria morte, ao espaço (imaginário ou não) da cena ou da cidade, ao Porto (que não é só cenário, é tema e vértice na obra dos dois), ao corpo, memória, imagem ou luz (temas que atravessam muitos dos seus filmes) – o tema do trabalho de Saguenail é sempre o mesmo: a imagem cinematográfica.
Regina Guimarães pelo seu lado começou a filmar, ou a “cometer” filmes, como diz, só no final dos anos 80, quando percebeu que os meios videográficos lhe permitiam filmar sozinha, sem ter de explicar a outros aquilo que não sabia explicar se não fosse ela mesma a fazer. Poeta, Regina filma como escreve, a partir daquilo que vê, na rua ou na história das imagens, que articula em montagens-devaneios, que ligam o distante, o discordante, em novos todos – os filmes – poliédricos e expansivos, sempre subversivos. Não é por acaso que se sucedem os “cadernos” na sua prática, e assim é neste programa: não sendo objetos diarísticos, os seus filmes estão ligados ao seu corpo, à sua presença e passagem pelos lugares, aos seus encontros, respondem-lhes, de um modo explosivo (explodem com as formas convencionais). Fazem na prática o que Regina defende quando escreve ou fala sobre cinema: reclamam um espaço para o rascunho na criação cinematográfica.
Os dois escrevem em “Cinema Pobre”, texto publicado no número 0 de A Grande Ilusão, revista de crítica cinematográfica que dirigiram entre 1984 e 1996: “O nosso militantismo é duplo: defesa do cinema — vontade de assegurar a sobrevivência de um meio de expressão para além da sua contingente adequação social (como o circo, os fantoches, etc.) — e luta por uma desenfreada descoberta das suas potencialidades ainda inexploradas.” Com práticas e objetos muito diferentes, então, feitos a partir de impulsos distintos, e resultando em filmes muito díspares também, Regina Guimarães e Saguenail aproximam-se nas perguntas e na reflexão, profunda e contínua, que mantêm sobre o cinema – sobre as suas formas, as suas possibilidades, os seus limites (que trabalham para esticar em todas as suas frentes). Paulo Rocha, confesso admirador dos filmes do casal, elogiava a liberdade e ousadia com que mexiam com as ferramentas do cinema, liberdades e ousadias que o vídeo, meio indomável dizia o cineasta, ajudou a potenciar. Esse gesto que Rocha admirava ficará claro neste programa.
As perguntas que Regina e Saguenail fazem ao cinema não são só colocadas nos filmes: com uma prática crítica e de programação tão longa quanto a da criação, os realizadores apresentam e discutem os filmes (seus e de outros) na mesma medida, com a mesma intensidade com que os fazem. A rubrica dos “realizadores convidados” na Cinemateca é às vezes acompanhada de uma carta branca, outras vezes não. Neste caso, não seria possível fazer um retrato do cinema de Regina e Saguenail se não existisse uma carta branca. As 20 sessões que compõem este programa incluem assim filmes de Regina e Saguenail e filmes de outros, todos eles escolhidos pelos próprios. É um programa que acompanha a visão que os dois têm sobre o cinema e sobre o lugar que os seus filmes ocupam por entre os filmes que veem e amam. É um programa feito por dois cinéfilos, cinefilia apaixonada que arde e é declarada (por citações, referências) dentro dos seus próprios filmes – onde se encontram os cineastas não programados nesta carta branca (Godard, Marker, Carné, Lehman, tantos outros).
Levamos assim até ao programa o questionamento que Regina e Saguenail mantêm vivo, em curso e em público, numa prática que recupera as sessões cineclubísticas mais intensas (movimento onde foram figuras importantes e ativas) – este programa inclui aliás CINECLUBE, que Saguenail fez em 2020, em pleno confinamento, onde integra e joga com esse espaço que continua a criar quotidianamente (um espaço de ver e discutir e por isso ver outra vez). Os realizadores vão apresentar e acompanhar todas as sessões do programa, que serão momentos preciosos para acompanhar esta prática ao vivo e discutir com eles as suas ideias de cinema e o ponto onde a sua prática crítica toca a da realização (uma não vive sem a outra, nos filmes que vamos ver). À exceção de MUDAS MUDANÇAS, MA’S SIN e OS MEUS MORTOS, todos os filmes de Regina Guimarães e Saguenail a exibir no Ciclo são primeiras apresentações na Cinemateca.
Resta dizer que esta retrospetiva é incompleta. Não só porque Regina Guimarães e Saguenail continuam, desenfreadamente, a cometer filmes, mas porque há facetas da sua prática ausentes neste programa. A mais óbvia, e mais importante, é o trabalho fílmico que têm desenvolvido em conjunto sobre o cinema português. São filmes onde exploram, experimentam, por dentro, com os filmes dos outros, onde fazem um meta-
-cinema, objetos incontornáveis na sua prática por conjugarem a tríade apontada acima (crítica, programação, realização). E são objetos preciosos e raros sobre a História do cinema português. Ficaram de fora desta carta branca onde Regina e Saguenail quiseram pôr em cena outros movimentos do seu trabalho – apontados nos títulos das sessões, que são também deles – mas são ótimas razões para continuar a visitar a simultaneamente monumental e pobre obra de Regina Guimarães e Saguenail.
 
 
03/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail

Sessão "Estranhamento"
duração total da projeção: 118 min
 
04/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail

Sessão "Fazer trabalhar o espectador"
duração total da projeção: 101 min | M/12
05/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail

Sessão "O ego e o mundo"
duração total da projeção: 140 min | M/12
06/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail

Sessão "A rose is a rose is a rose is a rose"
duração total da projeção: 126 min | M/12
14/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail

Sessão "O campo em campo"
duração total da projeção: 127 min | M/12
03/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail
Sessão "Estranhamento"
duração total da projeção: 118 min
legendados eletronicamente em português | M/12
Cm a presença de Regina Guimarães e Saguenail
LA FEMME DU PRISONNIER
de Saguenail
França, 1981 - 13 min

LE SOURIRE VERTICAL
de Robert Lapoujade
França, 1972 - 105 min

O programa abre com a mão. Filmes que apontam e jogam com o princípio manual e material da imagem cinematográfica, que trabalham com as imagens que as mãos criam (literalmente, no primeiro filme), que relembram as sombras que já previam o cinema. São ambos feitos em 16mm, material analógico que se inscreve, baixa, empobrece e dá textura e corpo à imagem que as mãos manuseiam e soltam numa espécie de caleidoscópio surreal, de vertigem. Em LA FEMME DU PRISIONNIER, um dos primeiros filmes de Saguenail, “uns poucos movimentos das mãos e dos dedos bastam para evocar tanto as grades da prisão como o livre voo do pássaro”. Em LE SOURIRE VERTICALE um homem é assaltado pelos seus “fantasmas mais secretos”. As sombras que deambulam pelas paredes, e as figuras humanas que circulam, magras, vestidas de loucos ou presos, no primeiro filme, dizem respeito a ambos. Nos detalhes (os gritos, o balbuciar, o policiamento num espaço apertado e circular, o gesto de partir aquilo que prende) e no seu movimento geral, os filmes rimam com JAIME (António Reis, 1974) que aparecerá mais à frente: esta sessão é um preâmbulo a essa, e instala o tom de todo o programa, justamente o do “estranhamento” (título que Regina e Saguenail deram a esta sessão). Filmes raros, exibidos pela primeira vez na Cinemateca. LE SOURIRE VERTICAL é exibido em cópia digital. Primeiras apresentações na Cinemateca.

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04/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail
Sessão "Fazer trabalhar o espectador"
duração total da projeção: 101 min | M/12
Com a presença de Regina Guimarães e Saguenail
MATADOURO
de Edgar Pêra
Portugal, 1992 - 8 min

L’APPARTEMENT DE LA RUE DE VAUGIRARD
de Christian Boltanski
França, 1973 - 4 min / legendado eletronicamente em português

GARE DU NORD
de Jean Rouch
França, 1965 - 16 min / legendado eletronicamente em português

ENSAIO PARA A MÃO ESQUERDA
de Ângelo de Sousa
Portugal, 1988 - 6 min

REVOLVER OU CHEVEUX BLANCS
de Saguenail
França, 1973-4 - 4 min / sem diálogos

DECRESCENTE
de Saguenail
Portugal, 2016 - 50 min

A sessão está sob a influência dos espaços. Espaços de diferentes naturezas, numa linha que circula entre o espaço ficcional, imaginário, e real, físico. Esse espaço vai-se rarefazendo ao longo da sessão: do espaço confinado do matadouro transmutado no ecrã de uma televisão pequena, ao espaço percorrido em plano sequência numa escala apertada no bairro da Gare du Nord, em Paris, ao espaço do reflexo mentiroso de REVOLVER... DECRESCENTE une as pontas soltas levantadas na restante sessão: cria um espaço imaginário sem recorrer a mais nada do que à ilusão que os próprios espaços reais criam (quando enquadrados de uma certa maneira). É, no final, e mais uma vez, também uma sessão sobre a natureza da imagem – que o raro filme de Ângelo de Sousa (artista com que Regina e Saguenail tiveram uma próxima colaboração) resume, num regresso do tema da mão (da 1ª sessão do programa).

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05/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail
Sessão "O ego e o mundo"
duração total da projeção: 140 min | M/12
legendados eletronicamente em português | M/12
Com a presença de Regina Guimarães e Saguenail
MOURIR UN PEU
de Saguenail
Portugal, 1981-85 - 91 min

MOURIR BEAUCOUP (entre Nova Iorque e Cabul)
de Saguenail
Portugal, 2004 - 49 min

MOURRIR UN PEU é a junção de três curtas-metragens: PROMISES TO KEEP, POUCA TERRA, GRISERIE. As duas primeiras chegaram a circular em separado, mas quando um festival disse que já era tempo de Saguenail passar às longas-metragens, ele juntou as três. É sinal da afirmação da curta-metragem como forma específica, um quase género que os dois realizadores defendem acerrimamente, na sua prática e no que dizem (e que este programa que construíram para a Cinemateca confirma). Diz Filipa César sobre o filme, no texto do catálogo lançado durante este programa: “MOURIR UN PEU é a mais atempadamente eloquente errância cinematográfica sobre o delírio da colonização, mitos, afetos e alfabetos, encantamentos, suas garras e guerras, e da consequente neurose do perpetrador de que sou herdeira e que impacta o universo coletivo da tugalândia continental.” MOURIR BEAUCOUP..., completa o díptico, mais de 20 anos depois, num regresso ao Porto onde tinha começado o delírio do primeiro. Saguenail reflete sobre a morte de si, numa cidade filmada enquanto ruína, extensão de um corpo que vacila e integra a possibilidade do seu próprio aniquilamento.

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06/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail
Sessão "A rose is a rose is a rose is a rose"
duração total da projeção: 126 min | M/12
Com a presença de Regina Guimarães e Saguenail
KYANK
“Vida”
de Artavazd Pelechian
Arménia, 1993 - 6 min / sem diálogos

AS VISÕES DA SANTA
de Regina Guimarães
Portugal, 1989 - 8 min

O RAPTO DA EUROPA
de Regina Guimarães
Portugal, 1996 - 7 min

ANTÓNIA
de Regina Guimarães, Saguenail
Portugal, 2007 - 9 min

FELICIDADE SIM
de Regina Guimarães, Saguenail
Portugal, 2004 - 15 min

ROSA TOUR
de Regina Guimarães
Portugal, 2022 - 68 min

SAUTE MA VILLE
de Chantal Akerman
Bélgica, 1968 - 13 min / sem diálogos

Entrada de Regina Guimarães no programa. A sessão abre com o lindíssimo VIDA, de Pelechian, que dá o tom para os filmes que se seguem, todos eles situados na inextricabilidade entre cinema e vivido: são todos sobre a beleza e a violência dessa ligação. Também os vídeos de Regina circulam por aí: ela filma a partir de si, do seu corpo, da sua casa, as pessoas e as coisas com que se depara, e junta-as, numa maneira muito própria (muito punk) de praticar a montagem (às vezes dentro do próprio plano). O ritmo com que cose as imagens tem uma espécie de contra-campo em SAUTE MA VILLE: a inquietação de Akerman à frente da câmara parece comentar a inquietação de Regina atrás dela (para além de que partilham o mesmo olhar ácido sobre a sua relação de mulheres com os afazeres da casa).

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14/06/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Realizadores Convidados: Regina Guimarães & Saguenail
Sessão "O campo em campo"
duração total da projeção: 127 min | M/12
Com a presença de Regina Guimarães e Saguenail
INDÍGENAS, FORASTEIROS E COLONOS (caderno da romaria a cavalo)
de Regina Guimarães
Portugal, 2023 - 18 min

TRABALHOS DE CANTO
de Regina Guimarães, Saguenail
Portugal, 2022 - 79 min

LECHE
de Naomi Uman
Estados Unidos, México, 1998 - 30 min
legendado eletronicamente em português

O título da sessão indica o tema mas esconde os interstícios: o “campo” desta sessão está longe de ser a paisagem homogénea que é normalmente idealizada a partir da cidade. A paisagem e o canto são cortados por conversas que falam da dureza do trabalho, as vozes perturbam a pureza do rural. No filme de Naomi Uman, noutro campo (o mexicano), os gestos mostram aquilo que nos outros filmes as vozes dizem.

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