CICLO
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal


Jean-Claude Biette viu-o como “um primo de Jean Eustache” por volta de 1974, quando delirou com FEMMES FEMMES, “filme-farol que, ao contrário de LA MAMAN ET LA PUTAIN, não foi reconhecido: tornou-se um clássico secreto”. Era proverbial, a originalidade disruptiva de Paul Vecchiali (1930-2023), um não alinhado que habitou o cinema à sua maneira, com a independência das condições de produção que fabricava e uma intransigente liberdade de abordagem, alimentada na cinefilia, numa reflexão sobre a História de França e questões sociais controversas, a sexualidade, as relações amorosas, a mortalidade da condição humana. Nos sessenta e dois anos e mais de cinquenta títulos da obra filmada (1961-2023), foi-se orientando pela “importância de coreografar o movimento dos corpos” e seguindo o axioma do que definia como uma “ética que é estética (na linha da frase de Godad, o travelling é uma questão de moral”. Insistiu na reinvenção, trabalhou no coração de géneros como o melodrama, o policial ou o fantástico, variando sobre a visão romântica, um olhar clínico, a melomania ou a atenção erótica. Proclamou imbricações do íntimo e do universal, políticas e poéticas. E uma única regra: “Não há regra!”
Fecunda a partir de LES PETITS DRAMES (título inédito de 1961, perdido num incêndio), e de LES RUSES DU DIABLE (primeira longa‑metragem existente, de 1965), trata-se de uma obra que conheceu os píncaros de FEMMES FEMMES (1974), tornado pequeno culto; a sensação do “filme pornográfico de autor” com CHANGE PAS DE MAIN (1975) ou do implacável LA MACHINE (1977), em que refletiu sobre as “máquinas” da justiça e mediática, a pedofilia e a pena de morte; a revisitação histórico-biográfica de EN HAUT DES MARCHES (1983); o atrevimento de ONCE MORE (1987), um dos primeiros filmes a tratar da devastação da epidemia da sida associada à homossexualidade; o excesso trágico e melodramático de CORPS A COEUR (1978) e ROSA LA ROSE, FILLE PUBLIQUE (1985); a série de “anti-dogmas” inaugurada com À VOT’BON COEUR (2003). A Cinemateca apresentou-a por altura da retrospetiva de 2017 com o Indielisboa, trazendo Paul Vecchiali ao contacto disponível com os espectadores em Lisboa. Na escrita como na realização e na interlocução, ferozmente singular, docemente singular.
Cinéfilo, cineasta, produtor, ator, também crítico, argumentista, distribuidor, autor de obra publicada como romancista, dramaturgo ou ensaísta inclassificável, Paul Vecchiali foi um caso à parte. Como produtor, iniciou-se nos Films du Gion, uma primeira companhia nomeada a partir de Mizoguchi que ficou ligada à estreia de Jean Eustache. Mais tarde, via France 3, envolveu-se na produção de JEANNE DIELMAN, 23, QUAI DU COMMERCE, 1080 BRUXELLES de Chantal Akerman. A grande aventura foi porém a companhia Diagonale, criada com Cécile Clairval em 1977, e formada em “clandestinidade” com uma trupe de cineastas, técnicos e atores que partilhavam equipamento e uma estrutura livre, trocavam de posições, iam circulando entre projetos e histórias, os filmes e a vida num capítulo ímpar da história do cinema francês dos anos 1970 e 80. Foi uma casa de produção e o lugar de uma utopia comunitária onde, além dos seus, Vecchiali produziu filmes de Jean‑Claude Biette (LA MACHINE e LE THÉÂTRE DES MATIÈRES foram o par de arranque), Jean‑Claude Guiguet, Marie‑Claude Treilhou, Noël Simsolo, Gérard Frot‑Coutaz, Claudine Bories. Para que os filmes existissem, sem deles retirar benefícios materialistas.
“A última escola importante do cinema francês pós Nouvelle Vague”, na formulação de Serge Bozon, foi, para Axelle Ropert, o epicentro de um cinema “feito por cinéfilos, amantes de música, cineastas ‘obscuros’ numa perspetiva social” que partilhavam “um sentido agudo das relações de classes, um gosto pela comoção lírica herdada de Pagnol e Grémillon, um afeto por actores excêntricos e luminosos (Hélène Surgère, Sonia Saviange, Jean-Christophe Bouvet), uma confiança no diálogo infindável, um amor pela canção popular dos anos 1930, uma aversão à fórmula corrente do guião, e uma fé infinita na mise-en-scène, que ‘tudo faz’”. Nos filmes da Diagonale – continua Ropert – “sabe bem conversar, cantar, amar, sofrer, ter casos bizarros, relacionamentos estranhos, secretos, e formar comunidades com regras esquisitas […]. Digamos que eram dissidentes por necessidade e reservados por natureza: uma vez que o sistema não os queria, trataram de inventar um sistema e um mundo paralelo, mas sem o gritarem aos sete ventos”. Tratava-se de fazer cinema na diagonal.
Esta retrospectiva bifurcado num núcleo final das obras de Paul Vecchiali realizadas na Dialectik e na Diacitrik, e num outro representativo da produção da Diagonale, prolonga a dedicada a Jean-Claude Biette em janeiro, “O teatro das matérias”. O raccord inclui quatro títulos de curta-metragem realizados por Biette na passagem dos anos 1960-70, além do segmento que integra o filme coletivo ARCHIPEL DES AMOURS. À exceção de MALADIE, LA MACHINE, SIMONE BARBÈS OU LA VIRTUE, BEAU TEMPS MAIS ORAGEUX EN FIN DE JOURNÉE, ARCHIPEL DES AMOURS, EN RACHÂCHANT e CÉZANNE (ambos a apresentar em cópias 35 mm, tal como CAUCHEMAR) e de CE QUE CHERCHE JACQUES LA SŒUR DU CADRE (a apresentar em 16 mm), os filmes são projetados em cópias digitais e primeiras apresentações na Cinemateca.
 
 
11/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal

Archipel Des Amours
de Jean-Claude Biette, Cécile Clairval, Jacques Davila, Michel Delahaye, Jacques Fresnais, Gérard Frot-Coutaz, Jean-Claude Guiguet, Marie-Claude Treilhou, Paul Vecchiali
França, 1983 - 99 min
 
12/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal

Rupture Tango | La Fille du Magicien
13/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal

Les Belles Manières
de Jean-Claude Guiguet
França, 1978 - 86 min
13/02/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal

Cauchemar
de Noël Simsolo
França, 1989 - 95 min
14/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal

Ecco Ho Letto | La Partenza | Ce Que Cherche Jacques | La Sœur du Cadre
11/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal
Archipel Des Amours
de Jean-Claude Biette, Cécile Clairval, Jacques Davila, Michel Delahaye, Jacques Fresnais, Gérard Frot-Coutaz, Jean-Claude Guiguet, Marie-Claude Treilhou, Paul Vecchiali
França, 1983 - 99 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O filme coletivo da Diagonale reúne um arquipélago de nove ilhas, ou segmentos, que flutuam à volta do motivo dos amores – PORNOSCOPIE, ENIGME, REMUE-MÉNAGE, SARA, PASSAGE À L’ACTE, LE GOÛTER DE JOSETTE, LA VISITEUSE, LOURDES, L’HIVER, MASCULINS SINGULIERS são os títulos singulares do projeto tomado na “diagonal” pelos cineastas. Na Cinemateca, passou uma primeira vez no Ciclo Jean-Claude Biette de 1992 e faz agora parte das rimas do programa com a retrospetiva Biette de janeiro.

A sessão repete no dia 24 às 19h30, na sala Luís de Pina.
12/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal
Rupture Tango | La Fille du Magicien
Diagonale
RUPTURE TANGO
de Jacques Gibert
com Jean-Christophe Bouvet, Aline Vigneau
França, 1980 – 7 min / legendado eletronicamente em português

LA FILLE DU MAGICIEN
de Claudine Bories
com Anouk Grinberg, Patrick Raynal, Jean-Paul Roussillon, Hélène Surgère, Jean-Pierre Sentier, Myriam Mézières
França, 1989 – 90 min / legendado eletronicamente em português

duração total da sessão: 97 min | M/12
A filmografia de curta-metragem da companhia Diagonale entre as décadas de 1970 e 90 reúne, a Jacques Gibert, os nomes de Noël Simsolo, Paul Vecchiali, Cécile Clairval, Gérard Frot-Coutaz, Straub e Huillet, Noël Alpi, Pierre Chousterman. RUPTURE TANGO é um desses títulos raros. Claudine Bories começou como atriz de teatro e fundou uma das primeiras salas de arte e ensaio nos subúrbios parisienses, Le Studio d’Aubrevilliers, em 1975. Foi nessa época que se iniciou na realização jogando nos registos do cinema documental e de ficção. LA FILLE DU MAGICIEN é produzido pela Diagonale nos anos em que Bories esteve próxima desse coletivo. A história é a de uma rapariga de vinte anos, filha de mãe britânica e pai mágico de profissão, que tem uma paixão pela música, sonha com o rock e vive um verão de amor com Bruno, um aviador que rouba joias.

A sessão repete no dia 19 às 19h00, na sala Luís de Pina.
 
13/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal
Les Belles Manières
de Jean-Claude Guiguet
com Hélène Surgère, Emmanuel Lemoine, Hervé Duhamel, Martine Simonet
França, 1978 - 86 min
legendado eletronicamente em português | M/14
Diagonale
Assistente de realização de FEMMES FEMMES e CHANGE PAS DE MAINS de Vecchiali, que aqui coassina a montagem com Franck Mathieu, Jean-Claude Guiguet foi colaborador de Jean-Claude Biette em LE THÉÂTRE DES MATIÈRES e LOIN DE MANHATTAN. Esta sua primeira longa-metragem conta a história de um rapaz que é contratado por uma mulher de cinquenta anos para servir as refeições ao filho que vive recluso num quarto. Contemplando questões associáveis a estratégias de poder, a história “não é um fait-divers curioso e não procura propor-se como uma fábula exemplar. Respeita a autonomia e a cor particular de cada personagem” (Jean-Claude Guiguet). “Guiguet fez filmes únicos nas suas desmedidas, nos cortes ousados que criam elipses inventivas e instigantes, nos enquadramentos soltos e quase simétricos. [… o] cuidado com o enquadramento relaciona-se com a sua admiração pela arte romântica, e pelo classicismo tardio.” (Sérgio Alpendre)
13/02/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal
Cauchemar
de Noël Simsolo
com Hélène Surgère, Béatrice Bruno, Pierre Clémenti, André Thorent
França, 1989 - 95 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Diagonale
É um dos filmes e a única longa-metragem “de fundo” de Noël Simsolo, mais conhecido como historiador de cinema, também escritor, pintor, produtor de rádio ou argumentista de Paul Vecchiali e Marco Ferreri e ator de Vecchiali, Biette, Chabrol, Téchiné, Skorecki ou Godard. O enredo concentra-se num bar onde uma mulher jovem e misteriosa substitui a pianista habitual, impressionando o público com o talento digno de uma intérprete famosa, desaparecida em estranhas circunstâncias. Na Diagonale, a produção de CAUCHEMAR teve atrito. “Não renego nada a experiência de CAUCHEMAR. Tive grandes problemas com Vecchiali, que era meu produtor e não tinha dinheiro. Mas havia pessoas maravilhosas […] e graças a elas [Pierre Clémenti, Antoine Bonfanti, Ramón F. Suarez] é exatamente o filme que quis fazer no contexto em que o fiz.” (Noël Simsolo)

A sessão repete no dia 22 às 19h30, na sala Luís de Pina.
14/02/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Paul Vecchiali, Fazer Cinema na Diagonal
Ecco Ho Letto | La Partenza | Ce Que Cherche Jacques | La Sœur du Cadre
Jean-Claude Biette – o Teatro das Matérias
ECCO HO LETTO
com Giuseppe Saltini, Isabel Ruth, Ninetto Davoli
Itália, 1966 – 14 min / legendado eletronicamente em português

LA PARTENZA
com Giuseppe Bertolucci, Gianluigi Calderone
Itália, 1968 – 12 min / legendado eletronicamente em português

CE QUE CHERCHE JACQUES
com Howard Vernon, Michèle Moretti
França, 1970 – 15 min / legendado eletronicamente em português

LA SŒUR DU CADRE
com Michèle Moretti, Benoît Jacquot, Aline Issermann, Douglas Earle, Jean-Marc Krempff, Jean-Marc Raynal
de Jean-Claude Biette
França, 1972 – 17 min / legendado eletronicamente em português

duração total da sessão: 58 min | M/12
Uma sessão para quatro raridades: quatro curtas-metragens de Jean-Claude Biette, realizadas em Itália e França antes da longa LE THÉÂTRE DES MATIÈRES, produzida pela Diagonale. Um rapaz recém-saído da univerSIDAde aborrece-se: é a descrição de ECOO HO LETTO, escrito por Biette e cuja realização os créditos outorgam a Adriano Aprà, que, negando tal facto em 2018, o atribuiu “inteiramente a Jean-Claude”. É o primeiro dos filmes subsistentes de Biette e um filme inicial da atriz portuguesa Isabel Ruth. Também uma ficção, a somar a dois títulos documentais hoje dados como perdidos (ATTILIO BERTOLUCCI e SANDRO PENNA), LA PARTENZA, “a partida”, integra o rol das primeiras experiências na realização de Biette nos quatro anos de exílio italiano, pós-fuga ao serviço militar obrigatório em França, de onde sai sem aviso no outono de 1965 e onde regressa em 1969. CE QUE CHERCHE JACQUES propõe uma aventura moral à volta da amizade e da pressão dos preconceitos. LA SŒUR DU CADRE é uma história de irmãos, de emprego, de desempregados.

A sessão repete no dia 28 às 19h30, na sala M. Félix Ribeiro.