CICLO
A Liberdade Pré-Código


Sexo, imoralidade, insurreição no cinema americano. Hollywood proibida. Quando os filmes eram sexy, cáusticos, complexos e muitíssimo divertidos. Regras feitas para serem não-cumpridas. Filmes sem escrúpulos e sensacionalistas ou sofisticados e adultos. São expressões contemporâneas de referência retrospetiva e falam de desassombro.
 
Trata-se do cinema de Hollywood. Da Hollywood pré-Código, a que a Cinemateca dedicou um primeiro Ciclo em 2006 e que tem ganhado visibilidade com a série de materiais resgatados aos arquivos e a consequente programação de filmes e ciclos temáticos, simultaneamente estimulando o estudo específico dessa era dos estúdios. Na história do cinema, que se firmava a Ocidente, na Califórnia, é uma época imediatamente seguinte à da passagem do mudo ao sonoro, com o advento do cinema falado (dos talkies), em 1927. Concentra-se entre 1930 e 1934, anos que assinalaram a implementação tentativa e, por fim, a obrigatoriedade de aplicação, em versão restritiva, do Motion Picture Production Code, mais conhecido como Código Hays. Quando o cinema de Hollywood era desbragado, solto, não-refreado no que tocava a sexo, álcool, drogas, crime, prostituição, miscigenação, representações de comportamentos e modos de vida que seriam banidos dos ecrãs por muitos e muitos anos.
A partir de 1934, o controlo interno dos estúdios aconteceu por via do Código que estabeleceu as regras consentidas pela indústria atendendo a conteúdos, e viabilidade comercial, em reação a pressões crescentes das elites religiosas e ideológicas em prol do respeito dos “princípios morais”, dos “bons costumes”. Assumindo a indústria do cinema de Hollywood uma vocação de entretenimento não aliável a perceções chocantes, terá sido uma forma de, preservando a autonomia, os estúdios neutralizarem a atividade das muitas comissões de censura locais e evitarem um controlo federal. Os primeiros acordos tendo em vista a auto-regulação foram anteriores aos anos 1920 – Thirteen Points, Formula, The Don’ts and Be Carefuls foram títulos de documentos publicados pelos produtores e distribuidores – e a nomeação de William H. Hays para a presidência da Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA) seguiria essa política, ligando o seu nome à censura em Hollywood.
“A multiplicação dos escândalos hollywoodianos e as ameaças anti-trust contra o oligopólio dos distribuidores mobilizavam a maior parte das intervenções do presidente da MPPDA [em 1922]. Hays define e impõe uma forma do ‘politicamente correto’ que se aproxima de uma ‘fábrica do contentamento’ (e do consentimento). O estudo da elaboração do Código de Produção dá a conhecer uma parte das suas atividades, nas quais se excedeu politicamente, mas revela também a amplitude da sua influência, que marcou decisivamente a indústria do cinema dos anos 1920 aos anos 1940.” Compilando as versões preparatórias e definitiva do Código, Le Code Hays de Francis Bordat e Frédéric Cavé (2023) propõe uma genealogia do Código e um curioso elogio a William Hays que desconstrói em parte a sua “má fama”, apontando à posição de cúmplice da comunidade de Hollywood e de mentor de uma “política da indecisão” assente em estratégias de comedimento que podiam expor os filmes “a explicações (e satisfações) múltiplas e por vezes contraditórias”, a uma ambiguidade que permite “uma transgressão  tolerável dos interditos. E fazer do cinema clássico uma arte que pode dizer tudo”.
Factualmente o intervalo de tempo da Hollywood pré-Código é contemporâneo de discussões à volta de censura e auto-censura face a acusações de imoralidade: um núcleo de filmes encarou possibilidades narrativas indiferentes a supostos limites sociais-culturais, deu existência a personagens bravias, sendo inventivo e experimentando um fôlego raro. Selvagens, perigosos, corajosos, divertidos, os filmes pré-Código atravessaram géneros e protagonistas. Mas ficaram associados às estrelas não cadentes Joan Blondell, Humphrey Bogart, James Cagney, Bette Davis, Marlene Dietrich, Cary Grant, Jean Harlow, Katharine Hepburn, Miriam Hopkins, Fredric March, os Marx, Edward G. Robinson, Ginger Rogers, Norma Shearer, Sylvia Sidney, Barbara Stanwyck, Spencer Tracy, Mae West, Loretta Young… ou Ruth Chatterton e Warren William, Theresa Harris e Anna May Wong… e até John Wayne (em BABY FACE).
Em 2024 na Cinemateca, “A liberdade pré-Código” propõe uma vintena de títulos produzidos e realizados em 1930-1933 que revisitam a elementar bravura de Hollywood nesses anos, dando primazia a filmes que não inibiram os bons-maus costumes das ou nas margens.  Numa espécie de coincidência feliz, vários deles têm a assinatura de William A. Wellman. O programa concentra-se em março, mas terá um posfácio em junho, quando poderão ser vistos PART TIME WIFE, de Leo McCarey (1930), e THE STORY OF TEMPLE DRAKE, de Stephen Roberts (1933), por disponibilidade das cópias 35 mm, provenientes dos EUA.
 
 
05/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Liberdade Pré-Código

She Done Him Wrong
Uma Loira para Três
de Lowell Sherman
Estados Unidos, 1933 - 65 min
 
06/03/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Liberdade Pré-Código

Female
de Michael Curtiz (William Dieterle e William Wellman, não creditados)
Estados Unidos, 1933 - 60 min
06/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Liberdade Pré-Código

Merrily We Go To Hell
Quando a Mulher se Opõe
de Dorothy Arzner
Estados Unidos, 1932 - 83 min
07/03/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Liberdade Pré-Código

Red-Headed Woman
A Mulher dos Cabelos Vermelhos
de Jack Conway
Estados Unidos, 1933 - 79 min
07/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Liberdade Pré-Código

Dinner at Eight
Jantar às 8
de George Cukor
Estados Unidos, 1933 - 110 min
05/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Liberdade Pré-Código
She Done Him Wrong
Uma Loira para Três
de Lowell Sherman
com Mae West, Cary Grant, Gilbert Roland, Noah Beery
Estados Unidos, 1933 - 65 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Mae West gives a ‘hot time’ to the nation” pregava o sensacional cartaz, com o rosto da atriz de olhos semicerrados, lábios vermelhos como o fundo da imagem. Supra-sumo do desbragamento hollywoodiano dos anos 1930, a atriz-cantora-argumentista-dramaturga era vista como um símbolo sexual, mestre em subentendidos, tiradas alusivas e espirituosas que perpassavam por falas como a que lança ao jovem Cary Grant em SHE DONE HIM WRONG: “Why don’t you come up sometime and see me?” Está nos diálogos celebérrimos deste filme essencial para se perceber o mito da hiperbólica Mae West. A partir da peça que a própria escreveu e interpretou na Broadway em 1928, Diamond Lil (cuja adaptação só foi autorizada sob a condição de ser omitida): na Nova Iorque de 1890, Lady Lou canta num saloon na Bowery e apaixona-se por um jovem idealista, estando a história recheada de reviravoltas, com tráfico e prostituição à mistura. Esta produção Paramount causou muitos calafrios aos puritanos dos costumes e levou o pré-Código aos seus limites. A apresentar em cópia digital.

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06/03/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Liberdade Pré-Código
Female
de Michael Curtiz (William Dieterle e William Wellman, não creditados)
com Ruth Chatterton, George Brent, Lois Wilson
Estados Unidos, 1933 - 60 min
legendado eletronicamente em português | M/12
O sexo, o poder e a perspetiva feminina são os ingredientes de FEMALE, em que o abuso e o assédio são outros dados de partida, tudo se estruturando na inversão dos papéis convencionais feminino-masculino: Allison, a personagem de Ruth Chatterton, é proprietária e gerente de uma fábrica de automóveis, herdada do pai, e tem uma relação peculiar com os empregados do sexo masculino que tem por hábito convidar para efémeros encontros privados. Até que Jim, um inventor, lhe troca as voltas ao recusar uma das suas propostas de horário pós-laboral. William Dieterle e William A. Wellman têm responsabilidade não creditada na realização de algumas cenas. “Foi alvo da reprovação dos sectores conservadores de Hollywood que consideraram ‘repugnantes as tendências sexuais da protagonista’ e não encontraram ‘nenhuma justificação’ para esta história. Estranho seria.” (Maria João Madeira) A apresentar em cópia digital.

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06/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Liberdade Pré-Código
Merrily We Go To Hell
Quando a Mulher se Opõe
de Dorothy Arzner
com Sylvia Sidney, Fredric March, Adrianne Allen, Richard “Skeets” Gallagher, Cary Grant
Estados Unidos, 1932 - 83 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Um filme da década de 1930 pré-Código realizado por Dorothy Arzner, cujo título vem de uma fala de Fredric March e que deu brado pela incorreção política, extensível às linhas do argumento em que há alcoolismo, romance, casamento, gravidez, adultério, abuso: em MERRILY WE GO TO HELL Sylvia Sidney é uma jovem rica que casa com um jornalista-dramaturgo alcoólico, a quem a dada altura propõe que mantenham “um casamento moderno” em que a infidelidade dele tenha o reverso da dela. A relação das personagens é turbulenta, o filme é espampanante. Então quase desconhecido, Cary Grant surge no papel da conquista mais sedutora de Sidney. Foi a última realização de Arzner na Paramount. Mostrado pela primeira vez na Cinemateca em dezembro de 2019 num “double bill” (com LES AMOUREUX SONT SEULS AUX MONDE de Henri Decoin), é apresentado em cópia digital.

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07/03/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Liberdade Pré-Código
Red-Headed Woman
A Mulher dos Cabelos Vermelhos
de Jack Conway
com Jean Harlow, Chester Morris, Lewis Stone, Leila Hyams, Una Merkel, Henry Stephenson, Charles Boyer
Estados Unidos, 1933 - 79 min
legendado eletronicamente em português | M/12
“Com que então os homens preferem as loiras? Ah.” O filme em que a estrela platinada dos anos 1930 Jean Harlow se transforma em ruiva parte do argumento adaptado de Anita Loos. A mulher de cabeleira ruiva é uma arrivista social com queda para seduzir homens que possam dar-lhe dinheiro e estatuto: é assim que casa com o patrão para quem trabalha como estenógrafa, se envolve com um industrial do carvão enquanto confraterniza com uma amiga espirituosa e um motorista atraente (interpretado por Charles Boyer, recém-chegado a Hollywood). O papel de Lil “Red” Andrews terá sido imaginado para Greta Garbo, e tanto Barbara Stanwyck como Clara Bow foram equacionadas, mas a personagem ficaria ligada à sexualidade desabrida da interpretação de Harlow. Foi um dos títulos que enfureceu os clubes moralistas e a Igreja católica que o apontaram como o falhanço do Código Hays pré-1934. Primeira apresentação na Cinemateca, em cópia digital.

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07/03/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Liberdade Pré-Código
Dinner at Eight
Jantar às 8
de George Cukor
com Marie Dressler, Jean Harlow, John Barrymore, Walter Berry, Billie Burke
Estados Unidos, 1933 - 110 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Baseado numa peça de sucesso ambientada na alta-roda nova-iorquina, o argumento é de Frances Marion e Herman J. Mankiewicz, que George Cukor filma convocando um grande elenco de luxo para um trabalho de luxo com os atores. Trata-se de uma história de dinheiro, com personagens que nasceram ricas e outras que estão dispostas a ficá-lo, a qualquer custo. Num papel de arrivista vulgar, Jean Harlow tem um dos seus maiores desempenhos, mas a personagem mais inesquecível e divertida é a da veterana Marie Dressler. “Há um tema que passa pela situação de quase todas as personagens e que se prende com o passado, com o tempo e as ilusões perdidas […] um daqueles momentos em que tudo vacila e em que as aparências e as essências são de novo recolocadas nos seus devidos lugares. É esse, no fundo, o trajecto das várias personagens.” (Luís Miguel Oliveira) Uma das primeiras obras-primas incontestadas de Cukor.

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