CICLO
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )


Finalmente, e após vários adiamentos (devido ao Covid e a outras vicissitudes), a Cinemateca Portuguesa leva a cabo um programa longamente acalentado desde a morte do realizador chileno Raúl Ruiz (1941-2011). Ruiz foi uma grande figura, insólita e original, na história do cinema. Nunca se posicionou como um mero “cineasta”, um contador de histórias, mas como um intelectual situado na esfera da alta cultura, não sem relação com alguma literatura latino-americana do século XX, em que a erudição pode ser transformada na fonte de elementos de ficção, a partir de especulações e jogos de hipóteses. É autor de uma obra vastíssima, com mais de cem títulos, marcada por uma erudição ao mesmo tempo ostensiva e lúdica. Esta obra costuma ser comparada a um labirinto, um espaço concebido para que as pessoas se percam. Quase todos os filmes que a compõem são, por sua vez, uma sucessão de corredores labirínticos e afastam-se de modo irredutível, porém tangencial, dos modos (re)conhecidos de fazer cinema. Desde os seus começos Ruiz recusou as estruturas narrativas cinematográficas tradicionais, que considerava demasiado rígidas, por serem organizadas à volta de um conflito central entre os protagonistas, “o que valoriza as personagens em detrimento da imagem”. Ao começar a fazer cinema, antes de completar vinte anos, a sua ideia era “contar histórias que não seguissem a regra do conflito”. No sistema narrativo clássico, baseado na ideia do conflito central, “o protagonista assume o comando da ação; no outro sistema, ele é levado pela ação”. Num texto tardio, O Cinema, arte da sombra, faz esta observação, que até certo ponto define o seu trabalho e a sua obra: “O cinema, esta arte da luz, existe. Mas só existe graças à sombra que lhe serve de suporte poético. É a sombra, ou melhor, a escuridão, que permite construir, um pouco como um quebra--cabeças, um edifício, que é um palácio mental ou um labirinto, no qual vive uma fera, o nosso duplo animal e esta fera olha-nos, espreita-nos e prepara-se para nos devorar”.
Raúl Ruiz nasceu em Puerto Montt e a sua família instalou-se em Santiago do Chile durante a sua adolescência. Entre os 15 e os 19 anos escreveu dezenas de peças teatrais, que provavelmente ecoavam o seu interesse pelo teatro contemporâneo de vanguarda – Beckett e Ionesco – e iniciou estudos de Direito e Teologia. O poeta Waldo Rojas, seu companheiro nestes anos de juventude, escreveria que naqueles anos “a nossa Santiago era um espaço geométrico, um labirinto percorrido pelas nossas obsessões ambulatórias, gastronómicas e alcoólicas, um sítio parcialmente imaginário e parcialmente real”. Entre 1960 e 1967 Ruiz encetou e deixou inacabadas duas curtas e uma longa-metragem. As suas duas primeiras longas-metragens, TRES TRISTES TIGRES (1968) e LA COLONIA PENAL (1970, baseada em Kafka), chamaram de imediato a atenção sobre o seu nome no Chile e em alguns círculos internacionais. Na sequência do golpe de estado militar de 11 de setembro de 1973 (o início da rodagem de um novo filme seu estava previsto para aquele dia…) exilou-se em França, onde começou uma segunda vida cinematográfica e onde realizou de imediato DIALOGUES D’ÉXILÉS, uma visão algo irónica dos exilados chilenos. Foi em França, em boa parte graças aos generosos subsídios públicos de instituições como o INA (Institut National de l’Audiovisuel), que este chileno, cujo nome passou a ser grafado Raoul, à francesa, se impôs na paisagem cinematográfica, na passagem dos anos 70 para os 80. O ponto de viragem da sua relação com a crítica e os espectadores franceses - e a partir de Paris, para o resto do mundo - deu-se com L’HYPOTHÈSE DU TABLEAU VOLÉ (1978), baseado num texto de Pierre Klossowsky, seguido pelos três filmes que para muitos espectadores definem e resumem o seu cinema: LE TERRITOIRE (1981), LES TROIS COURONNES DU MATELOT e LA VILLE DES PIRATES (ambos de 1983), filmes que também assinalam o início da relação de Ruiz com Portugal, onde foram rodados e coproduzidos por Paulo Branco (por causa dele Ruiz é o cineasta estrangeiro que, depois do advento do sonoro, mais filmou em Portugal). Nesses filmes Ruiz colaborou com grandes diretores de fotografia de diferentes gerações, como Henri Alekan, Sacha Vierny e Acácio de Almeida, artesãos da imagem e da luz que souberam dar forma aos objetos saídos da sua imaginação. Depois de ter alcançado a consagração em início dos anos 80, Ruiz continuou a atirar em todas as direções, trabalhando num ritmo intensíssimo, que só pode ser comparado ao de alguns cineastas que trabalhavam num sistema industrial, como Hollywood ou Hong Kong, com a diferença fundamental que ele trabalhava num sistema artesanal e autoral. O facto de ser considerado um cineasta quase experimental não o impediu de trabalhar com grandes vedetas como John Malkovich, Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Marcello Mastroianni e John Hurt. Também realizou diversos trabalhos de encomenda para a televisão francesa, “documentários de criação”, como se dizia então, sobre temas como a cartografia, os jogos de sociedade, jardins à inglesa e à francesa, paralelamente a uma enfiada de obras de ficção. Estas podem ser baseadas em argumentos originais (nos dois sentidos do termo) ou em textos preexistentes de escritores tão diferentes como Racine, Dostoievsky, Jean Giono e Robert Louis Stevenson. As obras mais celebradas do seu período final adaptam Proust (O TEMPO REENCONTRADO) e Camilo Castelo Branco (OS MISTÉRIOS DE LISBOA), provando mais uma vez o seu ecletismo - característica típica dos intelectuais sul-americanos - assim como a sua imaginação e o seu talento.
Aos que o acusavam de “retórica vazia”, Ruiz replicava com a frase de Góngora, ao ser acusado da mesma coisa pela Inquisição: “Mas eu trabalho com matérias nobres”. Devido à sua extensão, a obra de Raúl Ruiz é mal conhecida, à exceção dos seus grandes “monumentos”, como as adaptações de Proust e Camilo e dos filmes que o consagraram em início dos anos 80. Este ciclo permitirá aos espectadores da Cinemateca ter uma visão de conjunto deste vasto mundo cinematográfico, descobrir em que consiste exatamente esta obra e para isto é necessário deixar-se levar, deixar-se perder.
Não sendo integral dada a vastidão imensa da obra Ruiz e as suas muitas derivações (nomeadamente com várias incursões na produção para televisão), a presente retrospetiva é certamente uma das mais completas alguma vez feitas deste autor fundamental. Dada a dimensão do ciclo, quase cem filmes em cerca de 80 sessões, optámos por dividi-lo em três partes, sendo a segunda delas apresentada já em março e a terceira agendada para setembro.
Assim, este mês iremos exibir as chamadas obras póstumas (três filmes que Ruiz filmou no Chile e que não terminou em vida) e um conjunto de filmes que, de alguma maneira, estão diretamente relacionados com o nosso país, ou por terem sido cá rodados, ou por terem sido produzidos por Paulo Branco. A acompanhar as sessões iniciais desta primeira parte do Ciclo estarão presentes Valeria Sarmiento (companheira de vida e de trabalho de Raúl Ruiz, tendo sido montadora de toda a sua obra, além de realizadora em nome próprio) e Chamila Rodríguez (atriz em vários filmes da última fase da obra do realizador e também responsável enquanto produtora pela finalização de três dos seus filmes póstumos). O produtor Paulo Branco também marcará presença para uma conversa a fechar esta primeira parte do Ciclo para falar sobre a sua longa e frutífera colaboração com Ruiz em Portugal e em França na companhia de alguns dos atores Melvil Poupaud e Adriano Luz.
 
 
20/02/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )

Les Trois Couronnes du Matelot
de Raúl Ruiz
França, 1982 - 120 min
 
21/02/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )

Klimt
Klimt
de Raúl Ruiz
Áustria, França, Alemanha, Reino Unido, 2006 - 132 min
22/02/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )

Conversa com Paulo Branco, Melvil Poupaud e Adriano Luz
22/02/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )

Fado Majeur et Mineur
Fado Maior e Menor
de Raúl Ruiz
França, Portugal, 1995 - 115 min
23/02/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )

Klimt
Klimt
de Raúl Ruiz
Áustria, França, Alemanha, Reino Unido, 2006 - 132 min
20/02/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )
Les Trois Couronnes du Matelot
de Raúl Ruiz
com Jean-Bernard Guillard, Phillipe Deplanche, Nadège Clair
França, 1982 - 120 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Um caleidoscópio de referências culturais, que vão da banda desenhada de Milton Caniff a Moby Dick de Melville, passando por Coleridge, A Odisseia, Cervantes, Stevenson, Conrad, num estilo marcado pelo olhar de Orson Welles, contando uma “história imortal” que se ouve de porto em porto. “Ruiz, diversificando os pontos de vista mais ainda do que a focalização narrativa, desorganiza a perceção de uma unidade espacial que seria preciso reconstituir plano a plano à custa de múltiplas visões” (François Thomas, Positif). A exibir em cópia digital.

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21/02/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )
Klimt
Klimt
de Raúl Ruiz
com John Malkovich, Veronica Ferres, Stephen Dillane
Áustria, França, Alemanha, Reino Unido, 2006 - 132 min
legendado em português | M/12
Grande produção que retrata a vida do pintor Gustav Klimt, aqui interpretado por John Malkovich. Ruiz não gostava que o filme fosse encarado como um biopic. Segundo as suas palavras: “Trata-se de uma fantasia, ou, se preferirem, uma fantasmagoria, um fresco de personagens reais e imaginárias que giram em torno de um único ponto: o pintor Klimt”. A exuberância permanente do filme, que se manifesta ao nível das cores ou da coreografia da câmara, reenvia para um constante jogo de espelhos e para uma liberdade invulgar no cinema.

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22/02/2024, 18h30 | Sala Luís de Pina
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )
Conversa com Paulo Branco, Melvil Poupaud e Adriano Luz
Conversa, em francês (sem tradução) e português

Entrada livre mediante levantamento de bilhete trinta minutos antes do início da sessão
Tendo começado a produzir Raúl Ruiz no início dos anos 1980 com três filmes feitos de seguida (LE TERRITOIRE, LES TROIS COURONNES DU MATELOT e LA VILLE DES PIRATES), Paulo Branco marcou o início da especial relação de Ruiz com Portugal, a qual se prolongaria até ao final da sua vida e obra. Nesta conversa, o produtor português aborda aspetos de quase quatro décadas dessa colaboração muito próxima com o realizador chileno em conversa com Melvil Poupaud e Adriano Luz.
 
22/02/2024, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )
Fado Majeur et Mineur
Fado Maior e Menor
de Raúl Ruiz
com Jean-Luc Bideau, Melville Poupaud, Ana Padrão, Arielle Dombasle, Bulle Ogier, André Gomes, Mónica Calle, Margarida Marinho
França, Portugal, 1995 - 115 min
legendado em português | M/12
Pierre, um guia turístico de passagem por Portugal, sofre uma repentina perda de memória. Um casal de turistas vai ajudá-lo a regressar a casa. É aí que encontra Antoine, um jovem que Pierre não reconhece. Porém, Antoine convida-o para jantar, apesar de Pierre continuar sem conseguir recuperar a memória. Antoine conta-lhe que Léda, a mulher que amara, se tinha enforcado. Produzido por Paulo Branco, o filme foi rodado em Portugal. Primeira apresentação na Cinemateca.

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23/02/2024, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Raúl Ruiz – A Imagem Estilhaçada ( Parte I )
Klimt
Klimt
de Raúl Ruiz
com John Malkovich, Veronica Ferres, Stephen Dillane
Áustria, França, Alemanha, Reino Unido, 2006 - 132 min
legendado em português | M/12
Grande produção que retrata a vida do pintor Gustav Klimt, aqui interpretado por John Malkovich. Ruiz não gostava que o filme fosse encarado como um biopic. Segundo as suas palavras: “Trata-se de uma fantasia, ou, se preferirem, uma fantasmagoria, um fresco de personagens reais e imaginárias que giram em torno de um único ponto: o pintor Klimt”. A exuberância permanente do filme, que se manifesta ao nível das cores ou da coreografia da câmara, reenvia para um constante jogo de espelhos e para uma liberdade invulgar no cinema.

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