CICLO
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Guiné-Bissau


Na continuação do Ciclo iniciado em abril com Moçambique, “Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado” será em maio dedicado ao cinema da Guiné-Bissau, abarcando um período de quase 60 anos, desde a luta anti-colonial até ao presente (e na qual se irão incluir, também, os cineastas guineenses da diáspora e os realizadores portugueses que aí realizaram obras relevantes). Convidada a co-programar com a Cinemateca as três partes deste programa (depois de Moçambique e da Guiné, Angola fechará em novembro este panorama das cinematografias saídas das independências africanas, a investigadora Maria do Carmo Piçarra assina o texto que se segue de apresentação do Ciclo bem como as notas sobre cada uma das sessões.
 
“Se o projeto de cinema moçambicano é referencial em África, talvez nenhum líder dos movimentos independentistas tenha tido logo a perceção da potencialidade do uso do cinema como 'arma' de libertação como teve o líder guineense Amílcar Cabral.
O uso revolucionário do filme foi fundamental tanto para contrariar a retórica lusotropicalista da ditadura portuguesa, que imputou as revoltas surgidas a 'terroristas comunistas estrangeiros', como para revelar ao mundo a luta em curso.
Pouco mais de um ano após o início da guerra de libertação, em janeiro de 1963, Amílcar Cabral aceitou a oferta do francês Mario Marret para mostrar a luta anticolonial encetada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). O resistente antinazi é o primeiro estrangeiro a filmar nas zonas libertadas, o que faz com LALA QUEMA (1964) e com NOSSA TERRA (1966). Colabora ainda com o italiano Piero Nelli na realização de LABANTA NEGRO! (1966), premiado no Festival de Cinema de Veneza. Integrando-se no internacionalismo cinematográfico, materializando o que se pretendeu ser um Terceiro Cinema, descolonizador e influenciado pelo neorrealismo italiano, foram os primeiros filmes feitos por estrangeiros. Alinharam-se com os objetivos da conferência Tricontinental, realizada em Havana em janeiro de 1966, na qual Cabral foi participante destacado. Certamente decorreu da ida a Cuba a decisão de enviar Flora Gomes, Sana Na N’Hada, Josefina Crato e José Bolama Cobumba para se formarem no Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), o que sucedeu de 1967 a 1972. Serão os pilares da criação de um cinema de Estado na Guiné-Bissau.
Do estreitamento de relações com Cuba resulta também a ida de José Massip ao território para filmar a organização do PAIGC e o ataque ao exército português em Madina, no Boé. Entretanto, jornalistas e realizadores estrangeiros acorrem à Guiné-Bissau, para documentar o nascimento da nação, como sucede com John Sheppard (A GROUP OF TERRORISTS ATTACKED, 1968), Tobias Engel,
René Lefort e Gilbert Igel (NO PINCHA!, 1970), e com Lennart Malmer e Ingela Romare (EN NATIONS FÖDELSE, 1973).
Os jovens guineenses formados em cinema reintegram-se na luta em janeiro de 1972, com Santiago Álvarez como referência, e passam a filmar a diplomacia e iniciativas políticas do PAIGC no exílio, no Senegal, e o quotidiano nas zonas libertadas. Porém, além da insuficiência de película, a inexistência e a falta de acesso a laboratórios limita a circulação – e a sobrevivência – das imagens filmadas, as quais têm que ser reveladas em países aliados, resultando em extravios irreparáveis.
Quando Cabral é assassinado, em 1973, antes da proclamação unilateral da independência e não obstante a falta de financiamento à produção, há condições humanas para lançar o cinema de Estado, embora haja dependência da solidariedade internacionalista para obter equipamentos de filmagem e revelar película. Responsável pela cultura após a independência, Mário Pinto de Andrade, um dos fundadores do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), cria o Instituto Nacional de Cinema (INC) em 1978 – presidido por N’Hada a partir de 1979. Quando convida Chris Marker – que, na rodagem de SANS SOLEIL, se cruza com Sarah Maldoror quando esta filma o Carnaval, a convite do INC – para vir à Guiné-Bissau, O REGRESSO DE AMÍLCAR e o quase desconhecido RECONSTRUÇÃO, EDUCAÇÃO, reencontrado em 2023 no Archivio Audiovisivo Del Movimento Operaio e Democratico, são os únicos filmes do INC terminados. A inventariação e digitalização do espólio fílmico do INC no âmbito do projeto LUTA CA CABA INDA, orientado por Filipa César, revelam e potenciam, hoje, o conhecimento e circulação de fragmentos retratando a constituição do país.
A estreia de Flora Gomes na ficção, MORTU NEGA, em 1988, é paralela à demissão de N’Hada e a suspensão da atividade do INC, por falta de recursos. Será com financiamento estrangeiro que Sana se estreia na ficção, com XIME (1994), e Flora Gomes se afirma internacionalmente, com obras como OS OLHOS AZUIS DE YONTA (1992) e PO DI SANGUI (1998). Só em 2003 o INC foi reativado, rebatizado como Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual. Hoje, emprega realizadores como Rui Manuel Costa, que vem filmando curtas-metragens documentais, e apoia obras como a de Nilda Nangana, UM QUADRO COM HISTÓRIAS (2021).
Simultaneamente, na diáspora, e sobretudo em Portugal, onde tem feito formação nas escolas de cinema, afirma-se uma geração que nunca fez cinema de Estado, e que usa a curta-metragem ficcional para problematizar a memória coletiva ou para, na primeira pessoa, abordar questões sociais, de integração, de género e raciais. Entre os realizadores afrodescendentes ou de origem guineense, que filmaram na Guiné, ou que retratam as comunidades guineenses na diáspora, tem-se destacado Silas Tiny, de origem são-tomense, que se estreou com a longa-metragem documental BAFATÁ FILME CLUBE (2012), a realizadora de SI DESTINU (2015), Vanessa Fernandes, e Falcão Nhaga, notabilizado com o filme MISTIDA (2022), protagonizado por Welket Bungué, ator com projeção internacional e realizador de obras como ARRIAGA (2019).”
(Maria do Carmo Piçarra)
 
 
27/05/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Guiné-Bissau

Nome
de Sana Na N’Hada
Guiné-Bissau, França, Portugal, Angola, 2023 - 112 min
 
27/05/2024, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Do Cinema de Estado ao Cinema Fora do Estado: Guiné-Bissau
Nome
de Sana Na N’Hada
com Marcelini António Ingira, Binete Undonque
Guiné-Bissau, França, Portugal, Angola, 2023 - 112 min
legendado em português e eletronicamente em inglêsinglês l M/12
O filme está também programado numa sessão do Ciclo “A Cinemateca com o IndieLisboa”

Com a presença de Sana Na N’Hada
Na sua terceira longa-metragem, estreada na mostra ACID, à margem do Festival de cinema de Cannes em maio de 2023, Sana Na N’Hada revisita a guerra pela independência da Guiné-Bissau articulando imagens ficcionais, belamente fotografadas, com outras do arquivo constituído por imagens realizadas pelos jovens guineenses enviados, por Amílcar Cabral, para estudar cinema em Cuba, entre 1968 e 1973. Se as imagens usadas testemunham a degradação da película, num efeito impressionante como evocação do projeto de cinema – e da nação – guineense, encontram, também por isso, ressonância no enredo do filme. Em 1969 o jovem Nome deixa a sua aldeia para juntar-se aos guerrilheiros no maquis. Regressa depois como herói, mas alegria vai cedendo à amargura e à descrença. Primeira apresentação na Cinemateca.

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