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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 14/12/2023
Textos & Imagens 62
Textos & Imagens 62
O termo “estruturalismo” é utilizado de diferentes modos e diferentes graus de precisão – entendendo-se “precisão” como um processo analítico de densificação – para referir um determinado número de actividades críticas que determinam a cultura contemporânea. Dito de outro modo, e de uma forma mais simples, o estruturalismo investiga as inter-relações de elementos pertencentes a construções dadas: sejam frases, obras de arte ou formas culturais. Nesse sentido, os estruturalistas procuraram determinar os modos através dos quais as manifestações superficiais de fenómenos tais como o discurso, o vestuário e modalidades de parentesco se relacionam com padrões alargados de comportamentos linguísticos, psicológicos ou sociais. Assim, o impulso é simultaneamente horizontal – descrição dos fenómenos tais como eles se manifestam e existem no tempo e no espaço – e vertical – mostrando como esses fenómenos coalescem com outros elementos em sistemas inter-relacionados. Esta referência e caracterização sumaríssimas da “escola” estruturalista impõe-se, ou antepõe-se, à qualificação de Noël Burch como um pensador pertencente a essa tendência, visto que o estudo que efectua das operações cinematográficas e da inter-relação de elementos fílmicos pode ser visto como contraparte de teorias desenvolvidas por pensadores como Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Lacan ou Claude Lévi-Strauss, para só citar alguns dos mais proeminentes. Antes de nos debruçarmos sobre a sua obra mais influente – “Praxis do Cinema” (1) – convém colocar a seguinte questão: qual a pertinência hoje de uma teoria que tinha como fundamento uma síntese de semiótica, marxismo e psicanálise, surgida nos anos 70 do século passado e que nunca deixou de ser objecto de intensa controvérsia e de polémicas que raiaram, em determinados momentos, o desencadear de uma guerra civil entre os meios pensantes ? Responder a essa questão, se resposta existe, implica em primeiro lugar, definir o que é uma teoria cinematográfica em sentido lato ou, pelo menos, definir o seu objecto, desígnio e fronteiras, mesmo correndo o risco de deixar de fora todas as suas potencialidades. Assim, pomos de lado as variações e derivas contemporâneas da teoria cinematográfica (algumas das quais são tão polémicas e controversas hoje como o estruturalismo em geral e o estruturalismo aplicado ao cinema em particular o foi no seu tempo), e ensaiamos uma tentativa de definição muito limitada, propositadamente limitada para que nela se enquadre facilmente o pensamento de Burch. Nesse sentido, diríamos que uma teoria cinematográfica procura, em primeiro lugar, dar resposta a questões genéricas, constituindo-se como um sistema denso e intrincado de proposições e teses que procuram explicar a natureza geral de todos os filmes – os seus materiais, características determinantes, tipos de inter-acção com as audiências, relacionamento com o mundo real, etc. Idealmente, uma teoria cinematográfica não se refere ao significado concreto de nenhum filme em particular, antes procurando descobrir que mecanismos e processos de todos os níveis permitem que todos os filmes produzam significado. Destas considerações, e de outras que seria possível tecer em torno de uma definição mais elaborada de teoria cinematográfica, facilmente se depreende que nenhum labor teórico se torna inactual ou fica desapossado da sua validação como paradigma, antes se actualizando permanentemente e gerando novas problematizações. Não cabendo aqui uma exploração de todas as possíveis filiações da obra de Burch em sistemas teórico-conceptuais hodiernos, sob pena de perdermos de vista o objecto concreto de que nos ocupamos, sempre diremos que encontramos traços do pensamento do autor em muita da teorização cinematográfica contemporânea, se não no método, pelo menos no que concerne a princípios básicos de uma série de problemas pertinentes para a questão de saber como se constitui o objecto-filme.
Antes de tudo, convém referir que os textos aqui reunidos foram inicialmente publicados na revista “Cahiers du Cinéma” como artigos singulares e posteriormente compilados e organizados em quatro grandes blocos temáticos – Elementos de base, Dialécticas, Elementos perturbadores e Reflexões sobre o tema, a que se junta uma Conclusão na qual o autor comenta a forma como os seus artigos foram acolhidos (e muitas vezes ferozmente criticados) pelos leitores da revista e as previsões sobre o futuro cinematográfico(2) –, centrando-se a análise nas primeiras manifestações cinematográficas: é nos modos de representação primitivos que encontra a essência da praxis cinematográfica. Talvez não seja abusivo afirmar que as suas conclusões sobre as relações entre os tempos e os planos, a sua visão do espaço fílmico e sobretudo o modo como teoriza as linguagens e os estilos são, ainda hoje, absolutamente fundamentais para todos aqueles que, a partir de qualquer ponto de observação em que se coloquem, pretendam abordar e compreender a estrutura da criação cinematográfica. A palavra “estrutura” é particularmente relevante, como veremos adiante. Mas antes ouçamos o que Francesco Casetti nos diz sobre esta obra de Noël Burch:

(1) Praxis do Cinema. Lisboa, Editorial Estampa, 1973.
(2) A esse propósito, é irresistível transcrever a seguinte declaração:
“Reparar-se-á, que a despeito do nosso desejo de objectividade no campo da análise das obras, neste outro plano só podemos ser claramente parciais, já que estamos persuadidos de que o cinema é a única arte a ter um futuro imediato, e a única para a qual um progresso a vir é desde já previsível, ou, pelo menos, preconizável, em termos de evolução interna da “linguagem” e das formas cinematográficas…domínio que cremos de primeira importância na gestão de uma arte.” p. 203.
O objectivo declarado de “Praxis do Cinema” (Burch 1969) é colocar sob os holofotes os critérios de composição de um filme: visa observar de que modo os meios expressivos à disposição são utilizados e combinados. Mas a um tal objectivo rapidamente se sobrepõe um outro: mais do que por momentos de acordo entre os elementos de base, Burch está fascinado pelos casos em que se manifestam tensões, confrontos, desequilíbrios; mais do que uma composição funcional e neutra (uma espécie de grau zero da escrita cinematográfica) urge-lhe examinar as dialéticas que atravessam o filme.(3)
 
Justamente. Aquilo que ressalta da estrutura da obra é uma progressão que se inicia na inventariação das numerosas dialéticas simples que é possível descortinar na feitura deste ou daquele filme e se completa na análise de estruturas mais complexas que são obtidas pela combinação dessas dialéticas simples. Obviamente, Burch estatui como certeza absoluta que todo e qualquer filme contém essas “dialéticas simples” (que são repertoriadas de um modo quase exaustivo e expostas a partir de um modelo pedagógico de que nunca abdica, indicando que, sendo ele mesmo cineasta e técnico, se dirige a outros cineastas, esperando que o alcance das suas reflexões seja por eles compreendido antes de todos os outros). Essa vocação, digamos assim, didática, materializa-se em diversas vertentes práticas que indicam a forma de fazer cinema (a praxis do cinema)(4), mesmo que não seja possível elidir uma componente fortemente teórica e abstracta, mitigada pelos exemplos que recolhe em filmes como “Rope” de Alfred Hitchcock (o suspense), a força em “La Terra Trema” de Luchino Visconti, o uso da linguagem cinematográfica em “Citizen Kane” de Orson Welles, ou a atmosfera em “M” de Fritz Lang, ou ainda em “Chikamatsu Monogatari” (Os Amantes Crucificados) de Kenji Mizoguchi ou em “Kakushi-toride No San-Akunin” (A Fortaleza Escondida) de Akira Kurosawa, no que concerne à utilização da música.
E é justamente neste universo de obras que a obra adquire todo o seu alcance; Burch escolhe, seleciona, elege as obras que, mais do que demonstrarem as suas asserções sobre estruturas e relações dialéticas entre estruturas, constituem aquilo que denomina como a “linha culminante” (retomando uma expressão cunhada por Pierre Boulez) da história do cinema. De resto, o sentido histórico, ou historicista, é aqui levado às últimas consequências: Burch vê na progressão das obras que escolheu – e cuja escolha é já uma indicação segura de uma longa filiação de descobertas e experiências – a justificação mesma de toda a sua elaboração teorética, ou seja, no momento em que escreve o cinema atinge um estádio da sua evolução em que toma posse dos seus meios expressivos, uma interpretação que deriva e se sustenta na seguinte declaração:
E isto porque pensamos que o cinema está ainda a nascer para si mesmo, que se não falarmos do extraordinário impulso a que os anos vinte assistiram, julgado em plena força quer pelo aparecimento do sonoro e as suas consequências nos países capitalistas quer pelo advento das tiranias estalinista e nazi, o cinema só de há quinze anos a esta parte afirma a sua inteira autonomia face às outras artes… e se eleva mesmo acima delas, por uma capacidade de desenvolvimento hoje absolutamente únicos [p. 203].
Esta afirmação atinge a sua máxima intelecção quando ligada à declaração anteriormente citada, em que afirmava que o cinema era a única forma artística a ter “um futuro imediato”, devido a uma lógica inabalável: nessa altura, Burch acreditava que a evolução das formas e da linguagem cinematográficas era previsível e, nesse sentido, objectivável, condição essencial não só para se tornar objecto de análise estrutural, como também para a afirmação do seu potencial estético. Desse modo, este estudo dos princípios teóricos e estéticos do cinema, que se desenvolve através da abordagem da sua “praxis”, culmina numa das mais assertivas proclamações do valor estético do cinema face às outras formas de expressão artística, tendo ainda o mérito, quanto a nós inequívoco, de acrescentar uma outra dimensão à teoria cinematográfica; de facto, embora a tradição filosófica de compreender as teorias em termos de ontologia, epistemologia e estética se tenha revelado extremamente útil para o estudo da teoria fílmica clássica, faltava ainda essa outra dimensão que Burch acrescenta: a capacidade de falar em termos gerais de objectos concretos sem cair na abstração e sem se enredar em confusões terminológicas paralisantes.
 
Arnaldo Mesquita
 
Noël Burch, Praxis du cinéma. Paris, Gallimard, 1969 (v. original), Praxis do Cinema. Lisboa, Editorial Estampa, 1973 (trad. Portuguesa: Nuno Júdice, Cabral Martins).
Tipologia documental: livro
Cota: 62

(3) CASETTI, Francesco, Teorie del Cinema 1945-1990. Milano, Studi Bompiano, 1994, p. 328 [disponível para consulta na Biblioteca].
(4) O que nos interessa não é sonhar com o cinema em frente de um écran pintalgado a technicolor, mas sim, por um lado, fazer o cinema, e por outro, observá-lo como nós o fazemos, isto é, enquanto realidade sensível Somos “pela imanência, contra a transcendência”. [p. 202]