As idiossincrasias e vicissitudes do panorama editorial português determinaram que a única obra de Michel Chion traduzida na nossa língua seja este “Audiovisão”. Para trás, ficaram outras obras tão importantes como esta. A título exemplificativo: “La Musique au Cinéma”, “Le Son”, “L’Écrit au Cinéma”, etc.
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Menos mal, já que esta obra se pode considerar nuclear no conjunto da produção do autor, já que é enunciada e analisada uma tese central e estruturante do seu pensamento. Digamos que é ume tese complexa e multifacetada, embora Chion consiga elucidá-la com rigor e precisão – e até com um certo tom pedagógico – de modo a resultar clara e extraordinariamente fecunda. Parecendo óbvia a afirmação de que os filmes (e, já agora, os produtos televisivos e os media audiovisuais em geral) não se compõem apenas de imagens, antes se estruturando em torno de uma totalidade perceptiva específica aberta também aos sons, Chion propõe, para essa totalidade, o conceito de “audiovisão”, rejeitando uma perspectiva isolada de sons e imagens que parece ser a tónica dominante quando nos referimos à experiência cinematográfica (e audiovisual no sentido lato). Precisamente aquilo que o autor pretende demonstrar é que dimensão visual e aural se influenciam e transformam mutuamente. Consequentemente, o autor considera que a relação entre essas duas dimensões resulta de um “contrato”, estando nesse caso no pólo oposto a uma relação natural e pré-estabelecida. Nesse sentido, o conceito de “contrato”, aplicado a numerosas análises (e correspondentemente forjando um método de análise) aponta para a impossibilidade da separação de imagens e sons e para a importância operativa de considerar a combinação entre ambos como a capacidade de originarem um novo e específico objecto. Para tanto, contribui decisivamente um outro conceito, que Chion aplica sempre ao longo da sua explanação: o de “valor acrescentado”. Ouçamo-lo:
«Por valor acrescentado, designamos o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão decorre “naturalmente” daquilo que vemos e que já está contida apenas na imagem. E até dar a impressão, eminentemente injusta, de que o som é inútil e de que reforça um sentido que, na verdade, ele dá e cria, seja por inteiro, seja pela sua própria diferença com aquilo que se vê.
Este fenómeno de valor acrescentado funciona, sobretudo, no âmbito do sincronismo som/imagem, pelo princípio da
síncrese, que permite estabelecer uma relação imediata e necessária entre qualquer coisa que se vê e qualquer coisa que se ouve.» (p. 12)
Obviamente, o valor acrescentado tende para a reciprocidade: se o ouvido modifica o visto (e o autor tende a proliferar os exemplos desta circunstância, fornecendo casos específicos), o contrário também é verdadeiro:
«A imagem faz ouvir o som de uma maneira diversa da que seria se este ecoasse na escuridão.» (p. 22)
Chion pretende assim afirmar que o contexto em que imagem e som se relacionam afecta a nossa percepção e que, necessariamente, no cinema, o sincronismo tem a primazia sobre o realismo acústico. O valor acrescentado torna-se, acima de tudo, um poderoso instrumento de modificação do conteúdo das imagens e influenciando decisivamente a experiência perceptiva.
[1] Infelizmente, não é caso único: de David Bordwell, um dos mais importantes pensadores e analistas do cinema da contemporaneidade, só foi traduzida a obra “A Arte do Cinema: Uma Introdução”, em co-autoria com Kristin Thompson, numa tradução brasileira (cf. Textos & Imagens 54).