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Assunto: Gestos & Fragmentos
Data: 03/12/2021
Textos & Imagens 59
Textos & Imagens 59
As idiossincrasias e vicissitudes do panorama editorial português determinaram que a única obra de Michel Chion traduzida na nossa língua seja este “Audiovisão”. Para trás, ficaram outras obras tão importantes como esta. A título exemplificativo: “La Musique au Cinéma”, “Le Son”, “L’Écrit au Cinéma”, etc.[1]
Menos mal, já que esta obra se pode considerar nuclear no conjunto da produção do autor, já que é enunciada e analisada uma tese central e estruturante do seu pensamento. Digamos que é ume tese complexa e multifacetada, embora Chion consiga elucidá-la com rigor e precisão – e até com um certo tom pedagógico – de modo a resultar clara e extraordinariamente fecunda. Parecendo óbvia a afirmação de que os filmes (e, já agora, os produtos televisivos e os media audiovisuais em geral) não se compõem apenas de imagens, antes se estruturando em torno de uma totalidade perceptiva específica aberta também aos sons, Chion propõe, para essa totalidade, o conceito de “audiovisão”, rejeitando uma perspectiva isolada de sons e imagens que parece ser a tónica dominante quando nos referimos à experiência cinematográfica (e audiovisual no sentido lato). Precisamente aquilo que o autor pretende demonstrar é que dimensão visual e aural se influenciam e transformam mutuamente. Consequentemente, o autor considera que a relação entre essas duas dimensões resulta de um “contrato”, estando nesse caso no pólo oposto a uma relação natural e pré-estabelecida. Nesse sentido, o conceito de “contrato”, aplicado a numerosas análises (e correspondentemente forjando um método de análise) aponta para a impossibilidade da separação de imagens e sons e para a importância operativa de considerar a combinação entre ambos como a capacidade de originarem um novo e específico objecto. Para tanto, contribui decisivamente um outro conceito, que Chion aplica sempre ao longo da sua explanação: o de “valor acrescentado”. Ouçamo-lo:
«Por valor acrescentado, designamos o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão decorre “naturalmente” daquilo que vemos e que já está contida apenas na imagem. E até dar a impressão, eminentemente injusta, de que o som é inútil e de que reforça um sentido que, na verdade, ele dá e cria, seja por inteiro, seja pela sua própria diferença com aquilo que se vê.
Este fenómeno de valor acrescentado funciona, sobretudo, no âmbito do sincronismo som/imagem, pelo princípio da síncrese, que permite estabelecer uma relação imediata e necessária entre qualquer coisa que se vê e qualquer coisa que se ouve.» (p. 12)
Obviamente, o valor acrescentado tende para a reciprocidade: se o ouvido modifica o visto (e o autor tende a proliferar os exemplos desta circunstância, fornecendo casos específicos), o contrário também é verdadeiro:
«A imagem faz ouvir o som de uma maneira diversa da que seria se este ecoasse na escuridão.» (p. 22)
Chion pretende assim afirmar que o contexto em que imagem e som se relacionam afecta a nossa percepção e que, necessariamente, no cinema, o sincronismo tem a primazia sobre o realismo acústico. O valor acrescentado torna-se, acima de tudo, um poderoso instrumento de modificação do conteúdo das imagens e influenciando decisivamente a experiência perceptiva.
 
[1] Infelizmente, não é caso único: de David Bordwell, um dos mais importantes pensadores e analistas do cinema da contemporaneidade, só foi traduzida a obra “A Arte do Cinema: Uma Introdução”, em co-autoria com Kristin Thompson, numa tradução brasileira (cf. Textos & Imagens 54).
O referido princípio da primazia do sincronismo sobre o realismo acústico é um princípio basilar e dá origem a uma constelação semântica e conceptual muito fecunda e iridescente, como atrás ficou dito. Um dos conceitos que resulta dessa teoria é o de «ponto de sincronização», que Chion caracteriza genericamente como: «um momento ímpar de encontro síncrono entre um momento sonoro e um momento visual» (p. 52) e que reputa como profundamente ancorado nos nossos hábitos perceptivos. Tal conclusão tem, na nossa perspectiva, um grande alcance; significa uma capacidade muito poderosa de combinar dois regimes perspectivos distintos numa só unidade, ultrapassando assim uma “falha”, digamos assim, apelando a uma operação que, para além de operar a referida união, não deixa de acentuar a disparidade fundamental que está na origem dos fenómenos visual e acústico.
Neste ponto, Chion introduz o conceito de “síncrese”: «a sutura irresistível e espontânea que se produz entre um fenómeno sonoro e um fenómeno visual, particularmente quando ocorrem simultaneamente, independentemente de toda a lógica racional.» (p. 55). É evidente que Chion necessita de afirmar que tal se verifica a um nível intuitivo e instintivo, originando a percepção de um fundo comum de sons e imagens. Este efeito é comentado através de exemplos pregnantes como, por exemplo, os hilariantes sons da porta em “As Férias do Sr. Hulot” de Jacques Tati e o modo como Davd Lynch deles se serve para construir um universo misterioso (os borborigmos do bébé em “Eraserhead”).
Tornar-se-ia fastidioso enumerar aqui todos os desenvolvimentos da tese enunciada, até porque são muitos e complexos, ramificando-se e enriquecendo-se constantemente. Interessa-nos reter, sublinhando, que toda a argumentação se desenvolve em torno dos três eixos referidos: o contrato audiovisual; a noção de valor acrescentado e a síncrese, suficientes para dar conta de um aparelho conceptual que se expande e movimenta no sentido da actualização das potencialidades de uma atitude perceptiva específica: a audiovisão.
Podemos também ensaiar uma avaliação do alcance desta obra, bem como das vias que abre para outras explorações e abordagens: em primeiro lugar, o apelo a um resituar do cinema na história do teatro, do bailado, pantomima, rádio e ópera, já que uma história do som no cinema separada da história do som nas artes audiovisuais resulta absurda; em segundo lugar, a necessidade de estabelecer uma teoria dos efeitos audiovisuais e dos efeitos cinematográficos em geral, uma noção que precisa de ser reabilitada; por último, a constatação, da qual é preciso tirar consequências, de que o cinema sonoro evoluiu a partir de uma estrutura parcialmente determinada por requisitos do cinema mudo[1] e que os diferentes tipos de cinema sonoro hoje existentes (incluindo os nativos digitais) cumulam efeitos e práticas da evolução do cinema em geral; uma verdadeira abordagem histórica é necessária para estudar essa evolução e essa tarefa é de uma magnitude verdadeiramente desafiante para todos aqueles que estudam ou se interessam pelo fenómeno cinematográfico.
 
 
Arnaldo Mesquita
 
Michel Chion, A Audiovisão: som e imagem no cinema (tradução Pedro Elói Duarte). Lisboa, Edições Texto & Grafia, 2011, 175 p.
Tipologia documental: livro
Cota: 633/634
 
[1] Uma estrutura anterior é sempre retida, como muito bem mostram David Bordwell e Kristin Thompson nos seus estudos sobre o cinema clássico de Hollywood.