Voltando ao início dos inícios, a primeira capa exibe Gloria Swanson numa cena do filme “Sunset Boulevard” de Billy Wilder, numa pose que faz lembrar a figura de proa dos antigos navios: rosto, corpo, vulto, estátua iluminada, apontando aos navegantes o caminho a seguir e, tal como essas figuras tutelares, protegendo-os dos monstros. A mesma actriz, representando no mesmo filme, reaparece no editorial que é, todo ele, um programa: revela que a nova revista é pensada como um prolongamento de “La Revue du Cinéma”, desaparecida em 1949 e dedicada à memória de Jean-George Auriol, seu fundador. Ao nome de André Bazin, juntam-se os de Josef-Maria Lo Duca, Jacques Doniol-Valcroze e Alexandre Astruc no núcleo duro, pensadores que transformam a revista num verdadeiro manifesto crítico de combate à mediocridade do cinema institucional e da respetiva crítica, convencional e conformista, originando uma nova grelha percetiva e conceptual, da qual se destaca o artigo “Pour En Finir Avec La Profondeur de Champ”, obviamente assinado por André Bazin, texto que o revela como um pensador de rara profundidade e complexidade quando demonstra que registar a realidade e desenvolver os efeitos do real permite ao cinema fazer emergir a verdade íntima dessa mesma realidade, justamente aquilo que designou como “verdade ontológica”. Compreender este teorema é compreender a essência do cinema.
De resto, este número inicial é também uma festa para o nosso sentido visual: das 78 páginas que o compõem, 20 são dedicadas a magníficas fotografias (muitas vezes sem qualquer relação evidente ou lógica com textos e críticas, reproduzidas apenas pelo prazer que suscitam e pelo seu poder de evocação e atração) e a publicidade da época, toda ela um programa à parte que vale pena contemplar.
Por último, falta dizer que, de diversos modos, os “Cahiers” se tornaram uma espécie de meta-revista, ou seja são em si mesmos uma reflexão sobre o que deve ser e que lugar deve ocupar uma revista de cinema e que essa intenção está já inscrita no ato fundador que este primeiro número materializa e que se prolonga por todas as suas fases (“série amarela”, nova vaga, estruturalista, freudiana, comunista, maoísta, deleuziana, recentrada, etc.). Cada leitor escolherá a sua e o resultado será o mesmo; genericamente, estão todas condenadas à excelência.
Arnaldo Mesquita
Tipologia documental: publicação periódica
País: França
Datas de publicação: 1951 –
Cota: PP 8
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