CICLO
Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo


Se é certo que vários foram os cineastas do Novo Cinema português que encontraram na crítica uma forma de expressão alternativa à prática do cinema – com especial destaque para Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos, João César Monteiro ou Alberto Seixas Santos – menos são os casos dos críticos de cinema que, por causa da sua reflexão, chegaram à prática. Eduardo Geada (à semelhança de Lauro António) corresponde à segunda tipologia: crítico de cinema feito realizador – e mais que isso, crítico de cinema feito realizador justamente por causa daquilo que escrevia nas revistas e jornais. Dito doutro modo, passar de crítico a cineasta é passar do desejo do olhar ao olhar do desejo.
Nascido em 1945, começou a escrever profissionalmente sobre cinema aos 23 anos na VérticeRevista de Cultura e Arte (uma das revistas mais militantemente de esquerda, próxima do movimento neorrealista), onde permaneceria como crítico até 1970. A partir daí, escreveu brevemente na Seara Nova (outro baluarte da resistência cultural à ditadura), e de forma continuada na Rádio & Televisão, na Vida Mundial, na Cinéfilo e – também – em jornais diários, com particular destaque nos A Capital e República. Foi a partir dos textos críticos que o ator e futuro realizador Artur Semedo se decidiu a desafiar Eduardo Geada a escrever e realizar uma longa-metragem de ficção. De facto, Semedo tornar-se-ia no produtor (ou diretor de produção) de quase todos os futuros filmes de Geada, naquela que se tornaria uma importante parceria criativa, onde a produção se aliou, igualmente, ao trabalho como intérprete. Aproveitando uma imposição legal que impelia a distribuidora Doperfilme ao financiamento de cinema português, Semedo encontrou na escrita de Geada o prenúncio de um cinema que conseguisse ser reflexivamente impúdico. Isto é, anteviu nas resenhas e ensaios assinados por Eduardo Geada uma série de preocupações estéticas e políticas (políticas porque estéticas) que naturalmente se desenvolveriam num cinema capaz de questionar e fazer implodir os bons costumes da moral burguesa – parafraseando o linguajar da época.
O filme que daí resultou, ousado e provocador, teve por título SOFIA E A EDUCAÇÃO SEXUAL. Trata-se de uma obra militante, na forma como expõe a hipocrisia dos comportamentos dominantes das altas classes e dos grupos ditos intelectuais, mas que tinha igualmente um enorme apelo popular – pelo despudor com que abordava a liberdade sexual, o prazer feminino, assim como as questões do fetichismo e do voyeurismo. Esse primeiro filme, saturado de símbolos e de uma riqueza imensa de subtextos, afirmaria Eduardo Geada como um cineasta verdadeiramente iconoclasta, isto é, aquele que trabalha para destruir as imagens que dominam os imaginários do desejo, da afirmação do poder, dos papéis de género ou da insurreição política. Destruir imagens para que dos seus escombros se possam erguer outras, eis o propósito do cinema de Eduardo Geada. Naturalmente que um filme desta natureza seria alvo da censura do Estado Novo. Apresentado de forma informal a membros da Censura e do recém-formado Instituto Português de Cinema, as recomendações seriam para a proibição total ou a aplicação de um grande número de cortes que tornariam a obra inconsequente. Graças ao 25 de Abril, nem uma coisa nem outra foram necessárias.
Durante o PREC, Eduardo Geada continuou a escrever na imprensa (já não textos de cobertura crítica das estreias comerciais, mas ensaios sobre a situação socioeconómica do cinema em Portugal, propondo o envolvimento ativo dos cineastas na revolução) e iniciou uma prática cinematográfica engajada. Destaque para o documentário de denúncia das políticas de desigualdade da ditadura – o violentíssimo (e muito atual) LISBOA, O DIREITO À CIDADE sobre as questões da habitação e da gentrificação (antes disso ser palavra) –; e a sátira ao poder do patronato a partir de uma peça de Dario Fo – O FUNERAL DO PATRÃO, onde a rebeldia se associa ao improviso, num filme repentista sobre a luta de classes –; e um filme que ficou inacabado sobre as Campanhas de Dinamização Cultural do MFA, nas quais o realizador participou enquanto animador – esse filme, A REVOLUÇÃO ESTÁ NA ORDEM DO DIA, chegou a ser rodado, mas acabou por nunca ser concluído (também pelas condicionantes impostas pelo 25 de Novembro – mas principalmente pelas atribulações do dito Verão Quente).
De qualquer modo, logo em 1974 Eduardo Geada preparava também aquela que viria a ser a sua segunda longa-metragem de ficção, A SANTA ALIANÇA, filme cuja produção se atrasaria em consequência das inevitáveis convulsões políticas pós-revolucionárias (ficaria concluído em 1978 – estreou na Quinzena dos Realizador, em Cannes – mas só estrearia comercialmente em novembro de 1980). O que esse “atraso” produziu foi um olhar distanciado e, como tal, crítico, sobre o processo revolucionário, revisto agora como um teatro de personagens-tipo. A partir de uma companhia de teatro, que se rebela contra o encenador e toma as rédeas do seu ofício, o filme joga-se no choque entre a revolução que acontece nas ruas, e a permanência do status quo doméstico: o papel subalterno das mulheres, o horror do aborto clandestino, a comercialização do sexo, a violência do consumismo. Entre o vermelho do sangue (das lutas e da interrupção voluntária da gravidez), o vermelho do tecido (do veludo das cortinas do teatro e da bandeira comunista) e o vermelho dos lábios (o desejo, a sedução, o incesto, a publicidade), A SANTA ALIANÇA é um filme que propõe uma reflexão a quente sobre o PREC, revendo-o já pelo prisma da desilusão. A iconoclastia continua a rodar, como a tômbola de uma máquina de lavar roupa.
Será com MARIANA ALCOFORADO (a partir das conhecidas Lettres portugaises) que o realizador faz a síntese do seu cinema, enquanto estabelece um novo paradigma para aquilo que virá a ser a sua obra cinematográfica posterior. É com este filme que Eduardo Geada passa a trabalhar textos pré-existentes e é também a partir desta média-metragem que se desenvolve o seu interesse pelo “filme de época”. Daí em diante, tanto no cinema – SAUDADES PARA D. GENCIANA e PASSAGEM POR LISBOA – como na série televisiva LISBOA SOCIEDADE ANÓNIMA, toda a produção do realizador será feita a partir de textos literários (José Rodrigues Miguéis, José Cardoso Pires, Fernando Pessoa, entre outros), passar-se-á em Lisboa (aliás, todos os filmes do realizador são eminentemente lisboetas – pode até defender-se que é o mais lisboeta dos cineastas portugueses) e tratará de representar as primeiras décadas do século XX (com especial interesse pelas atribulações da I República, pelas formas de subversão dos primeiros anos do Estado Novo, ou pela decadência moral dos últimos anos da ditadura).
Paralelamente ao trabalho para cinema e televisão, Eduardo Geada sempre manteve a produção escrita, a reflexão crítica e a investigação histórica. Esse trabalho ganhou visibilidade através da publicação de diferentes livros, em particular duas coletâneas de ensaios recolhidos do tempo da imprensa – Cinema e Transfiguração e Poder do Cinema – duas investigações de natureza sociopolíticas – Cinema Espectáculo e O Imperialismo e O Fascismo no Cinema – e dois trabalhos sobre a história e a teoria do cinema – Estéticas do Cinema (org.) e Mundos do Cinema. Esta produção reflete, em grande parte, os anos que dedicou ao ensino do cinema (praticamente três décadas, repartidas entre o Conservatório Nacional/Escola Superior de Teatro e Cinema, Escola Superior de Comunicação Social, Universidade Católica de Lisboa e Universidade de Berkeley).
Demasiado rebelde e politizado para integrar o Novo Cinema e já muito envolvido na prática e no pensamento do cinema inconformista para se aliar à geração de 1980, Eduardo Geada participa – na história do cinema português – de um momento de transição que reflete, igualmente, a transição do próprio país para a democracia. A instabilidade dessa situação histórica confere-lhe uma posição de exterioridade face os movimentos grupais – acentuada pela sua prática pioneira dentro da academia enquanto investigador de cinema. Teórico e prático (e prático porque teórico), Eduardo Geada produziu uma filmografia que não pode ser dissociada do seu pensamento enquanto crítico e do seu trabalho enquanto académico.
Assim sendo, a Cinemateca apresenta o Ciclo “Eduardo Geada, O Olhar do Desejo” (que apresenta toda a sua obra cinematográfica, uma parte significativa da sua produção televisiva e uma carta branca com dez títulos escolhidos pelo realizador) acompanhando-o com a publicação de um catálogo homónimo onde se espelha grande parte da sua tripla valência de crítico-realizador-professor. Assim, além de uma pequena antologia de textos críticos nunca antes colocados em livro, da publicação de ensaios teóricos e historiográficos revistos e de uma recolha ampla de testemunhos, o catálogo inclui igualmente textos inéditos de João Lopes, Ricardo Gross, Ricardo Vieira Lisboa (coordenador da publicação) e Tiago Bartolomeu Costa e republicações (revisões ou reformulações) de textos de Fernando Pernes, Jorge Leitão Ramos, Leonor Areal, Maria João Madeira, Pedro Mexia e Sónia Vespeira de Almeida. Além disso, o arranque da retrospetiva coincide com o lançamento em DVD de SOFIA E A EDUCAÇÃO SEXUAL, uma coedição da Cinemateca com a Academia Portuguesa de Cinema. Eduardo Geada estará presente em várias das sessões do Ciclo, para além de participar numa conversa sobre a sua obra no dia 21 de maio.
Retrospetiva
 
27/05/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo

Pierrot Le Fou
Pedro, O Louco
de Jean-Luc Godard
França, 1965 - 110 min
27/05/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo

Street Of No Return
Rua Sem Regresso
de Samuel Fuller
França, Portugal, 1989 - 92 min
28/05/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo

Persona
A Máscara
de Ingmar Bergman
Suécia, 1966 - 81 min
28/05/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo

Passagem Por Lisboa
de Eduardo Geada
Portugal, 1994 - 105 min
27/05/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo
Pierrot Le Fou
Pedro, O Louco
de Jean-Luc Godard
com Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Samuel Fuller
França, 1965 - 110 min
legendado em português | M/12
Emblema dos anos 1960, emblema do cinema moderno no sentido histórico do termo, PIERROT LE FOU adquiriu há muito tempo o estatuto de clássico. O mais famoso filme de Godard, de “uma beleza sublime” no dizer de Louis Aragon, continua a entusiasmar as novas gerações que o descobrem pela primeira vez. Um homem e uma mulher, Pierrot e Marianne, deixam subitamente Paris e saem pelas estradas de França, “vivendo perigosamente até ao fim”. Amam-se e matam(-se), mas principalmente recusam a civilização tal como o pequeno-burguês a concebe, vivendo o instante e o dia a dia. A fotografia a cores de Raoul Coutard é um verdadeiro compêndio de muitas tendências estéticas da época como o é o som recriado por Antoine Bonfanti. No seu primeiro filme, SOFIA E A EDUCAÇÃO SEXUAL, Eduardo Geada presta homenagem ao filme de Godard quando encena uma ida ao cinema em que o casal Sofia/Jorge assistem a PIERROT LE FOU, filme que estava então proibido pela censura e só estrearia em julho de 1974 (num ciclo de “Cinema Proibido” programado pelo próprio Eduardo Geada).

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27/05/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo
Street Of No Return
Rua Sem Regresso
de Samuel Fuller
com Keith Carradine, Valentina Vargas, Andréa Ferréol, Bernard Fresson
França, Portugal, 1989 - 92 min
legendado em português | M/12
Michael (Keith Carradine) é um cantor de sucesso até à noite em que encontra a espampanante Célia (Valentina Vargas). A sua vida resvala, então, para a violência e o horror. Célia é a melhor amiga de Eddie (Marc de Jonge), amado até aos ciúmes por Bertha (Rebecca Potok). Entre tais personagens, geram-se conflitos e confrontos num cenário de motins raciais, carreiras arruinadas, doença e vagabundos em bairros degradados de uma cidade anónima. Essa cidade é... Lisboa, já que o filme tinha coprodução da Animatógrafo, de António da Cunha Telles. O derradeiro filme de Samuel Fuller, inspirado no romance homónimo de David Goodis, corresponde ao momento da carreira do cineasta americano em que este se exilou na Europa e continuou a filmar com orçamentos muito reduzidos. É, como tal, um filme desiludido e amargurado, um neo-noir sujo e distópico. Num dos papéis secundários surge Sérgio Godinho que, recentemente, recordou assim a rodagem lisboeta: “O Samuel Fuller era um grande cromo. Era um tipo pequenino que fumava uns charutos quase tão grandes quanto ele. Ele veio fazer o STREET OF NO RETURN a Portugal e eu tive a extraordinária oportunidade de contracenar com o Keith Carradine.” Eduardo Geada foi o primeiro assistente de realização.


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28/05/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo
Persona
A Máscara
de Ingmar Bergman
com Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margareta Krook
Suécia, 1966 - 81 min
legendado em português | M/12
Depois de emudecer durante uma interpretação de Electra, a atriz Elisabeth Vogler (Liv Ullmann) procura repouso à beira-mar, na companhia da enfermeira Alma (Bibi Andersson). Entre as duas mulheres estabelece-se uma estranha relação de dependência mútuas. O filme resultou do desaire de um outro projeto e, como tal, constrói-se como uma reflexão sobre o impasse, a crise criativa e, como tal, o próprio cinema. “Não é por acaso que PERSONA começa e acaba com planos em que se vêem e ouvem indícios da prática cinematográfica (...) imagens e sons a que o corpo e a voz dos actores, fantasmas perfeitos, máscaras eternas, vêm finalmente emprestar uma realidade indesmentível, nas manchas de luz que atravessam a sala, no tempo exacto da projeção (...). PERSONA é o mais extraordinário e o mais secreto dos filmes de Ingmar Bergman, um marco na evolução das formas cinematográficas.” (Eduardo Geada, Cinema e Transfiguração)

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28/05/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Eduardo Geada, O Olhar Do Desejo
Passagem Por Lisboa
de Eduardo Geada
com Anthony Story, Margarida Reis, Jennifer Hamilton, Tom Haroy, George Ritchie
Portugal, 1994 - 105 min
M/12
Lisboa, em plena Segunda Guerra Mundial, é uma capital de espiões. Os serviços secretos britânicos, alemães e espanhóis cruzam-se entre quartos de hotel, armazéns sombrios e mansões na costa do Estoril. Há um rolo de microfilme desaparecido, há agentes duplos, há aristocratas célebres (Duque de Windsor e Primo de Rivera) e, pelo meio, há também duas estrelas de cinema: Pola Negri (a musa de Lubitsch e companheira de Valentino que passou por Lisboa a caminho de Hollywood) e Leslie Howard (que, de facto, morreu no regresso a Londres, quando o seu avião, que partira de Lisboa em 1943, foi abatido pela Luftwaffe – alegadamente porque o ator estava envolvido com os serviços secretos aliados). A “neutralidade” do Estado Novo deixa correr as intrigas e abafa os homicídios. Baseado num argumento original de Eduardo Geada, PASSAGEM POR LISBOA é um ambicioso filme de época com elenco internacional e cheio de referências históricas (e cinéfilas – António Lopes Ribeiro é uma das personagens da trama e, a certa altura, Paul Henreid e Ingrid Bergman chegam a Lisboa vindos de... Casablanca). A exibir em nova cópia digital, produzida no âmbito do PRR.

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