CICLO
Só o Cinema


Se o cinema é linguagem, facto de discurso, é preciso ver que, antes de suas articulações e de sua sintaxe, ele tem uma relação imediata com o mundo ancorada na natureza da técnica, no automatismo com que a imagem se imprime na película, produzindo não uma semelhança como as já conhecidas na tradição pictórica, mas um “molde da duração”, um decalque do movimento. O cinema constrói a sua estética a partir daí, explorando seu poder essencial de reprodução do real e libertando-se, ao mesmo tempo, do afã de imitação precisa. Na pintura, escravizar-se à aparência é macular a arte; no cinema, macular a aparência é perder o solo da expressão, anular o específico e todas as suas promessas de Revelação: A Grande Ilusão. Mas no cinema, o ilusionismo não o é plenamente; o objeto deixou efetivamente o seu rastro na película, na imagem que nos absorve e que connosco coincide, em vida.
Quando o cinema vem com um sopro de autenticidade que transcende as outras artes, como Bazin disse: “é preciso ler em filigrana a evidência da graça”, pois os signos de Deus não são sempre sobrenaturais. E só a arte cinematográfica tem o misterioso dom de nos remeter de forma única e direta para o reino secreto das emoções, com uma evidência tão pura, tão espontânea quanto inédita. Inédita pois é sem precedente nas artes: como só no cinema acontece, o que só o cinema transmite: Só o cinema! Com talentos cuja escrita soube expressar de forma admirável, dando espaço à vulnerabilidade da emoção, à sua figura cândida em cuja constelação nos projetamos e, sem aviso, somos arrebatados pela própria técnica de base que incorpora o tal desejo de eternidade. Assim, “o mito de Ícaro teve que esperar pelo motor de combustão interna antes de descer dos céus platónicos”. Mas ele residia na alma de cada homem desde que ele pensou pela primeira vez em pássaros. Até certo ponto, pode-se dizer o mesmo sobre o mito do cinema. Este Ciclo, propõe a descoberta ou reencontro desses momentos de cinema que transcendem qualquer linha lógica, em que o realizador deixa de competir com o pintor ou com escritor, e passa a ser ele o equivalente ao novelista, usando a pura linguagem cinematográfica.
Lembremos, por exemplo, em VERTIGO de Hitchcock (que recentemente exibimos e por essa razão não consta deste programa), o momento em que Judy (Kim Novak), cede perante a persistência de Scottie Ferguson (James Stewart) e aceita ‘transfigurar-se’ na outra, a sonâmbula Madeleine, pinta o cabelo de louro e veste um tailleur cinzento, igual ao dela. Estamos perante um desses absolutos milagres que só o cinema produz. Durante a longa sequência a luz néon do exterior, de um verde ácido e intermitente, inunda o quarto do hotel onde Scottie antecipa a verificação da semelhança entre as ‘duas mulheres’. O verde dos olhos de James Stewart, tão próximo; o verde da cabeceira da cama; Judy/Madeleine que finalmente aparece numa aura de luz verde enquadrada na porta por onde saíra para prender o cabelo em caracol sobre a nuca (o caracol de Madeleine, o caracol em espiral de Carlota Valdéz); música e imagem são um só corpo na vertigem do beijo circular enquanto, quase impercetivelmente, o décor desliza por trás deles, remetendo-nos para o imaginário do estábulo dos coches no mosteiro onde Madeleine supostamente se precipitara da torre do sino. E todos nós sentimos emotivamente a perturbação interior de Scottie, tão perdido no limbo entre o real e o aparente. Que outra arte o exprimiria assim? Nenhuma arte atravessa dessa maneira a nossa consciência levando-nos para o quarto mais fundo das nossas almas.
Que dizer da imagem da pomba branca que estremece sob os passos nus de Jeanne D’Arc, que caminha para a morte no filme de Robert Bresson? Ou do gesto suspenso de Marlène, perante o pelotão de fuzilamento, quando ajeita a liga e usa a espada do soldado como espelho para retocar o batôn (DISHONORED de Sternberg)? Ou da cor “bigger than life” que subitamente invade todo o ecrã no filme de Nick Ray? Que mistério vem dos longos planos de uma única árvore, numa paisagem perdida, solidão persistente através dos anos, dos séculos, como fez acontecer Chantal Akerman no sublime NO HOME MOVIE; ou da árvore, sempre inicial e eterna, que assiste à ‘vã glória de mandar’ ao som de eternos tambores que Manoel de Oliveira fez ecoar e perpetuar no NON...
Numa época de aparente crepúsculo do cinema, em que tanto se questiona sobre o que será do cinema no futuro, e sem que seja possível resposta à questão, deixamos a sugestão de reencontro ou descoberta desses momentos que nos ficam de certos filmes e que nos sopram um segredo, afinal, o tal desejo do “complexo da múmia”, antes do uso da técnica, em busca da eternização. Como Liv Ulman diz em A HORA DO LOBO: “Quando encontrará a luz os meus olhos?”
Alguns títulos mencionados ao correr da memória e que, embora não caibam todos neste ciclo, servirão como sugestão para que cada um possa deixar-se levar livremente nesse fio de prata que nos une aos filmes e que, de certa forma, nos dirige e interfere na nossa experiência da vida.
Só o Cinema, pois, assim como ‘only angels’, com ele reaprendemos a viver e a acreditar.
 
23/11/2020, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Só o Cinema

Yokihi
“A Imperatriz Yang Kwei Fei”
de Kenji Mizoguchi
Japão, 1955 - 91 min
23/11/2020, 20h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Só o Cinema

Aparajito
“O Invicto”
de Satyajit Ray
Índia, 1956 - 110 min
 
24/11/2020, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Só o Cinema

The Wind
O Vento
de Victor Sjöström
Estados Unidos, 1928 - 88 min
 
25/11/2020, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Só o Cinema

No Home Movie
de Chantal Akerman
Bélgica, França, 2015 - 112 min
26/11/2020, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Só o Cinema

Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço | Genou d’Artémide / Il Ginocchio d’Artemide A Saliva Do Lobo
duração total da projeção: 114 min | M/12
23/11/2020, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Só o Cinema
Yokihi
“A Imperatriz Yang Kwei Fei”
de Kenji Mizoguchi
com Machiko Kyo, Masayuki Mori, So Yamamura
Japão, 1955 - 91 min
legendado em português | M/12
YOKIHI, adaptação de uma história chinesa situada no século IX, é um dos mais célebres títulos de Mizoguchi e o seu primeiro filme a cores. E essas cores são fabulosas, num filme em que Machiko Kyo dá corpo a um genial retrato feminino, sobre um shakespeariano fundo de lutas de poder e intrigas políticas. Um assombro.

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23/11/2020, 20h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Só o Cinema
Aparajito
“O Invicto”
de Satyajit Ray
com Smaran Ghosal, Karuna Bannerjee, Pinaki Sem Gupta, Kanu Bannerjee
Índia, 1956 - 110 min
legendado em francês e eletronicamente em português | M/12
Neste segundo episódio da “trilogia de Apu”, talvez o mais belo dos três, a família de Apu está instalada na cidade santa de Benares. Mas o pai morre e a mãe regressa à aldeia natal com Apu, que vemos passar da infância à adolescência. Uma belíssima relação mãe/filho está no centro deste filme, em que vemos Apu transmitir à mãe, que se sacrifica para que ele estude, parte do que aprende na escola. A narrativa de APARAJITO é mais pormenorizada do que a de PATHER PANCHALI, com o uso de algumas imagens carregadas de símbolos. A exibir em cópia digital.

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24/11/2020, 18h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Só o Cinema
The Wind
O Vento
de Victor Sjöström
com Lillian Gish, Lars Hanson
Estados Unidos, 1928 - 88 min
mudo, intertítulos em inglês, traduzidos em português | M/12
Acompanhamento ao piano por Filipe Raposo
Talvez a obra-prima absoluta de Sjöström. Este grande mestre da paisagem no cinema troca as paisagens geladas dos seus filmes suecos pela aridez de um deserto americano. Um filme mudo que nos faz "ouvir" o assobio ameaçador do vento, que sopra com violência em volta de uma casa no deserto, onde uma mulher tem de lutar também contra a paixão desenfreada de um homem. Sjöström constrói uma atmosfera de pesadelo com base apenas na sugestão. Um dos pontos altos do cinema mudo, reforçado pela presença inesquecível de Lillian Gish.

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25/11/2020, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Só o Cinema
No Home Movie
de Chantal Akerman
Bélgica, França, 2015 - 112 min
legendado eletronicamente em português | M/12
De uma profunda delicadeza e generosidade, NO HOME MOVIE é simultaneamente um diário, um aceno, uma despedida, uma visita repleta de entrelinhas confessionais. “Este filme é acima de tudo sobre a minha mãe, a minha mãe que já não se encontra entre nós. Sobre essa mulher que chegou à Bélgica em 1938, em fuga da Polónia, dos pogroms e da violência. Essa mulher que é sempre apenas vista dentro do seu apartamento. Um apartamento em Bruxelas. Um filme acerca de um mundo em movimento que a minha mãe não vê.” Belíssimo, NO HOME MOVIE seria o último filme de Chantal Akerman, que afirmou que a mãe, Natalia, era o centro da sua obra.

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26/11/2020, 17h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Só o Cinema
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço | Genou d’Artémide / Il Ginocchio d’Artemide A Saliva Do Lobo
duração total da projeção: 114 min | M/12
QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO
de João César Monteiro
com Luis Miguel Cintra, Carlos Ferreira, Paula Ferreira, Nuno Júdice
Portugal, 1971 – 33 min

GENOU D’ARTÉMIDE / IL GINOCCHIO D’ARTEMIDE
de Jean-Marie Straub
com Andrea Baci, Dario Marconcini
Itália, 2009 – 26 min / legendado eletronicamente em português

A SALIVA DO LOBO
de Joana Torgal, Rodolfo Pimenta
com os mineiros das Minas da Panasqueira
Portugal, 2010 – 55 min / sem diálogos

Primeiro filme de João César Monteiro, logo revelador do fôlego e da originalidade do realizador, QUEM ESPERA POR SAPATOS… foi logo entendido como o grande filme que é (“É o filme mais português que vi até hoje… Não no sentido do Benfica. Mas no literal: aqui e agora”, Eduardo Guerra Carneiro, 1971). “Opaco, secreto como um búzio”, chamou-lhe César. Foi o primeiro filme de Luis Miguel Cintra, na personagem de Lívio, o mesmo nome da que interpretou 18 anos depois em RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA, mandando João de Deus "ir e dar-lhes trabalho”. Retomando trechos dos Dialoghi con Leucò, de Cesare Pavese, LE GENOU D’ARTEMIDE é um belíssimo trabalho de luto de Jean-Marie Straub por Danièle Huillet (ambos tinham usado esse livro de Pavese consistindo em diálogos entre personagens mitológicas e simples mortais em DALLA NUBE ALLA RESISTENZA e em QUEI LORO INCONTRI), feito de modo indireto. Num bosque, dois homens dizem trechos de Pavese e no epílogo, o bosque está vazio, pois a vida continua sem nós. O belo e raro A SALIVA DO LOBO é um documentário sobre o processo de extração do volfrâmio que recusa qualquer espécie de retrato psicológico ou sociológico – “pois o mineiro encontra-se quase sempre em segundo plano, como um vigilante do processo mecânico. Apenas surge em primeiro plano no final do filme, quando se corporiza em árvore, mantendo-se firme e resistente perante a vida e a morte.” Um filme sem palavras (sem um único diálogo), antes uma “escavação” profunda do significado de “acordo entre som e imagem” – Lugar labiríntico onde nos podemos “perder ou encontrar”.

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