CICLO
O Trilho do Gato-William A.Wellman


Talvez seja uma proposta de vanguarda, em contracorrente com a pauta de acontecimentos isolados atualmente vigente: a imersão numa retrospetiva de autor de cinema clássico à moda clássica, a saber, panorâmica e o mais abrangente possível sendo que o alcance é considerável – uma incursão no coração da Hollywood de meados dos anos 1920 aos finais dos 1950, para a (re)apreciação de um dos seus cineastas mais singulares e férteis, não obstante subestimado no valor intrínseco dos filmes e na densidade da obra. Foi assim, em anos recentes, com as ambiciosas retrospetivas dedicadas aos pioneiros-clássicos Allan Dwan e Michael Curtiz. É assim com William A. Wellman, alvo de uma primeira retrospetiva na Cinemateca em 1993 (foram mostrados quarenta títulos) e cujo cinema será projetado entre novembro de 2025 e janeiro de 2026, ao longo de uma viagem com todas as paragens possibilitadas pela existência de cópias decentes em projeção (cerca de sessenta títulos, em regra programados em duas sessões). Sucede após os restauros e digitalizações que têm permitido uma circulação mais alargada de 2014 para cá, após o programa Wellman, nesse ano, do festival italiano Il Cinema Ritrovato, e por coincidência um programa fronteiro com o que a Cinémathèque Française acaba de lhe dedicar. É um trajeto ziguezagueante, que procura rimas dentro da obra cruzando filmes de registo e cronologia desordenada no curso de três meses de programação nos quais a afinação dos filmes de género segue a par de curvas fugidas, consolidando um cinema que não só resiste como se aprofunda, criativo, nessas sinuosidades. Por isso, indo buscar a ideia a um dos mais pessoais dos seus últimos filmes em infusão com a rebeldia da personalidade artística, se chama à retrospetiva “O Trilho do Gato – William A. Wellman”.
Provenientes dos arquivos europeus e americanos, a maior parte dos títulos são apresentados em cópias 35 mm, havendo uma série de outros em formato digital de alta-definição resultantes de cuidados processos de digitalização. Há mais informação disponível “em linha” na página da Cinemateca. O texto e as notas que se seguem propõem uma leitura sumária da obra, para a qual muito concorrem os estudos de Frank T. Thompson, seu primeiro biógrafo e estudioso, e William Wellman Jr., o filho ator-produtor que tanto tem feito pela preservação e divulgação da obra de William A. Wellman. Outra fonte de inspiração são as defesas apaixonadas do finlandês Peter von Bagh, do francês Bertrand Tavernier, do português Manuel Cintra Ferreira, a cuja memória se dedica esta retrospetiva. Com ela se espera chegar, no escuro da sala, a novas e antigas sensibilidades espectadoras.
 
“Ser cineasta é trabalho de um só homem.” Dizia-o William A. Wellman (1896-1975) que não sendo o protótipo do vanguardista, foi um cineasta de inovação e desafio da esquadria das convenções. “Como realizador, travou muitas batalhas, algumas delas com os punhos, pelo direito de fazer os seus filmes à sua maneira”, disse Frank Capra no discurso da cerimónia do D.W. Griffith Lifetime Achievement Award que lhe foi atribuído em 1973. Conhecido como Wild “Bill” Wellman desde os tempos de aviador de combate em França, na Primeira Guerra Mundial, um epítome a que a sua vida de intensos anos no cinema e uns noventa filmes fez justiça (creditados e não creditados, 1923-1958), Wellman foi, desde muito cedo, rapaz de muitos ofícios. Testemunhou-o a um filho dizendo-
-lhe ter vivido a vida de cem homens e foi esse filho, William Wellman Jr. quem sobre ele escreveu, “Considerem um homem que: foi um delinquente juvenil; jogou hóquei no gelo para ganhar a vida em miúdo; se tornou um ás da aviação na Primeira Guerra aos dezoito anos; foi um desastre como ator mas um bom moço de recados; se tornou realizador e foi despedido de quase todos os estúdios em Hollywood; teve muitas parceiras românticas antes de casar com a mulher ao lado de quem esteve durante trinta e seis anos; teve sete filhos e dezassete netos; ganhou e manteve uma fortuna; se foi embora ao cabo de quarenta anos no alto da sua profissão.”
Tal era o homem que lutou pelos seus filmes nos seus termos, no contexto paradoxal do sistema dos estúdios onde trilhou o percurso como realizador contratado mas também o de produtor-realizador independente. Ficou sempre mais associado ao papel de realizador enquanto peça da engrenagem do que como cineasta pleno, um dos grandes, como os reconhecidos John Ford, Howard Hawks ou Raoul Walsh, não obstante as caraterísticas pioneiras do seu trabalho, a sua quota-parte na matriz clássica do cinema de Hollywood, da modernidade de várias das suas obras na filmografia de trinta e cinco anos de trabalho, ou das obras-primas, do “revolucionário” WINGS (1927) em diante. O movimento de câmara dianteiro que sobrevoa um populoso salão de convivas, mesas e taças de champanhe nesse filme, continua a ser um exemplo de mestria, além das sequências aéreas captadas em aviões veridicamente manobrados por atores com câmaras acopladas, inaugurando o “filme de aviação” como subgénero do “filme de guerra”. Talvez tenha sido o género mais trabalhado por Wellman, que igualmente se esmerou em todos os outros, bem como numa original fusão de géneros numa mesma obra: melodrama (BEGGARS OF LIFE), drama (THE PRESIDENT VANISHES), ação e aventura (BEAU GESTE, ROBIN HOOD OF EL DORADO), o filme criminal e de gangsters (THE PUBLIC ENEMY), musical (THE LADY OF BURLESQUE), western (THE OX-BOW INCIDENT), comédia (NOTHING SACRED), realismo social (HEROES FOR SALE); mas também filmes da ligação dos humanos e da natureza (THE CALL OF THE WILD, ACROSS THE WIDE MISSOURI), proto feministas (NIGHT NURSE, WESTWARD THE WOMEN), obras autorreflexivas (YOU NEVER KNOW WOMEN, A STAR IS BORN) ou quase abstratas e inclassificáveis (TRACK OF THE CAT).
Fez a travessia do mudo ao sonoro, do preto-e-branco à cor e ao Technicolor, pré e pós Código de Produção nos anos 1930, a época esplendorosa em que assinou a realização de vinte e nove títulos (!), da proeza de DANGEROUS PARADISE à de THE LIGHT THAT FAILED. Trabalhou com os vários estúdios, começando pela Fox e pela Paramount, e com todos os grandes produtores, com quem teve cumplicidades e zangas. Foi um agregador de equipas, trabalhando bastas vezes com os mesmos técnicos e artistas. Dirigiu muitíssimos atores, descobrindo não poucos talentos que se firmariam estrelas (da grandeza de Gary Cooper, Clark Gable, John Wayne, Barbara Stanwyck ou Ida Lupino), enquadrou no formato quadrado, panorâmico e CinemaScope, filmou muito, por vezes projetos que pouco lhe interessavam, a troco de filmes tão pessoais como, por exemplo, WILD BOYS OF THE ROAD, na década de 1930, GOOD-BYE, MY LADY, na de 1950, ou o célebre WINGS e o último, LAFAYETTE ESCADRILLE, que sonhou durante largos anos e que filmou prescindindo do salário e comprometendo-se a realizar dois outros projetos sem reservas, mas cuja finalização adulterada o levou a autoafastar-se do cinema pelos sessenta anos.
William A. Wellman chegou a Hollywood com o espírito aventureiro que era seu, depois da experiência de combate, perdas traumáticas, o reconhecimento de herói de guerra (com uma Croix de Guerre por bravura sob fogo). Em 1917, voluntariara-se para o serviço de ambulâncias em França, antes de os EUA entrarem na Primeira Guerra, e depois juntara-se à Legião Estrangeira, tornando--se piloto de caças numa unidade do corpo aéreo francês composto por aviadores americanos. Integrara o corpo aéreo do Exército do seu país e servira de instrutor de voo em San Diego antes do final da guerra, aceitando, no termo do conflito, a ideia de Douglas Fairbanks de que rumasse a Hollywood onde encontraria trabalho na indústria cinematográfica. Depois de participar como ator em THE KNICKERBOCKER BUCKAROO (1919), escolheu ser realizador, aprendeu a ver filmes (como espectador) e na tarimba (de mensageiro a assistente de realização e realizador), velozmente e (quase sempre) a proveito dos orçamentos e do número de dias de rodagem. Quando se afastou do cinema, publicou A Short Time for Insanity: An Autobiography (1974). A tenacidade, a irreverência, a criatividade artística, uma peculiar energia, sentido de ritmo, de enquadramento, de paisagem, do dramatismo da chuva são marcas suas. Clint Eastwood, que Wellman dirigiu na juventude do ator no seu último filme, de 1958, chama-lhe “o eterno rebelde, sempre a tentar uma coisa nova”.
 
04/11/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Trilho do Gato-William A.Wellman

Nothing Sacred
Nada É Sagrado
de William A. Wellman
Estados Unidos, 1937 - 75 min
 
05/11/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Trilho do Gato-William A.Wellman

Roxie Hart
É Bonita, Apresenta-se Bem!
de William A. Wellman
Estados Unidos, 1942 - 74 min
05/11/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Trilho do Gato-William A.Wellman

The Public Enemy
de William A. Wellman
Estados Unidos, 1931 - 83 min
06/11/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Trilho do Gato-William A.Wellman

Chinatown Nights
A Fronteira da Morte
de William A. Wellman
Estados Unidos, 1929 - 83 min
06/11/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Trilho do Gato-William A.Wellman

The Man I Love
de William A. Wellman
Estados Unidos, 1929 - 70 min
04/11/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Trilho do Gato-William A.Wellman
Nothing Sacred
Nada É Sagrado
de William A. Wellman
com Carole Lombard, Fredric March, Charles Winninger, Walter Connolly
Estados Unidos, 1937 - 75 min
legendado eletronicamente em português | M/12
SESSÃO COM APRESENTAÇÃO

Não é o mais típico Wellman, é um filme único, e dos que mais estimava, desde logo por tê-lo construído à volta de Carole Lombard. Ao lado de Fredric March, no papel do jornalista que cobre, e alimenta, a história, a atriz interpreta uma mulher a quem é, erradamente, diagnosticada uma doença fatal por envenenamento, o que leva a uns dias de vida sonhada em Nova Iorque e a uma inaudita comoção nacional. As personagens, como a situação, são uma fraude, o frenesim é permanente, a violência da sátira ao mundo do sensacionalismo é tão extrema como a graça que tem. Uma produção Selznick, em Technicolor, a partir de um argumento creditado a Ben Hecht. “A característica mais abençoada de Wellman era a sua irreverência, cuja plenitude brilha no absurdo total de NOTHING SACRED, rara entre as mais geniais comédias screwball dada a substância patego-imbecil”, argumentava Peter von Bagh (Il Cinema Ritrovato, 2014). Frank T. Thompson via-o como uma “comédia negra” porque todas as subtilezas giram à volta da ideia da morte, alinhada com ganância, oportunismo, traição. Nada é sagrado. A apresentar em digital.


A sessão repete no dia 29 às 17h30, na sala M. Félix Ribeiro

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05/11/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Trilho do Gato-William A.Wellman
Roxie Hart
É Bonita, Apresenta-se Bem!
de William A. Wellman
com Ginger Rogers, Adolphe Menjou, George Montgomery, Lynne Overman, Nigel Bruce
Estados Unidos, 1942 - 74 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Dedicada “A todas as mulheres que cravejaram os maridos de balas por despeito”, e abrindo numa noite de chuva para um rol de flashbacks com movimentos de câmara tão fluidos como rigorosos – o elemento, um dispositivo e uma característica de Wellman – esta sua incursão na comédia screwball, com argumento de Nunnally Johnson a partir da peça Chicago (1927), retoma a sátira ao jornalismo sensacionalista de NOTHING SACRED e a ideia do espetáculo acima dos mínimos de decência. Ginger Rogers é Roxie Hart, uma candidata a atriz persuadida a confessar um crime não cometido como golpe publicitário. O filme trabalha a irrisão e a caricatura num registo noir com um ritmo delirante e a graça de pernas dançarinas, a partir dos palcos de um bar, da prisão e do tribunal. “Não há nem personagens nem instituições que saiam incólumes deste ‘massacre’, principalmente os chamados terceiro e quarto poder, a justiça e a imprensa.” (Manuel Cintra Ferreira) A apresentar em 35 mm.

A sessão repete no dia 21 às 19h00, na sala M. Félix Ribeiro

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05/11/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Trilho do Gato-William A.Wellman
The Public Enemy
de William A. Wellman
com James Cagney, Jean Harlow, Edward Woods, Joan Blondell, Donald Cook, Leslie Fenton, Mae Clarke
Estados Unidos, 1931 - 83 min
legendado eletronicamente em português | M/12
A partir de um argumento baseado no romance não publicado Beer and Blood de dois jornalistas contemporâneos das ações criminosas de Al Capone em Chicago, nos anos 1920, THE PUBLIC ENEMY estabeleceu a personalidade do gangster nos filmes dos anos 1930 (alvo especial da vontade de regulação censória do Código de Produção), alinhando um trio arquétipo com LITTLE CAESAR de Mervyn LeRoy e SCARFACE de Howard Hawks. Poderoso retrato do período da Lei Seca, revelou James Cagney no papel do jovem aventureiro transformado num perigoso bandido, que profere a mais célebre réplica de um filme de gangsters: “I ain’t so tough.” James Cagney, primeiramente indicado para o papel interpretado por Edward Woods, protagoniza planos alucinantes e cenas inesquecíveis, incluindo o primor de misoginia que é a cena de pequeno-almoço em que esmaga uma toranja no rosto de Mae Clarke. “O que faz de PUBLIC ENEMY um filme sem rival no seu género é a energia que Wellman lhe incute […e um] abalo telúrico” (Manuel Cintra Ferreira). A apresentar em digital.

A sessão repete no dia 15 às 17h30, na sala M. Félix Ribeiro

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06/11/2025, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Trilho do Gato-William A.Wellman
Chinatown Nights
A Fronteira da Morte
de William A. Wellman
com Wallace Beery, Florence Vidor, Warner Oland, Jack McHugh, Jack Oakie
Estados Unidos, 1929 - 83 min
legendado eletronicamente em português | M/12
“Uma história absurda do princípio ao fim”, escreveu-se no New York Times em abril de 1929 sobre este drama criminal baseado em Tong War de Samuel Ornitz, em que Wallace Beery, na pele de um bandido, salva Florence Vidor, na da jovem em visita turística a Chinatown, em São Francisco, que é apanhada numa luta de criminosos rivais: apaixonam-se e ela dedica-se a resgatá-lo das garras do crime. Foi rodado como um filme mudo em finais de 1928, mas o produtor David O. Selznick e Wellman decidiriam convertê-lo num filme falado, acrescentando cenas dialogadas e efeitos sonoros. “O resultado foi notável; tinha a novidade popular do sonoro ainda assim mantendo toda a fluidez do cinema mudo. […]. É um filme assaz curioso, uma espécie de reflexo invertido, tipo pesadelo, de BROKEN BLOSSOMS.” (Frank T. Thompson) “É o exemplo acabado do que os realizadores de Hollywood imaginavam como o filme falado do futuro. No ritmo, trabalho de câmara, e desenho geral, é essencialmente um filme mudo, ainda com uma banda musical constante e intertítulos narrativos.” (William K. Everson). Primeira apresentação na Cinemateca, em 35 mm.

A sessão repete no dia 20 às 19h30, na sala Luís de Pina

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06/11/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Trilho do Gato-William A.Wellman
The Man I Love
de William A. Wellman
com Richard Arlen, Mary Brian, Olga Baclanova, Harry Green, Jack Oakie, Pat O’Malley
Estados Unidos, 1929 - 70 min
legendado eletronicamente em português |M/12
Na passagem do mudo para o sonoro, esta produção David O. Selznick (em dupla com CHINATOWN NIGHTS), é parcialmente falada e tem uma banda musical com efeitos sonoros síncronos como foi hábito nessa transição (dos part-talking pictures). Escrita por Herman J. Mankiewicz, a história é de um pugilista pouco sofisticado (Richard Arlen) a quem move o objetivo de ser campeão e que, na esfera privada, vive o amor pela mulher e um envolvimento paralelo com uma beldade da dita alta-sociedade. Nos antípodas do fausto dos meios de produção de WINGS, é notado como exemplar da habilidade de Wellman em fazer alguma coisa de nada. “Talvez seja o primeiro filme que é verdadeiramente representativo de Wellman. Contém a totalidade das marcas características que definem o resto da sua carreira”, como a capacidade de sugestão, inteligência e imaginação, um plano-sequência memorável, enquadramentos e movimentos de câmara inspirados (Frank T. Thompson). Primeira apresentação na Cinemateca, em 35 mm.

A sessão repete no dia 20 às 21h30, na sala M. Félix Ribeiro

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