CICLO
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)


A conceção deste programa, cuja apresentação se iniciou em março, foi iniciada quando José Manuel Costa era Diretor da Cinemateca. É dele o texto que se segue, bem como as notas sobre as sessões individuais.
 
Com exceção de dois títulos, esta segunda parte do ciclo dedicado às relações do cinema com a obra de Joseph Conrad inclui adaptações levadas a cabo já nas últimas décadas do século XX e nos inícios deste século. As exceções são os dois casos que fomos obrigados a deixar para abril por questões de acesso às cópias – DANGEROUS PARADISE de W. Wellman (1930), que foi a primeira adaptação de Conrad verdadeiramente sonora, e o díptico FACE TO FACE de John Brahm/Bretaigne Windust (1952) do qual o título de Brahm assinalou o começo da abordagem das “short stories” do escritor. Fora esses, e goradas que foram entretanto todas as expectativas de incluir uma outra adaptação de 1940 que, em março, ainda contávamos vir a mostrar (VICTORY, de John Cromwell, que não é obra perdida mas que se revelou inacessível, só tendo sido localizado material em suporte original de nitrato de celulose num dos arquivos americanos), todos os filmes a projetar são agora filmes realizados a partir de 1978, o ano que antecedeu o de APOCALYPSE NOW de Coppola, dado a ver na abertura. Com eles, o que saltará logo à vista é que estamos já, portanto, num terreno muito distante (dir-se-ia por condição) das convenções do “studio system” americano, e mesmo da transição pós-clássica, com tudo o que isso implica no modo de pensar a adaptação da literatura ao cinema, e, consequentemente, a adaptação desta obra em particular, ao mesmo tempo tão atrativa para o “grande ecrã” e tão resistente à extirpação dos seus próprios meandros narrativos. Se é verdade que a maior ou menor força de um filme de qualquer época nunca dependeu nem depende da fidelidade à sua possível base literária, também é verdade que, atingida esta etapa do cinema no século XX, estavam abertos outros e mais diversificados caminhos na relação entre as duas artes, que a transposição de Conrad mais uma vez bem espelhou. Já de há muito digerida a defesa do “cinema impuro” de Bazin, aquilo que, no terreno literário, tanto tinha marcado a modernidade do autor de “Lord Jim” e tantas vezes tinha erguido escolhos na sua adaptação – essa deriva rememorativa como primeira matéria e cerne da história narrada – convertera-se já também, para quem quisesse ir por aí, em potencial matéria cinematográfica.
Patente em alguns dos últimos filmes exibidos em março, esta outra latitude nas soluções de adaptação torna-se então ainda mais visível nesta segunda parte do ciclo, e não é certamente alheia ao próprio facto de, neste período, o interesse do cinema por Conrad se ter mantido bem vivo. De facto, ao caminharmos para o final do século XX e mesmo depois disso, o que se verificou é que esse interesse não só não esmoreceu como se intensificou, fazendo com que, sem que alterássemos os critérios antes expostos, o número de adaptações datadas de 1978 em diante (neste caso cobrindo o intervalo 1978-2016) se revelou praticamente idêntico ao das seis décadas anteriores (das quais, repete-se, há uma – mas só uma – adaptação hoje considerada perdida, e um outro título por ora inacessível). Mas é também a altura de lembrar que, tendo assumido como critério principal uma base de seleção o mais objetiva possível (os filmes em que, de modo mais ou menos explícito, foram adaptadas obras concretas de Joseph Conrad), não ficámos por isso imunes a toda a subjetividade, nem na primeira nem na segunda parte, e ainda menos nesta segunda parte. Assim, e se, em nome desse critério, antes sentimos dever incluir WIND ACROSS THE EVERGLADES, agora tomámos decisões diversificadas em relação a outros títulos para os quais nos foi muito mais difícil traçar uma linha separadora entre o que é uma efetiva adaptação – mesmo se deslocada no espaço e no tempo, mesmo se não explicitada – e a incorporação de alguns elementos estruturais bem identificáveis de uma obra particular. Próximo dessa linha de sombra entre a “adaptação” e o que se poderia chamar o infinito campo da “citação”, podemos referir, por exemplo, EL CORAZÓN DEL BOSQUE de Manuel Gutiérrez Aragón, outro filme do ano de 1979 (e mais uma vez inspirado em Heart of Darkness), que optámos por incluir, ao contrário de outros que, neste quadro e com os dados existentes, acabámos por excluir.
Por último, escusado será dizer que, por estas ou outras razões, nenhuma lista de “adaptações” está alguma vez fechada, e que qualquer ciclo a que nos aventuremos neste campo é também um desafio à descoberta e a possíveis desenvolvimentos. Ao apresentar a extensa “filmografia Conrad” que publicou há quase três décadas (inserida no livro por si editado Conrad on Film, de 1997, onde o critério era distinto e mais lato do que o que aqui assumimos), Gene Moore escrevia sensatamente, por exemplo, que lhe “parecia difícil de acreditar que nenhum dos milhares de filmes indianos ou japoneses se tivesse inspirado em Conrad”. E se, em última análise, esta reserva é aplicável à história do cinema por inteiro, é importante sublinhar que também se aplica à produção mais recente, na qual, sabemo-lo já, há exemplos que não abarcámos, ou não fomos a tempo de identificar. Não é sequer preciso pensar em ciclos Conrad baseados em critérios diferentes – sejam as obras de “espírito conradiano”, sejam aquelas em que Conrad é citado, referido, ou mesmo lido – para que admitamos a vontade de ir mais longe, ou noutras direções. Programar, numa cinemateca, é também isso: ciclos geram ciclos.
 
José Manuel Costa
 
 
16/04/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)

Posto Avançado do Progresso
de Hugo Vieira da Silva
Portugal, 2016 - 121 min
 
24/04/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)

The Secret Agent
O Agente Secreto
de Christopher Hampton
Reino Unido, , 1996 - 95 min
24/04/2025, 22h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)

Dangerous Paradise
Paraíso Perigoso
de William Wellman
Estados Unidos, 1930 - 58 min
30/04/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)

Jeunesse
Juventude
de Julien Samani
França/Portugal, 2016 - 83 min
16/04/2025, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)
Posto Avançado do Progresso
de Hugo Vieira da Silva
com Nuno Lopes, Ivo Alexandre, David Caracol
Portugal, 2016 - 121 min
M/12
De novo uma produção de Paulo Branco, POSTO AVANÇADO… tem assinatura portuguesa. Na sua terceira “longa”, Hugo V. da Silva, adapta o conto com o irónico título An Outpost of Progress (1896, também publicado em Tales of Unrest de 1898), normalmente referido como precursor de Heart of Darkness e como ele nascido da experiência de Conrad no Congo em 1891, embora em registo diferente. “Outpost”, nas palavras do escritor, era “a parte mais ligeira do que pilhei na África Central”, em que “me despojei de tudo menos de piedade e de algum desdém”. O que Hugo V. da Silva quis fazer com ele tinha contudo o alvo adicional de esconjurar fantasmas da sua casa, ou seja, os do colonialismo português no século XIX – aquele que, agora ao contrário do do século XX, estava a escapar aos olhares recentes sobre a nossa questão colonial. Fazê-lo entrar no filme não exigia mudar a época nem (quase nada) o lugar subentendido do conto, que não se afastava muito de uma então colónia portuguesa – a província do Zaire em Angola –, onde a equipa se instalou para a rodagem. O que aí se tornou então mais fácil ao autor foi, por um lado, evocar esses fantasmas (que ousou figurar) e, por outro, levar o espanto, a alienação e o desarrazoado destes dois náufragos da suposta “civilização”, a uma teatralização que vinha ela própria de Conrad sem deixar de prosseguir algo dos seus filmes anteriores. O ciclo termina connosco. Primeira exibição na Cinemateca.

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24/04/2025, 19h30 | Sala Luís de Pina
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)
The Secret Agent
O Agente Secreto
de Christopher Hampton
com Bob Hoskins, Patricia Arquette, Gérard Depardieu
Reino Unido, , 1996 - 95 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Segunda adaptação de The Secret Agent sessenta anos depois de SABOTAGE de Hitchcock, também esta é um caso de regresso ao contexto original da história, de uma forma que, continuando obrigatoriamente a simplificar a complexa teia de Conrad, abandona as alterações feitas na versão anterior (V. nota sobre o filme de Hitchcock no jornal de março). Como no livro (mesmo se este é já escrito em 1906), estamos então na Inglaterra vitoriana, denotando-se uma colagem à letra da obra literária que, como é sempre sublinhado, não equivale necessariamente à transposição do seu espírito. Por outro lado, sendo uma das poucas realizações de um homem com longo currículo no teatro e no argumento cinematográfico (com ênfase justamente no trabalho de adaptação de peças e romances), esta maior fidelidade releva aqui essencialmente desse “background” e não tanto de abordagens mais inovadoras a que temos feito alusão. Porventura, e para além do que é sempre uma oportunidade de descoberta, algum do seu interesse no ciclo será então o de ajudar a mapear, nesta fase, a diversidade destas adaptações. No leque de atores, a par de Hoskins ou Arquete (Verloc e Winnie), há a referir Depardieu (Ossipon) e Robin Williams (o “Professor”), como fatores quiçá mais imprevisíveis no conjunto, tal como o poderá ser a contribuição de Philip Glass na música. Primeira exibição na Cinemateca.

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24/04/2025, 22h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)
Dangerous Paradise
Paraíso Perigoso
de William Wellman
com Nancy Carroll, Richard Arlen, Warner Oland
Estados Unidos, 1930 - 58 min
legendado eletronicamente em português | M/12
Finalmente, damos a ver esta segunda adaptação de Victory, feita pela mão de William Wellman no mesmo estúdio que tinha produzido a versão inicial de M. Tourneur (Famous Players-Lasky, agora também já Paramount) uma década antes. Mais uma vez, o filme segue de perto a base argumental da primeira, nisso se incluindo o final, que, como assinalado antes, era uma das maiores alterações à complexidade e ambiguidade do romance (v. nota sobre a versão de M. Tourneur no jornal de março e, já neste jornal, nota sobre DES TEUFELS PARADIES). Estava-se agora nos inícios do sonoro, e Wellman redesenhou inventiva e consistentemente cada episódio, trabalhando bem os atores (desta vez com destaque para Nancy Carroll), devendo sublinhar-se o tempo e os movimentos de câmara de cenas chave e, noutros troços, a elipse (vide a morte de Zangiacomo). Esta é assim mais uma obra fundamental a descobrir, que infelizmente não é possível ver hoje com a qualidade original, neste caso por não ter ainda sido preservado ou restaurado o material de época sobrevivente. Primeira apresentação na cinemateca.

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30/04/2025, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema (II)
Jeunesse
Juventude
de Julien Samani
com Kévin Azaïs, Samir Guesmi, Jean-François Stévenin
França/Portugal, 2016 - 83 min
legendado em português | M/12
Na sequência de um documentário sobre “homens no mar” (uma experiência de um grupo de cinco homens num barco no Mar da Irlanda), Julien Samani, com produção de Paulo Branco, volta-se aqui para a “short-story” de Conrad Youth, escrita e serializada em 1898, e reportada a factos da juventude do escritor, trazendo-a para o tempo presente. Youth, uma narrativa (título original, pelo menos na edição em livro já de 1902), é, na verdade, e supostamente com poucas alterações, a memória de uma viagem catastrófica vivida pelo jovem Conrad num navio em fim de vida no Extremo Oriente, que termina com o incêndio da carga e a salvação da tripulação em botes salva-vidas, perante o afundamento do barco – memória que, pela primeira vez, surge contada pelo alter-ego Charlie Marlow, que ressurgirá em Heart of Darkness, Lord Jim e Chance. A uma narrativa de risco e aprendizagem, junta-se o risco da primeira longa-metragem, numa associação assumida e cativante, que, tendo sido lançada entre nós em 2017, impele à redescoberta. Primeira exibição na Cinemateca.

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