CICLO
Tijolos e Espelhos - O Cinema Iraniano Revisitado (1955-2015)


Após uma primeira parte em fevereiro que explorou algumas das tendências predominantes, dos estilos emergentes e dos principais filmes e cineastas do cinema iraniano no período que antecedeu a revolução, a segunda parte deste Ciclo conclui-se em março com o mapeamento do que a revolução de 1979 trouxe ao cinema iraniano e do que lhe retirou, nas últimas quatro décadas. “Uma história de resistência cultural, desobediência silenciosa e fricção” nas palavras do programador Ehsan Khoshbakht , colaborador especial da Cinemateca na organização desta extensa revisitação da cinematografia iraniana, e que assina também o texto de apresentação que se segue e o conjunto de notas (exceto quando indicado) sobre os filmes a exibir. Para além de uma seleção de 18 longas-metragens produzidas entre 1979 e 2015, exibimos também em março duas obras anteriores à revolução: o seminal KHESHT O AYENEH/“Tijolo e Espelho”, de Ebrahim Golestan” (que teve uma das duas exibições previstas em fevereiro cancelada por um problema técnico) e ainda SHAZDEH EHTEJAB/”Príncipe Ehtejab”, de Bahman Farmanara, de que só agora foi possível obter uma cópia projetável.   
«1979. A revolução iraniana caiu nas mãos dos islamistas. Está em curso uma purga, que força os cineastas à reforma antecipada, ao exílio e ao silêncio. Mas o cinema não está morto. Uma noite, a televisão iraniana transmite GAAV/"A Vaca" (Dariush Mehrjui, 1969), um dos poucos filmes pré-revolucionários ainda permitido devido à ausência de mulheres sem hijab. Nessa noite, o "líder supremo" Ayatollah Khomeini liga a televisão e apanha o filme. Alguns dias depois, num discurso público, declara que "não somos contra o cinema, somos contra imoralidade e a obscenidade". Usando o filme que tinha visto recentemente como exemplo, Khomeini continua dizendo "os nossos filmes devem ser como GAAV". Esse evento, puramente casual, contribuiu enormemente para salvar o cinema iraniano de uma maior destruição por parte dos fundamentalistas, ou até mesmo da proibição total. Mas surge assim um paradoxo: como é que os próprios cineastas, cujo trabalho é essencialmente definido como cinema de dissidência, podem ser autorizados a trabalhar num novo clima político que é marcado pela repressão? Noutras palavas, o produto cultural conhecido como "A Vaca" era desejado, mas não o contexto social que levou à sua criação. As pessoas mais pessimistas viram isto como um convite à "bovinidade". O cinema iraniano foi nacionalizado e a Farabi, instituição governamental, supervisionou cada aspeto da sua produção e distribuição. "Embora as perspetivas para o cinema iraniano fossem sombrias, a proibição geral de vídeos domésticos, da televisão por satélite, e da distribuição de filmes estrangeiros forçou as pessoas a voltarem aos cinemas. Isto adiou um colapso total", escreveu o crítico iraniano Nima Hassani-Nasab, que também argumentou que a noção de cinema do Estado era "um cinema sem estrelas, um cinema contra o ‘entretenimento". O hijab obrigatório e o nível de censura sem precedentes, implicaram que os filmes iranianos fossem pensados de uma nova maneira em termos de representação das mulheres, dos dramas domésticos, da vida familiar e da intimidade. Foram forjadas novas convenções cinematográficas. Era necessária uma mudança de mise-en-scène. No entanto, foi a antiga Nova Vaga que veio em socorro. Foram os pioneiros da Nova Vaga que não tinham partido para o exílio que mantiveram a chama do cinema acesa, no sombrio rescaldo da revolução iraniana. O seu profissionalismo, os seus conhecimentos técnicos, e a sua visão crítica do Irão sob o comando do Xá, foram temporariamente considerados úteis pelo novo regime.  Assim, foi-lhes concedida a possibilidade de concluir o trabalho que tinha sido interrompido no imediato rescaldo da revolução.
Uma dessas figuras, Amir Naderi, reavivou o interesse pelo cinema iraniano com DAVANDEH/"O Corredor" (1984). Bahram Beyzaie, com o seu simbolismo rico, regressou com uma série de filmes, entre os quais BASHU, GHARIBEYE KOOCHAK / "Bashu, o Pequeno Estrangeiro" (1986), que desempenhou a mesmo papel que DAVANDEH (que foi montado por Beyzaie) tinha tido dois anos antes. Quando estes filmes, juntamente com os trabalhos de Abbas Kiarostami - que rapidamente se tornará a exportação cinematográfica mais famosa do Irão -, foram vistos no estrangeiro, deram a impressão de que o cinema iraniano se resumia agora a histórias sobre crianças de grupos desfavorecidos e minorias. Mas, na realidade, seguiam-se, ao mesmo tempo, também outras direções. Um exemplo interessante é Nasser Taghvai, que também foi para o sul do Irão, que tinha sido devastado pela guerra, e realizou um thriller. O seu NAKHODA KHORSHID/"Capitão Khorshid" teve como fonte principal Ernest Hemingway e relembrou-nos como, desde os anos 60, o cinema iraniano tem sido constantemente fomentado pela literatura, quer através de obras de escritores iranianos contemporâneos quer de autores estrangeiros.  Nenhum outro realizador beneficiou tanto da literatura quanto Dariush Mehrjui, seja no período antes da revolução como naquele que lhe seguiu. Na década de 1980, Mehrjui atravessava uma mudança de foco e até de estilo. Em vez de continuar a retratar os mais desfavorecidos que viviam em pequenas cidades e aldeias, o tipo dominante nos seus filmes dos anos 60 e 70, Mehrjui ficou fascinado com a vida dos intelectuais de classe média, perdidos entre a modernidade e a tradição. Tudo se tornou mais pessoal do que social.  
Outro ciclo de filmes que surgem juntamente com os filmes de guerra financiados pelo Estado (conhecidos como o género “defesa santa”) é o cinema “sagrado”, que não se configura tanto como um género, mas como um conceito geral que a fundação Farabi (o maior órgão na indústria do cinema iraniano) promovia como abordagem “espiritual” ao cinema, tratando questões centrais da vida numa perspetiva semi-humanista, e baseando-se na moralidade islâmica. Este foi o período em que a noção de alma surgiu definida pelo Estado na ausência de permissão para mostrar o corpo. Dentro desta abordagem, foram feitos vários filmes banais e sem chama, mas, de entre os exemplos descomprometidos que ofereciam uma visão única e poética encontramos NAR-O-NAY/"Romã e Cana-de-Açúcar" (Saeed Ebrahimifar, 1989). No entanto, o que não se esperava era a emergência de novas vozes distintas que faziam parte de um movimento revolucionário e não necessariamente no seu lado progressista. Alguns, como Mohsen Makhmalbaf, eram estritamente anti--cinema no início, mas começaram a interessar-se gradualmente por este meio para difundir ideias revolucionárias sob a forma de propaganda. Acabaram por ser transformados pelo poder do cinema. Chegou o momento em que começaram até a questionar as suas próprias identidades revolucionárias através da experimentação da forma no cinema, e o meio começou a sobrepor--se à ideologia. A mais notável realizadora do período pós-revolucionário – uma das tantas que foi para trás da câmara, ainda que com um véu – foi Rakhshan Banietemad, cuja transição do documentário de propaganda “anticapitalista” para os dramas socialistas realistas e independentes sobre mulheres trabalhadoras tem sido um dos mais espantosos exemplos da evolução do cinema iraniano no pós-revolução. Outro antigo documentarista e praticante de cinema experimental, Kianoush Ayyari, o menos conhecido dos mestres do cinema pós-revolucionário, oferece um forte sentimento de humanismo nas suas histórias sobre sobrevivência e resiliência, num país que tinha fechado as suas portas à classe social que, supostamente, devia soerguer. 
Contudo, o milagre do cinema pós-revolucionário foi Abbas Kiorastami que, depois de 20 anos a produzir filmes incessantemente, obteve, repentinamente, o reconhecimento que tanto merecia. O seu estilo tinha amadurecido, mas havia também um desejo de ver imagens de um Irão cada vez mais desconectado do resto do mundo. Além disso, uma geração de realizadores iranianos que desejavam o sucesso internacional de Kiarostami começou a "fazer [como] Kiorastami". Como Paul Oliver escreveu a propósito da música blues, que atrai artistas que não sabem tocar nem cantar, também a abordagem [enganadoramente] simples de Kiarostami à realização cinematográfica era como areia movediça, para a qual muitos se aventuraram casualmente, mas da qual poucos conseguiram sair vivos artisticamente. Dos “filhos de Kiarostami” alguns encontraram a sua própria voz e visão, afastando-se claramente do mundo do homem que admiravam. Jafar Panahi, Bahman Ghobadi e, em menor medida, Mohammad Rasoulof emergiram nesse contexto. Estes cineastas capturaram rapidamente o clima turbulento de uma sociedade moralmente à deriva, cuja indiferença e crueldade para com os pobres, as mulheres e as minorias já não podia ser varrida para debaixo de um extravagante tapete persa. Em 10 anos, à medida que os seus filmes se tornaram cada vez mais militantes e intrigantemente meta-cinema, estas vozes também foram forçadas ao autoexílio e à prisão.  Estas figuras beneficiaram muito com chegada do digital, que permitia produções independentes e de baixo orçamento. Foi aí que o controlo do Estado sobre o cinema iraniano acabou, mesmo que o Estado continuasse a pressionar os cineastas a fazerem tudo de acordo com o manual e seguindo os “procedimentos oficiais” (até há dez anos qualquer retrospetiva de cinema iraniano organizada fora do país poderia ser realizada através das instituições estatais como a Farabi. Este programa na Cinemateca, que inclui mais de cinquenta filmes, foi concebido inteiramente sem a sua presença ou apoio, o que pode ser interpretado como um sinal de mudança).
Os paradoxos referidos no início deste texto, corroeram silenciosamente o cinema iraniano a partir de dentro. Estes paradoxos não impediram a vaga de inovação, mas trouxeram muito rancor e agonia. Quem tentar argumentar que a censura pode levar a uma explosão de criatividade deve olhar para o exemplo do cinema iraniano pós--revolucionário, em que as inovações iniciais e os desvios influentes das formas convencionais não duraram muito. Além disso, muitas das caraterísticas atribuídas ao cinema iraniano dos últimos 40 anos, e amplamente admiradas, já existiam nesse cinema antes da revolução. Um cineasta iraniano é, frequentemente, um artista esgotado, que sofre tremendamente o fardo avassalador da censura. A censura mata o cinema. A vaga constante de filmes ricos e intrigantes do Irão não morreu, mas a dor e as baixas artísticas tornaram-se insuportáveis. Este programa saúda a bravura, a poesia e a visão dos cineastas iranianos.» (Ehsan Khoshbakht)
 
 
31/03/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Ciclo Tijolos e Espelhos - O Cinema Iraniano Revisitado (1955-2015)

Hamoun
de Dariush Mehrjui
Irão, 1990 - 119 min
 
31/03/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo Tijolos e Espelhos - O Cinema Iraniano Revisitado (1955-2015)

Chaharshanbe-Soori
“Quarta-Feira de Fogos de Artifício”
de Asghar Farhadi
Irão, 2006 - 102 min
31/03/2023, 19h30 | Sala Luís de Pina
Tijolos e Espelhos - O Cinema Iraniano Revisitado (1955-2015)

Parte II - Depois da Revolução
Hamoun
de Dariush Mehrjui
com Ezzatolah Entezami, Bita Farahi, Khosro Shakibai
Irão, 1990 - 119 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Por motivo de atraso na chegada da cópia a Lisboa, o filme HERFEH: MOSTANADSAZ (“Profissão: Documentarista”) não poderá ser exibido, como anunciado, nesta sessão. Em seu lugar exibiremos, em segunda passagem no âmbito deste Ciclo, o filme HAMOUN de Dariush Mehrjui.
Um intelectual de meia-idade à beira do colapso nervoso embarca numa jornada semi-alucinatória de dúvidas existenciais e desespero, na qual Dariush Mehrjui faz referência a Fellini (como se vê nas fascinantes sequências de sonhos) e a Woody Allen (através da história de um casamento em crise). Esta comédia negra mostra “uma sociedade de terceiro mundo invadida pela Toshiba e pela Sony, em que os personagens se fixam nas suas conexões a Kiekergaard e Salinger” (Goodfrey Cheshire). O filme foi feito durante uma vaga de filmes iranianos que se debruçavam sobre questões espirituais e o Sofismo, cujo objetivo era fazer uma ponte entre as tradições dos místicos e a vida urbana moderna. A vaga durou pouco tempo e o ciclo produziu muitos filmes péssimos. Porém, HAMOUN, devido à sua montagem (rápida e elíptica), à representação dos atores (a performance brilhante de Khosro Shakibai na personagem do título) e à realização dinâmica de Mehrjui, tornou-se um absoluto clássico de culto no cinema iraniano e o segundo trabalho de Mehrjui mais admirado pelos iranianos depois de GAAV/“A Vaca”.

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31/03/2023, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Tijolos e Espelhos - O Cinema Iraniano Revisitado (1955-2015)

Parte II - Depois da Revolução
Chaharshanbe-Soori
“Quarta-Feira de Fogos de Artifício”
de Asghar Farhadi
com Hamid Farrokhnezhad, Hedieh Tehrani, Taraneh Alidoosti
Irão, 2006 - 102 min
legendado em inglês e eletronicamente em português | M/12
Rouhi, uma jovem empregada doméstica, começa a trabalhar para um casal de classe média de Teerão na última quarta-feira do ano, conhecida como “quarta-feira de fogos de artifício”. Ela observa a vida de uma esposa que está convencida da infidelidade do marido, acreditando que ele tem uma relação extraconjugal com a vizinha cabeleireira. O terceiro filme de Farhadi foi um êxito inovador e um ponto de viragem no seu estilo cinematográfico, em que conseguiu combinar realismo social com melodrama moderno e elementos inovadores de suspense. Havia também algo mais: a juventude. O talento de Farhadi , bem como os seus argumentos afiados, tornaram-se ainda mais efetivos quando encontrou esta equipa de atores, a sua maioria na casa dos trinta anos. Os novos atores (Hedieh Tehrani, Taraneh Alidoosti) trouxeram consigo um ar de urgência e mudança ao universo em que Farhadi estava a afirmar-se rapidamente. Primeira apresentação na Cinemateca. A exibir em cópia digital. 

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