CICLO
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia


A habitual parceria entre a Cinemateca e o Doclisboa é este ano concretizada com uma extensa retrospetiva dedicada a uma cinematografia, a da Geórgia.   Constituída por obras inéditas na Cinemateca (as únicas duas excepções são “VELHAS CANÇÕES GEORGIANAS” e “O SAL DA SVANÉCIA”), esta viagem cinematográfica inicia-se nos anos 1910 e prolonga-se aos dias de hoje, atravessando todas as épocas do cinema georgiano dos primórdios à atualidade, destacando-se naturalmente a riquíssima produção feita durante o período em que o território integrou a URSS. A maioria dos filmes é exibida em versões digitais restauradas pelo Georgian National Film Center e nas versões originais em georgiano. O texto de apresentação e as notas que se seguem são da autoria de Marcelo Felix, que, pela equipa do Doclisboa, esteve na base do programa apresentado pelas duas entidades.
 
O cinema georgiano tem nos últimos anos despertado crescente atenção e expectativa internacional, talvez surpreendente dada a dimensão do país e a sua complexa situação política recente. Perto de celebrar três décadas de independência, a Geórgia foi, na sua longa existência, conhecida pela diversidade física, humana e cultural. O país, que a si mesmo se chama Sakartvelo (terra dos cartevélios), território dos antigos reinos da Cólquida e da Ibéria, alternou períodos de independência com outros de ocupação e incorporação por romanos, persas, mongóis, otomanos e russos. Não obstante, soube preservar a sua cultura única, formada por uma geografia e história que favoreceram simultaneamente o isolamento e o cosmopolitismo.   
Falar de cinema georgiano é falar também, na maior parte da sua existência, de cinema soviético. A Revolução agitou tanto o Cáucaso profundo como as camadas da sociedade georgiana modernizadas pela influência russa, as quais renovariam a sua integração e relevância no contexto da URSS. Uma minoria de bolcheviques georgianos (entre os quais um certo Iosseb Djugachvili, mais conhecido pelo nome de guerra russificado, Iossif Stalin) está na vanguarda da incorporação do país na esfera soviética, mas a participação nas dinâmicas desta é protagonizada pela Geórgia: poliglota, desenvolta e proeminente na União, e ao mesmo tempo culturalmente distinta e irredutível. A sua arte, incluindo o cinema, logo se torna um exemplo vibrante dessa excepcionalidade.
A adesão de muitos cineastas à causa revolucionária levou-os a indagar a realidade das regiões mais remotas do seu país. Perscrutando as campanhas caucasianas do Império Russo no século precedente, Nikoloz Chenguelaia evocou em ELISSO a população que já não habitava a região. As terras altas da Suanécia e da Ratcha, visitadas por Mikhail Kalatozov e Nutsa Gogoberidze, simbolizavam a dureza de uma vida primitiva com tradições e valores que persistiram até hoje, como nos conta um filme como DEDE. Na modernidade do gesto e das escolhas, o cinema georgiano assumia a vanguarda da arte da sua época. A sofisticação da estrutura narrativa em TARIEL MKLAVADZIS MKVLELOBIS SAKME é surpreendente, e TCHEMI BEBIA sintetiza febrilmente a sátira revolucionária com as linguagens futurista, expressionista e surrealista, a que acrescenta sequências com imagem animada.
O estalinismo estancou essa energia e a Geórgia mobilizou-se para os horrores da guerra, que não chegou ao seu território mas que lhe custou a perda de 350 mil vidas em combate. O cinema georgiano renasce com o Degelo e uma geração de cineastas formada em Moscovo: Abuladze, Tchkheidze, Gogoberidze, Iosseliani, Essadze, Kvirikadze, os irmãos Eldar e Guiorgui, filhos de Nikoloz Chenguelaia. Produção georgiana, MAGDANAS LURDJA foi o primeiro filme soviético premiado em Cannes, antes de em 1958 o veterano Kalatozov conseguir para a URSS a sua única palma de ouro (para longa-metragem) no mesmo festival. Nas três décadas seguintes, a ficção, o documentário e a animação dos cineastas georgianos refletiriam sobre a condição de uma sociedade dividida entre as oportunidades e os limites do império.
Nos anos seguintes à independência, com o jovem país depauperado e mergulhado em várias guerras civis, era urgente filmar, mas também muito difícil. A escassa produção da época será compensada quando a gradual estabilização política da sociedade georgiana permite o investimento estratégico na cultura. A história destas três décadas tem sido abordada por uma variedade de filmes cujo retrato caleidoscópico do país em construção revela a continuidade da tradição de relevância social e artística do cinema georgiano.
Em dez dias será possível aflorar apenas algumas obras e caminhos desse cinema que em Portugal foi quase sempre essencialmente apercebido de relance. Programámos autores influentes (Kalatozov, Abuladze, cujo MONANIEBA foi o filme-símbolo da Perestroika, Iosseliani e Paradjanov, de nacionalidade complicada), sem querer destacar as suas filmografias. Algumas ausências serão mais notadas (Mikheil Tchiaureli, cineasta oficial do estalinismo, cuja obra merece outro foco, e Guiorgui Danelia, talvez o realizador georgiano mais popular na URSS), outras (Nana Mtchedlidze, autora do magnífico IMERULI ESKIZEBI) deviam sê-lo. No panorama contemporâneo tivemos de sacrificar uma escolha mais ampla em função dos limites acrescidos de uma retrospetiva abrangente. Temur Babluani, Zaza Uruchadze e Levan Koguachvili, autores mais visíveis que a grande maioria dos seus contemporâneos, ficaram de fora, assim como vários nomes recentes com obras que poderiam ter sido incluídas.
O critério da acessibilidade não teve grande peso no caso da animação. É possível visionar, sobretudo na Internet, obras dos realizadores selecionados (e de outros que não o puderam ser, como o pioneiro Vladimer Mudjiri). Mas, além de tudo o que significa devolver ao grande ecrã um filme como GOGONA DA CHADREVANI de Sulakauri, a sua passagem lembra a urgência da recuperação e visibilidade da obra deste e de outros cineastas da animação georgiana.
A seleção agora apresentada pelo Doclisboa em parceria com a Cinemateca Portuguesa é apoiada pelo Centro Nacional do Cinema Georgiano, que disponibiliza várias cópias restauradas no âmbito do processo de preservação em curso. Este é fruto do acordo entre Geórgia e Rússia para o regresso a Tbilissi do seu património cinematográfico. É também uma oportunidade para sinalizar a importância de cada filme a exibir, num contexto onde o precário estado das cópias ou a sua indisponibilidade pura e simples condicionam qualquer programação. Ao mesmo tempo, esse percurso de retorno sublinha a vocação viajante de um cinema caracteristicamente reflexivo, cuja descoberta pode, esperamos, levar a uma relação mais atenta e profunda com a sua história e a sua actualidade. Ambas inquietas.    
 
 
23/10/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia

Komunaris Tchibuki | Tchemi Bebia
duração total da projeção: 116 min | M/12
 
24/10/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia

Magdanas Lurdja | Alaverdoba
duração total da projeção: 111 min | M/12
24/10/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia

Kristine | Tchemi Bebia
duração total da projeção: 85 min | M/12
24/10/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia

Metevze da Gogona | Simindis Kundzuli
duração total da projeção: 115 min | M/12
26/10/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
Ciclo A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia

Ponto, Chavi, Chavi Zgva | Motsurave
duração total da projeção: 94 min | M/12
23/10/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia
Komunaris Tchibuki | Tchemi Bebia
duração total da projeção: 116 min | M/12
Enérgica Modernidade 1
KOMUNARIS TCHIBUKI
“O Cachimbo do Communard”
de Kote Mardjanichvili
com Uchangui Tchkheidze, Serioja Zabozlaiev, Veriko Andjaparidze, T. Menzone
URSS, 1929 – 56 min / mudo, legendado eletronicamente em português e inglês 

TCHEMI BEBIA
“A Minha Avó”
de Kote Mikaberidze
com Aleksandre Takaichvili, Ielena Tchernova, Ievgueni Ovanov, Akaki Khorava
URSS, 1929 – 60 min / mudo, legendado em inglês e eletronicamente em português

KOMUNARIS TCHIBUKI, menos conhecida que NOVI VAVILON (“A NOVA BABILÓNIA”), também sobre a comuna de Paris, é uma obra visualmente esplêndida que marca o apogeu do seu realizador, vindo do teatro. Sozinho em casa, o pequeno Jules passa fome enquanto nas ruas parisienses o povo se revolta e organiza barricadas. O pai, um pedreiro, junta-se aos revolucionários, levando o filho, cujo entusiasmo e cujo cachimbo depressa são notados tanto por camaradas como por inimigos, conduzindo a um desfecho estarrecedor. Em TCHEMI BEBIA, uma grande repartição oficial assemelha-se a um organismo pesado, com funcionários-órgãos ineficazes. Esperando em vão resposta ao seu requerimento, um operário perde a paciência, motivando o despedimento de um burocrata, que tenta reaver o emprego através da proteção de uma avó – isto é, de uma cunha. A demolição da burocracia é o projeto deste filme que cruza a estética e o delírio de várias vanguardas. Rapidamente banido, só foi oficialmente reabilitado em 1968.

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24/10/2020, 15h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia
Magdanas Lurdja | Alaverdoba
duração total da projeção: 111 min | M/12
O Cáucaso Profundo 2
MAGDANAS LURDJA
“O Burro de Magdana”
de Tenguiz Abuladze, Rezo Tchkheidze
com Dudukhana Tserodze, Liana Moistsrapichvili, Mikho Borachvili, Akaki Kvantaliani, Nani Tchikvinidze
URSS, 1955 – 70 min / legendado em inglês e eletronicamente em português

ALAVERDOBA
“Alaverdoba”
de Guiorgui Chenguelaia
com Gueidar Palavandichvili, Kote Dauchvili, Irakli Kokrachvili
URSS, 1962 – 41 min / legendado em inglês e eletronicamente em português

A viúva Magdana procura sustentar-se e aos três filhos com um comércio de iogurte que a obriga a uma itinerância longa e penosa à cidade – até recolher um burro maltratado que poderá melhorar a vida a toda a família. Tratando o Cáucaso de finais do século XIX com uma sensibilidade neorrealista possibilitada pelos primeiros anos do Degelo, e integrando alusões a outras épocas e injustiças, MAGDANAS LURDJA, premiado em Cannes, marcou o renascimento do cinema georgiano. Em ALAVERDOBA, o festival religioso homónimo, da região da Cachétia, recebe a visita de um jornalista fascinado pela dinâmica pouco espiritual dos peregrinos, a quem acabará por desafiar. A sua posição paradoxal, de idealista laico escandalizado pelo farisaísmo, abre o filme a várias interpretações ideológicas.

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24/10/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia
Kristine | Tchemi Bebia
duração total da projeção: 85 min | M/12
Enérgica Modernidade 2

Programado para esta sessão, MZAGO DA GELA não será exibido devido a um atraso na chegada da cópia do filme. Em seu lugar será exibido o filme TCHEMI BEBIA.
KRISTINE
de Aleksandre Tsutsunava, Guermane Goguitidze
com Antonine Abelichvili, Guiorgui Pronispireli, Vasso Arabidze
Geórgia, 1918 – 25 min / mudo, legendado em inglês e eletronicamente em português

TCHEMI BEBIA
“A Minha Avó”
de Kote Mikaberidze
com Aleksandre Takaichvili, Ielena Tchernova, Ievgueni Ovanov, Akaki Khorava
URSS, 1929 – 60 min / mudo, legendado em inglês e eletronicamente em português

Abandonada pelo homem por quem se apaixonou, Kristine vê-se numa situação desesperada, grávida e hostilizada pela família e pela sua aldeia. Após um suicídio falhado, resta-lhe refugiar-se na cidade, onde a acolhe, com péssimas intenções, a mãe de uma amiga. Um filme italiano que passava no seu próprio cinema deu a Goguitidze a ideia de produzir este primeiro filme georgiano de ficção, que Tsutsunava, encenador de renome, foi chamado a realizar. Em TCHEMI BEBIA, uma grande repartição oficial assemelha-se a um organismo pesado, com funcionários-órgãos ineficazes. Esperando em vão resposta ao seu requerimento, um operário perde a paciência, motivando o despedimento de um burocrata, que tenta reaver o emprego através da proteção de uma avó – isto é, de uma cunha. A demolição da burocracia é o projeto deste filme que cruza a estética e o delírio de várias vanguardas. Rapidamente banido, só foi oficialmente reabilitado em 1968.

consulte aqui a FOLHA DA CINEMATECA de KRISTINE

consulte aqui a FOLHA DA CINEMATECA de TCHEMI BEBIA
 
24/10/2020, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia
Metevze da Gogona | Simindis Kundzuli
duração total da projeção: 115 min | M/12
A Difícil Liberdade 3
METEVZE DA GOGONA
“O Pescador e a Menina”
de Mamuka Tkechelachvili
Geórgia, 2018 – 15 min / legendado em inglês e eletronicamente em português

SIMINDIS KUNDZULI
“A Ilha do Milho”
de Guiorgui Ovachvili
com Ilias Salman, Mariam Buturichvili, Irakli Samuchia
Geórgia, 2014 – 100 min / legendado em inglês e eletronicamente em português

Com o pai pescador ausente no mar, a filha imagina-o em apuros, defrontando um peixe maligno que lhe desfaz a frágil embarcação. Ou talvez ela não o imagine apenas. A animação tridimensional de METEVZE DA GOGONA, de recortes e bonecos, soma camadas de representação e de sonho sem saturar o permanente apelo dos seus achados, onde cabem a evocação de Moby Dick e da estrela do mar de Man Ray. SIMINDIS KUNDZULI descreve as ilhas férteis formadas pela torrente anual do rio Inguri, logo ocupadas por camponeses na esperança de uma colheita compensadora. Avô e neta, abecazes, ocupam uma delas, sob o olhar intimidante de militares da Abecázia, Geórgia e Rússia que patrulham as imediações. Tradição ameaçada pela imprevisibilidade do clima e dos homens, o milho fluvial ganhou a sua memória definitiva com este filme de Ovachvili, prémio principal em Karlovy Vary, onde foi estreado.

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26/10/2020, 19h00 | Sala M. Félix Ribeiro
A Cinemateca com o Doclisboa: A Viagem Permanente – O Cinema Inquieto da Geórgia
Ponto, Chavi, Chavi Zgva | Motsurave
duração total da projeção: 94 min | M/12
O Pequeno Oceano
PONTO, CHAVI, CHAVI ZGVA
“Ponto, o Mar Negro, Negro”
de Nodar Beguiachvili
Geórgia, 2001 – 14 min / legendado em inglês e eletronicamente em português

MOTSURAVE
“O Nadador”
de Irakli Kvirikadze
com Elgudja Burduli, Ruslan Mikaberidze, Baadur Tsuladze, Nana Kvatchantiradze, Nana Djordjadze
URSS, 1981 – 80 min / legendado eletronicamente em português e inglês

Ponto Euxinos chamavam os gregos ao Mar Negro: mar amistoso. É o que em PONTO, CHAVI, CHAVI ZGVA inspira a jornada veranil pelo pequeno oceano (como lhe chamou Steinbeck) que banha a costa georgiana, através dos desenhos e impressões narradas de dezenas de crianças, que compõem uma pequena epopeia de reconhecimento e aventura. Já MOTSURAVE é a saga de três gerações de uma família assombrada pelo feito extraordinário, mas não documentado, do seu patriarca: a travessia do Mar Negro, a nado, entre Batumi e Poti. Uma equipa de filmagem tenta contar essa história – que é, também, parte da história submersa do país.

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